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A jurisprudência sentimental do STJ

Saiu em toda imprensa. Julho de 2022. Um médico anestesiologista se aproveita da sedação de uma paciente para praticar, na própria sala de cirurgia e durante um parto cesáreo, uma criminosa violência sexual. Sob o efeito da anestesia, a paciente dorme, sem chance de defesa. O fato se torna conhecido graças à coragem de enfermeiras que filmam o evento e o comunicam à polícia, levando à prisão em flagrante delito do suspeito.

Não é preciso formação jurídica para arriscar uma classificação do fato como estupro. Sim. A prática de um tal constrangimento sexual contra pessoa indefesa pode ser corretamente enquadrada como estupro. A conduta do agente, numa situação como essa, traduz, pura e simplesmente, uma violência contra a liberdade sexual da vítima. De quebra, podemos dizer que se trata ainda de um crime hediondo, tamanha a gravidade que lhe reconhece a legislação brasileira.

No âmbito da responsabilidade penal, o sistema focaliza o embate entre o acusado e o Estado — o primeiro, representado por seus advogados; o último, pelos titulares da prerrogativa institucional de mobilizar a máquina de investigação, processo, julgamento e punição. Na prática, esse é o diálogo que ocupa o primeiro plano no sistema de justiça criminal e esses são seus personagens principais. Todos os demais ocupam posições e papeis secundários. Nos crimes mais graves, essa condição de ‘personagem secundária’ inclui — pasmem, leitores e leitoras — a vítima do crime.

O quadro muda quando focalizamos o sistema de responsabilidade civil. Nesse cenário, a vítima assume o protagonismo como titular da prerrogativa de movimentar a máquina judiciária para promover a responsabilização do causador do dano. O foco agora se dirige ao diálogo e à luta que se estabelecem entre vítima e ofensor. O Estado não sai totalmente de cena, mas já não concentra tantos papeis como no sistema de responsabilidade penal.

No emblemático caso que abre esse texto, a vítima da ofensa sexual tem a prerrogativa de demandar ao poder judiciário a responsabilização civil dos possíveis autores e coautores (por ação ou omissão, não importa) da violência sexual. Nesse contexto, é razoável supor que lhes pediria, no mínimo, a condenação em uma indenização por danos morais.

Daí a pergunta (uma provocação, na verdade): a vítima sofreu dano moral?

Quero reformular a pergunta, desenvolvendo-a e tornando-a mais especulativa.

É possível que a vítima tenha sofrido dano moral? É possível ‘afirmar com certeza’ que a vítima sofreu dano moral? Finalmente, é possível que a vítima ‘não’ tenha sofrido dano moral?

Para responder, você primeiro precisa definir o critério com base em que examinará o problema para, só então, decidir se entende ter ou não havido dano moral no caso concreto.

É aqui que procuro problematizar o que estou chamando de jurisprudência sentimental do STJ.

No Recurso Especial n. 1.605.466/SP — em ação de indenização promovida por três empresas e seus sócios em face de outra empresa por alegado inadimplemento contratual —, o tribunal reconheceu a legitimidade dos sócios para pleitearem indenização por dano morais “caso se sintam atingidos diretamente por eventual conduta que lhes causem dor, vexame, sofrimento ou humilhação, que transborde a órbita da sociedade empresária” [grifei].

No Agravo Regimental no Recurso Especial n. 1.269.246/RS — em ação que discutia se um atraso de oito horas em voo doméstico causaria dano moral —, o tribunal entendeu pela não ocorrência do dano, mas apenas de “aborrecimento, sem consequências graves”. Concluindo o ponto, invocando a “melhor doutrina” e “precedentes”, pontuou que “só se deve reputar como dano moral a dor, o vexame, o sofrimento ou mesmo a humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, chegando a causar-lhe aflição, angústia e desequilíbrio em seu bem-estar” [grifei].

A mesma exigência de dor, vexame, sofrimento ou humilhação que fuja à normalidade e interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, causando-lhe aflição, angústia e desequilíbrio em seu bem-estar, pautou a decisão do STJ no Recurso Especial n. 1.234.549/SP, em ação que discutia a configuração de dano moral em caso de infiltração em imóvel decorrente de defeito na construção.

Nos três casos, o Superior Tribunal de Justiça — invocando doutrina e precedentes — decidiu que a configuração do dano moral exigiria a comprovada ocorrência de dor, sofrimento, vexame ou humilhação, fatores que, fugindo à normalidade da vida em sociedade, interferissem intensamente no comportamento psicológico da vítima, causando-lhe aflição, angústia e desequilíbrio em seu bem-estar.

Daí, pergunto: seria esse o critério definitivo para decidir-se sobre a ocorrência de dano moral? Se não houver dor, sofrimento, vexame ou humilhação, não poderá haver dano moral? Parece-me que a razão de decidir dos julgados acima aponte para uma resposta afirmativa.

