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A NOMENCLATURA E O CONCEITO DE PESSOA COM DEFICIÊNCIA

Hoje, inicia-se a coluna Voz e Vez da Pessoa com Deficiência, cujo intento será discutir temas pertinentes à inclusão social plena da pessoa com deficiência. É importante mencionar que, embora a participação comunitária esteja ocorrendo e sendo expandida, não está em nível de plenitude ainda – conhecida também como emancipação –. Nesse sentido, discutir sobre os direitos e garantias deste grupo hipossuficiente apresenta-se como medida basilar para a conscientização – e a consequente retirada de estigmas – e para a formatação e o aprimoramento de mecanismos inclusivos.

Como o próprio nome indica, a presente coluna irá ser a vez das pessoas com deficiência terem seus interesses evidenciados e conferirá voz para que estas participem ativamente do debate. Além disso, mister se faz exaltar que o autor que assinará todos os textos presentes nesta seção faz parte de tal grupo minoritário e hipossuficiente, sentindo na pele as dificuldades impostas na busca pela emancipação.

Por este modo, a primeira discussão a ser levantada aqui é sobre a terminologia e o conceito de pessoa com deficiência, haja vista ambos serem elementos para as políticas públicas desenvolvidas que buscam atingir a inclusão social pelo fato de determinar o conjunto de indivíduos que será abarcado pelos instrumentos. Além disso, o emprego do termo escorreito transpassa a mera função de denominar algo ou alguém ante também servir como instrumento para a redução e a extinção dos próprios estereótipos.

Ao escolher a melhor expressão para designar determinado grupo hipossuficiente, deve-se buscar, acima de tudo, aquela que está desprovida de cargas negativas e discriminatórias. A construção da sociedade inclusiva, segundo Romeu Kazumi Sassaki (2003, p. 01), necessita de que haja cuidado com a linguagem, pois é por meio desta que, voluntária ou involuntariamente, se expressa a discriminação em relação a determinados sujeitos.

É cediço que todas as discussões que permeavam os aspectos terminológicos e conceituais foram encerradas pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, ambos assinados em Nova York no ano de 2007, ratificados pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº 186/08 e promulgados pelo Decreto nº 6.949/09. Aliás, evidencia-se que referido tratado de direitos humanos possui posição de destaque no ordenamento jurídico pátrio por ter sido aprovado nos moldes dos preceitos do artigo 5º, §3º, da Constituição Federal de 1988, recebendo status de emenda constitucional.

Outrossim, o debate, outrora tormentoso, é finalizado completamente com o advento da Lei nº 13.146/16, cuja edição se deu para cumprir requisitos determinados pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e também para sistematizar os direitos e as garantias do grupo hipossuficiente em foco. Batizada de Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência ou ainda de Estatuto da Pessoa com Deficiência, a norma em comento colocou verdadeira pá de cal, encerrando quaisquer dúvidas que eventualmente existissem ou pudessem surgir sobre a nomenclatura e o conceito.

Arvora-se que a expressão e a acepção adotadas pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – posteriormente corroboradas no plano interno pela Lei nº 13.146/16 – são completamente acertadas até mesmo quando analisadas sob o prisma da construção de ambas. Em outras palavras, o termo e o conceito empregados foram traçados pelo grupo hipossuficiente que estava sendo tutelado, haja vista que contou com a participação de seus membros quando da deliberação na Organização das Nações Unidas para estipular os dispositivos normativos presentes no tratado internacional supracitado.

Nesse sentido, Maurício Maia (2014, p. 02) preceitua:

 

A Convenção da ONU foi elaborada em processo que contou com a efetiva participação das pessoas com deficiência, com o mote “nothing about us without us” (“nada sobre nós sem a nossa participação”). Trata-se de parte de um processo iniciado no final do Século XX e início do Século XXI, em que começou a haver a preocupação com a inclusão e a integração das pessoas com deficiência, buscando a equiparação de oportunidades de fruição das benesses da vida em sociedade para todas as pessoas, após um longo processo histórico de rejeição e segregação pelo qual passaram as pessoas com deficiência.

Por conseguinte, o termo a ser utilizado para designar os membros do grupo em apreço é, como os próprios nomes das normas – interna e externa – retratam, pessoa com deficiência, não podendo aplicar qualquer outro por estar em desconformidade com a norma internacional recepcionada com status de emenda constitucional e pela expressão ter sido escolhida pelos próprios indivíduos tutelados.

