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A importância da tributação sobre o capital x isenção de lucros e dividendos no direito brasileiro

No livro “O Capital no Século XXI”, Thomas Piketty nos traz a construção da ideia da instituição de um imposto mundial sobre os ganhos de capital como meio de preservar a democracia e o Estado de Bem-Estar Social,

Numa perspectiva contemporânea de construção de um capitalismo financeiro – onde o foco sai da industrialização para as especulações no mercado financeiro (ações, moedas, empréstimos, financiamentos) – Piketty tenta demonstrar que o imposto mundial progressivo sobre o capital, acompanhado de uma grande transparência financeira internacional, seria um instrumento imprescindível para que a democracia retomasse o controle sobre essa fase mais recente do capitalismo. No entanto, o próprio autor reconhece como uma ideia utópica, pela dificuldade em se existir essa cooperação internacional a fim de exacionar o capital de forma globalizada; mas mesmo assim, aponta o referido imposto como meta a fim de lapidar as atuações dos governos, buscando-se um sistema tributário cada vez mais justo e promovedor da diminuição da desigualdade social.

Esse imposto apontado por Piketty teria a lógica de tributar mais os patrimônios maiores e de levar em consideração o total de ativos, sejam imobiliários, financeiros ou corporativos, com a devida dedução das dívidas (considerando, portanto, o capital líquido).

Mesmo que o referido imposto não se apresente como um completo substituto dos demais tributos que financiam o Estado Social contemporâneo, se mostraria como uma ferramenta fundamental para se conseguir chegar a uma maior transparência do capital das pessoas e para diminuir a desigualdade social, evitando que se crie uma espiral desigualadora sem fim, além de possibilitar um controle eficaz das crises financeiras e bancárias.

Toda essa discussão nos faz refletir como a tributação do capital é feita no Brasil, ou melhor, como ela não é feita. Verificamos que existe a Lei nº 9.249/1995 que isenta os lucros e dividendos de serem tributados, além de nunca ter sido instituído o imposto sobre grandes fortunas, previsto no art. 153, VII, da CF/88; de modo que fica claro que a tributação sobre o capital no Brasil é completamente insipiente, não se coadunando com as necessidades apresentadas pela realidade atual do nosso país e do mundo.

Dados alarmantes são vistos quando comparamos o percentual de tributação sobre ganhos de capital no Brasil, em comparação com a carga tributária sobre o consumo; enquanto a tributação sobre o consumo no país chega a quase 50% da arrecadação, a tributação sobre as rendas, lucros e ganhos de capital foi estimada em 6,9% de arrecadação em 2016, e a tributação sobre a propriedade, representava apenas 1,2%, no mesmo ano[1].

Em comparação com a tributação sobre a rendas advindas do trabalho e aquelas decorrentes de ganho de capital, a discrepância também chama a atenção. A tributação realizada pelo Imposto de Renda Pessoa Física tem alíquota máxima de 27,5%, sendo aplicada a pessoas que ganham R$ 4.664,68 (quatro mil, seiscentos e sessenta e quatro reais e sessenta e oito centavos) de salário mensal, por exemplo. Noutro giro, tratando-se de imposto de renda incidente sobre o ganho de capital que uma pessoa física tem quando vende um imóvel por um preço superior ao que comprou, a maior alíquota aplicada para o ganho de capital é de 22%, e só é utilizada quando o valor recebido pela pessoa ultrapassou R$ 30.000.000,00 (trinta milhões de reais).

Esses dados, mostram claramente que algo está errado na construção do nosso sistema tributário.

Quando não estamos falando de uma tributação completamente teratológica, estamos em um cenário muito pior: o da ausência de tributação dos mais ricos.

A Lei nº 9.249/1995 prevê a isenção para lucros e dividendos distribuídos pelas pessoas jurídicas a seus acionistas:

 

Art. 10. Os lucros ou dividendos calculados com base nos resultados apurados a partir do mês de janeiro de 1996, pagos ou creditados pelas pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real, presumido ou arbitrado, não ficarão sujeitos à incidência do imposto de renda na fonte, nem integrarão a base de cálculo do imposto de renda do beneficiário, pessoa física ou jurídica, domiciliado no País ou no exterior.

 

Em 2019, os quatro maiores bancos do Brasil (Itaú, Santander, Bradesco e Banco do Brasil), distribuíram aproximadamente R$ 58 bilhões de reais aos seus acionistas, valor este que não foi alvo de tributação pelo imposto de renda[2].

Em resumo, enquanto o trabalhador da classe média está recebendo R$ 4.700,00 (quatro mil e setecentos reais) por mês, e está sofrendo uma tributação por imposto de renda de 27,5% (fora os demais tributos que paga); um acionista de um dos maiores bancos do Brasil (quem tem mais capacidade contributiva, nos termos do art. 145, § 1º, da Constituição Federal) está recebendo bilhões por ano e não está sendo tributado.

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) realizou, em abril de 2019, um estudo mostrando os impactos positivos que a tributação sobre lucros e dividendos poderia trazer para a sociedade brasileira.

Foram previstos dois cenários: um tributando lucros e dividendos a uma taxa fixa de 15%, e outro a uma taxa progressiva que varia entre 15,0% e 27,5%. Os resultados indicam pequena melhoria na distribuição de renda, a qual se mostraria discreta devido ao grande nível de concentração de renda no país; no entanto, verificou-se um aumento significativo na arrecadação, o que deveria ser revertido em benefícios à coletividade.