Isso me lembra uma cena do filme Kill Bill, vol. 2, de Quentin Tarantino.

Leitores e leitoras: alerta de spoiler!

Beatrix Kiddo (a personagem de Uma Thurman) está em coma numa cama de hospital há vários anos. Um funcionário pilantra recebe dinheiro de estranhos para facilitar-lhes o acesso ao quarto da paciente. Eles a estupram reiteradamente. O bandido diz ao estuprador da vez que nem se preocupe com preservativo, pois a vítima já não tem útero. Vejam que, em coma, a paciente tem sua liberdade sexual sucessivamente violada, sem a menor chance de defesa.

Aqui, algumas perguntas: você acredita que Beatrix Kiddo teria sentido algum tipo de dor, vexame, sofrimento ou humilhação durante o coma? Teria ela experimentado, em alguma medida, aflição, angústia ou desequilíbrio em seu bem-estar naquela condição?

Eu nunca estive em coma, mas arriscaria dizer que, nessa condição, a pessoa não experimenta esses sentimentos e sensações. Isso me leva à pergunta seguinte: se o dano moral depende mesmo da experiência sensível de dor, vexame, sofrimento ou humilhação — e se, em coma (induzido ou não), a pessoa não tem acesso a nada disso —, seria correto dizer que Beatriz Kiddo nunca sofreu dano moral em razão dos sucessivos estupros?

Particularmente, discordo da premissa de que a configuração do dano moral exija a percepção de dor, vexame, sofrimento ou humilhação. Na minha opinião, essas figuras traduzem apenas consequências de cunho emocional ou psicológico decorrentes de um dano moral já existente. São efeitos colaterais contingentes. Não traduzem condições (necessárias ou suficientes) do dano moral, mas meros reflexos sensíveis.

Voltemos ao caso do início.

Acredito que, em regra, quando a pessoa está sob o efeito de uma anestesia geral bem-sucedida, ela não possa experimentar dor, sofrimento, vexame, humilhação, aflição ou angústia causada por impulsos externos. Posso apenas supor que, dada a gravidade da violência, todos esses reflexos psico-emocionais tenham surgido depois, com a reaquisição da consciência e o conhecimento do ocorrido. A despeito disso, considerando a sinistra possibilidade de não haver reaquisição da consciência (v.g., óbito da paciente), penso que a configuração do dano moral independa totalmente disso.

Parece-me que o melhor critério para a configuração do dano moral esteja na violação aos direitos inerentes à personalidade e à dignidade humana. Trata-se de um critério objetivo, já que não depende de qualquer reflexo psicológico ou emocional experimentado pela vítima. Não se trata, portanto, de investigar se o fato lesivo causou dor, vexame, sofrimento ou humilhação, mas se atingiu direitos fundamentais como a vida, a integridade física, a liberdade (ambulatorial, sexual, de expressão), a honra, a imagem, entre outros.

Veja que essa violação pode ser, no caso concreto, autorizada ou desautorizada pelo direito. Considere a deliberada produção de um corte profundo na região abdominal de alguém com um instrumento cortante.

Violação à incolumidade física? Certamente. Dano moral indenizável, então?

Calma…

Temos que distinguir entre a situação do médico que inicia um procedimento cirúrgico de urgência para salvar uma vida e a do assassino que inicia uma lesão corporal para destruir uma vida. Nos dois casos, a integridade física do paciente é violada, mas apenas no último temos um ‘dano moral indenizável’.

Uma última pergunta: podemos concluir que os fatores dor, vexame, sofrimento e humilhação seriam irrelevantes no que diz respeito ao dano moral?

Eu nunca disse isso…

No ponto, argumento que eles sejam irrelevantes para a configuração do dano moral, não para a definição de suas consequências jurídicas. Se imaginarmos dois casos de dano moral indenizável, penso que a intensidade in concreto dos reflexos psicológicos e emocionais possa integrar o conjunto de parâmetros a que o juiz deverá recorrer quando, na sentença, tiver que fixar o valor da indenização a ser paga à vítima. A prestação jurisdicional pode, portanto, levá-los em conta.

Em resumo, penso que, enquanto a violação a direitos inerentes à personalidade e à dignidade humana ao mesmo tempo defina e condicione a configuração do dano moral, a intensidade da dor, do sofrimento, do vexame e da humilhação (ressalvadas as idiossincrasias que lhes possam anular ou exagerar a percepção) poderá refletir-se na intensidade da resposta judicial à ocorrência do dano, auxiliando o juiz na definição das medidas destinadas a viabilizar a reparação em cada caso concreto.

Colunista

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Rogério Roberto Abreu
Doutor em Direito, Processo e Cidadania (Unicap). Mestre em Direito Econômico (UFPB). Professor de Direito Civil pela Unipê/PB. Juiz federal (PB).

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