Além do mais, as demais nomenclaturas que eram utilizadas não traduziam devidamente o grupo em estudo, possuindo, por vezes, sentidos ambíguos e/ou imprecisos. Exemplifica-se com a terminologia pessoa portadora de deficiência, a qual está incorreta pela razão de que, ainda que enfatize preambularmente a pessoa, destaca como característica que esta porta, isto é, carrega/possui uma deficiência, o que dá a falsa sensação de consistir em mero objeto que pode ser retirado e guardado a qualquer momento. (BUBLITZ, 2012, p. 357)

Da mesma forma, o termo pessoas com necessidades especiais não engloba devidamente o grupo hipossuficiente por ter sentido amplo, podendo abarcar todo e qualquer conjunto de sujeitos que possuem necessidades especiais, ou seja, que ensejam cuidados e atenção distintos das despendidas para os demais seres humanos. Aqui, essa nomenclatura alcança outros grupos hipossuficientes, como, por exemplo, os idosos, as gestantes, as crianças, dentre outros. (BUBLITZ, 2012, p. 357)

A nomenclatura escolhida, qual seja pessoa com deficiência, apresenta-se como a ideal por exaltar a pessoa e colocar a deficiência como mera qualificadora, ou seja, como atributo inerente do sujeito, sem que deixe subentendido quaisquer mensagens inapropriadas ou estereotipadas. Dados o estado da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência no ordenamento jurídico brasileiro e o próprio advento da Lei nº 13.146/15 que ratificou diversos pontos do tratado retromencionado, todos os ambientes devem adotar a expressão passada alhures, sob a pena de incorrer em imprecisão e estar corroborando atitude capacitista.

Traçadas todas as considerações sobre a terminologia, cumpre salientar então sobre a conceituação estipulada. Anota-se que, segundo Mauricio Maia (2014, p. 02), a própria norma internacional admite, na alínea e de seu preambulo, que a acepção é dotada de incompletude, dependendo de verificações e atualizações a cada contexto histórico por ser imprescindível considerar a dimensão social para traçar a definição, não mais considerando como algo intrínseco à pessoa. Isto posto, convém transcrever o texto legal que trata sobre a conceituação.

Por repetir praticamente ipsis litteris a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, cita-se o artigo 2º da Lei nº 13.146/15:

 

Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

§ 1º A avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar e considerará:

I – os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo;

II – os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais;

III – a limitação no desempenho de atividades; e

IV – a restrição de participação.

§ 2º O Poder Executivo criará instrumentos para avaliação da deficiência.

 

Nessa senda, percebe-se que o conceito apontado pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência – bem como pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, sua norma fundante – considera a deficiência como uma construção social e não unicamente como atributo que deve ser avaliado exclusivamente sob a ótica médica. Assim, perfeitamente possível concluir que as normas supramencionadas adotam critério biopsicossocial, deixando de lado o mero viés médico-biológico. A deficiência é identificada, portanto, quando da interação da limitação – física, mental, intelectual ou sensorial – presente no indivíduo com as barreiras existentes na sociedade que dificultam a sua participação plena.

O atual conceito apresenta-se como inovador e ideal pelo fato de que, verdadeiramente, a condição de ser pessoa com deficiência apenas existe devido aos entraves encontrados quando da inserção comunitária do sujeito. Sem a existência das barreiras, as limitações deixam de ser importantes para o prisma social. Nesse quesito, tanto a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência quanto a Lei nº 13.146/15 optam por disposições que busquem a emancipação do grupo hipossuficiente em tela, deixando de lado politicas meramente assistencialistas.

Em mesmo sentido, Ricardo Tadeu Marques da Fonseca (2012, p. 48) explicita:

 

Interessante observar que o conceito de pessoa com deficiência está intimamente ligado ao propósito político do Tratado em estudo. A almejada emancipação da pessoa com deficiência não pode prescindir da superação do viés assistencial que, como já disse, por melhor intencionado que seja, não pode esgotar-se em si mesmo, sob pena de retirar destes cidadãos sua civilidade e dignidade inerentes. As medidas de cunho assistencial devem ser associadas a políticas públicas que assegurem a franca superação dos assistidos para que assumam a direção de suas vidas e o gozo pleno de seus direitos humanos básicos.

 

Mister se faz salientar que as barreiras comentadas alhures não são somente aquelas presentes em espaços físicos que atrapalham o acesso ao lugar, como, por exemplo, a falta de rampas, o caixa eletrônico em altura incompatível para o cadeirante, etc. As barreiras aqui expostas são as previstas no artigo 3º, IV, do Estatuto da Pessoa com Deficiência, referindo-se a todo entrave existente em ambientes físicos, em sistemas de comunicação e de informação, em questões relativas à tecnologia e em comportamentos e atitudes visíveis na sociedade. Sobre a questão dos obstáculos e do papel da acepção atual, Fonseca (2012, p. 48) argumenta:

 

Os impedimentos de caráter físico, mental, intelectual e sensorial são, a meu sentir, atributos, peculiaridades ou predicados16 pessoais, os quais, em interação com as diversas barreiras sociais, podem excluir as pessoas que os apresentam da participação na vida política, aqui considerada no sentido amplo. As barreiras de que se trata são os aspectos econômicos, culturais, tecnológicos, políticos, arquitetônicos, comunicacionais, enfim, a maneira como os diversos povos percebem aqueles predicados. O que se nota culturalmente é a prevalência da ideia de que toda pessoa surda, cega, paraplégica, amputada ou com qualquer desses impedimentos, foge dos padrões universais e por isto têm um “problema” que não diz respeito à coletividade. É com isso que se quer romper.