Segundo afirmam os pesquisadores do IPEA, a insistência do país em impostos sobre bens e serviços (impostos indiretos) – em detrimento de impostos sobre a renda e a propriedade (impostos diretos) – sabota a aplicação real do princípio de capacidade contributiva, resultando em um sistema regressivo no qual famílias de renda proporcionalmente menor financiam uma maior fatia do Estado[3].

No mesmo mês de abril de 2019, deputados federais propuseram projetos de lei com a finalidade de procurar diminuir as disparidades advindas da desigualdade de renda, acentuadas pela tributação regressiva de nosso sistema tributário. Os projetos de lei foram: PL n° 1.981/19 (propõe o retorno da tributação dos lucros e dividendos pelo Imposto de Renda)[4]; Projeto de Lei Complementar n° 9/19 (institui o Imposto sobre Grandes Fortunas)[5].

Em 2021 tivemos a proposta do PL nº 307/2021, que também propunha o retorno da tributação dos lucros e dividendos pelo imposto de renda, com uma alíquota de 10%, excetuando as empresas optantes do SIMPLES NACIONAL[6].

Nenhum dos projetos avançou no Congresso Nacional, o que mostra a falta de interesse dos políticos eleitos pelo povo, de resolver de forma eficaz o problema do sistema tributário brasileiro.

Mais uma vez nos é demonstrada a face utópica da ideia desenvolvida por Piketty, no que diz respeito à instituição de um imposto mundial sobre o capital. Se não conseguimos sequer alterar normas tão injustas e que colidem frontalmente com um princípio constitucional, qual seja o da capacidade contributiva (art. 145, § 1º, CF/88), no nosso próprio país; como pretendemos chegar ao patamar de um consenso mundial sobre a criação de um imposto progressivo sobre o capital, que beneficiaria a todas as nações, evitando a evasão de divisas de patrimônios?

Mesmo ciente das dificuldades atuais sobre o tema, as construções teóricas que buscam trazer um necessário viés mais solidário à atuação do Estado e das pessoas, com a construção de uma solidariedade transnacional[7], é um norte necessário para nos fazer repensar sobre o direito posto, e pressionarmos os governos a repensarem suas políticas fiscais.

A escandalosa realidade de desigualdade social e regressividade do sistema tributário brasileiro é um conta que está batendo na nossa porta todos os dias, e de forma cada vez mais evidente após a Pandemia da COVID-19, que acentuou sobremaneira as desigualdades sociais[8].

E por mais que ainda se tenha muito a fazer para se chegar a uma desejada justiça fiscal, não podemos perder a esperança de lutar pela redução da alta e predatória concentração de renda existente no nosso país, que poderá (se já não o faz), colocar em xeque o tão sonhado ideal democrático.

 

Notas e Referências:

[1] Dados inseridos na pesquisa realizada pelo IPEA. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&id=3233. Acesso em 04 mai. 2023.

[2] Fonte: https://economia.uol.com.br/financas-pessoais/noticias/redacao/2020/02/18/maiores-bancos-distribuem-r-58-bilhoes-a-acionistas-em-lucros-em-2019.htm. Acesso em 04 mai. 2023.

[3] Estudo disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2449.pdf. Acesso em: 10 jun. 2019.

[4] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2196571. Acesso em: 10 jun. 2019.

[5] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2191030. Acesso em: 10 jun. 2019.

[6] Disponível em: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2269697. Acesso em: 04 mai. 2023.

[7] LIMA. Newton de Oliveira; MOURA, Hiago pereira de Silva. Entre eclusas e nevoeiros: poder transnacional e crise de legitimidade democrática em tempos de COVID-19. In: ARAÚJO, Jailton Macena de; PINTO, João Batista Moreira; CLARK, Giovani (Org.). Estado, Constituição e Desenvolvimento: inflexões sobre a crise em tempos de pandemia. Andradina: Meraki. 2022. E-book.

[8] Dados de pesquisa empírica e teórica de como a pandemia da COVID-19 acentuou os problemas econômicos e sociais das populações mundiais, podem ser encontrados em textos como: MEDEIROS, Robson Antão de; RAMOS, Gleydson Bezerra. Estado, Constituição, Desenvolvimento e pandemia: breve diagnose sobre uma crise desigual e a busca por futuros (des)necessários. Estado, Constituição e Desenvolvimento: inflexões sobre a crise em tempos de pandemia. Andradina: Meraki. 2022. E-book. A DESIGUALDADE MATA. OXFAM Brasil. São Paulo, 16 jan. 2022. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/noticias/um-novo-bilionario-surgiu-a-cada-26-horas-durante-a-pandemia-enquanto-a-desigualdade-contribuiu-para-a-morte-de-uma-pessoa-a-cada-quatro-segundos/#:~:text=No%20Brasil%2C%20s%C3%A3o%2055%20bilion%C3%A1rios,2%25%20entre%202019%20e%202021. Acesso: em 09 jan. 2023.

 

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Larissa Pinheiro
Mestra em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Especialista em Direito Tributário pelo IBET. Graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Professora na Faculdade do Sertão do Pajeú (AEDAI-FASP), lecionando as disciplinas de Direito Tributário e Direito Processual Civil. Participante do grupo de estudo Moinho Jurídico / UFPE. Membra da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). Advogada no Escritório Larissa Pinheiro Advocacia, onde atua nas áreas de Tributação, Sucessão e Regularização Imobiliária.

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