 

Em última análise sobre o artigo 2º do Estatuto da Pessoa com Deficiência, os incisos tratam sobre a avaliação por equipe multidisciplinar para a constatação da deficiência. Aqui, cita-se escólio de Cristiano Chaves de Farias, Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto (2016, p. 25):

 

A avaliação biopsicossocial é aquela que considera aspectos sociais que circundam o deficiente, além, por óbvio, de dados médicos capazes de demonstrar sua incapacidade. Na avaliação biopsicossocial há, portanto, a junção desses dois aspectos na abordagem do deficiente, superando-se, nessa linha de raciocínio, o simples modelo biológico, para se considerar, em acréscimo, fatores sociais outros como nível de escolaridade, profissão, composição familiar etc.

Todas as mudanças realizadas na nomenclatura e na conceituação advêm da efetivação do direito à diferença. O antigo entendimento assistencialista está devidamente superado para contemplar a busca pela emancipação dos grupos hipossuficientes, feita a partir da aceitação da presença da diversidade. Dessa forma, os seres humanos passam a ser vistos como distintos entre si, devendo respeitar as características que os tornam únicos. Percebe-se que há a compreensão de que a sociedade é heterogênea, com diferentes características em seus membros.

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e a Lei nº 13.146/15 incorporam essa ideia em suas disposições, primando pelo cumprimento do direito à diferença. Nesse sentido, Mateus Costa e Pedro Spíndola Bezerra (2013, p. 15) expressam:

 

A diversidade humana não pode ser ignorada. A ideia de um padrão, modelo humano, em detrimento às suas ilimitadas possibilidades, engessa o avanço de uma mentalidade coletiva que pretende incluir a diversidade como regra, jamais como exceção. O novo conceito de pessoa com deficiência redimensiona a relação da pessoa com o ambiente e inverte o ônus da diferença; retira, pois, da pessoa, deslocando ao ambiente, resguardando o direito à diferença. Este entrelaçamento é inescapável e precisa repercutir em todas as esferas sociais para que a redefinição de um conceito que nos é tão elementar possa realmente provocar um vórtice nas relações interpessoais e engendre a formação da sociedade plural e sem preconceitos vislumbrada pela Constituição.

 

Por fim, encerrando-se esta primeira postagem na coluna Voz e Vez da Pessoa com Deficiência, todos os temas propostos seguirão os preceitos da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e da Lei nº 13.146/15, as quais constituem, frisa-se, em importantes marcos para a busca pela inclusão social plena e em normas fundantes para toda e qualquer ação afirmativa que for criada ou fomentada.

 

Referências:

BUBLITZ, Michelle Dias. Conceito de pessoa com deficiência: comentário à ADPF 182 do STF. Revista da AJURIS, v. 39, n. 127, p. 353-369, 2012.

FARIAS, Cristiano Chaves de; CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Estatuto da pessoa com deficiência comentado artigo por artigo. Salvador: Editora JusPodivm, 2016.

FONSECA, Ricardo Tadeu. O novo conceito constitucional de pessoa com deficiência: um ato de coragem. Revista do TRT da 2ª Região, São Paulo, n. 10, p. 45-54, 2012.

MAIA, Maurício. Novo conceito de pessoa com deficiência e proibição do retrocesso. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF, 11 fev. 2014. Disponível em <http://www.pcd.mppr.mp.br/arquivos/File/novo_conceito_de_pessoa_com_deficiencia_e_proibicao_do_retrocesso.pdf>. Acesso em 21 mar. 2021.

PEREIRA Mateus Costa; ALVES Pedro Spíndola Bezerra. Redefinição constitucional de pessoa com deficiência e o direito à diferença. Revista Brasileira de Tradução Visual, v. 15, n. 15, 2013. Disponível em <https://adww.online/redefinicao-constitucional-de-pessoa-com-deficiencia-e-o-direito-a-diferenca/>. Acesso em 21 mar. 2021.

SASSAKI, Romeu Kazumi. Terminologia sobre deficiência na era da inclusão. Revista Nacional de Reabilitação, v. 5, n. 24, p. 6 – 9, 2003.

 

 

Colunista

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Murilo Muniz Fuzetto
Doutorando e mestre em Direito pela Universidade de Marília (UNIMAR). Bacharel em Direito e Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Toledo Prudente Centro Universitário. . Supervisor de Prática Profissional na Toledo Prudente, auxiliando nas disciplinas de Estágio Supervisionado I (meios autocompositivos de solução de conflitos) e de Estágio Supervisionado II (arbitragem). . Advogado. Sócio do escritório Fuzetto & Zago Advocacia e Consultoria.

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