Juridicamente

A PEC n.° 18/2021 é inconstitucional e representa um retrocesso constitucional

Por Rosa Maria Freitas*

 

A PEC n. 18/2021 traz polêmicas e retrocessos. A Câmara dos Deputados, na Comissão de Constituição e Justiça, aprovou a admissibilidade de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC 18/21) que anistia partidos que não cumpriram os percentuais mínimos de financiamento de campanhas de mulheres e de promoção e difusão da participação política de diversidade de gênero.

Cabe lembrar que hoje deveriam  cumprir a cota de gênero na proporção mínima de 30% a 70% das candidaturas de diversidade de gêneros e utilizarem os percentuais mínimos de 30% de financiamento de campanhas de mulheres e de 5% de promoção e difusão da participação política de mulheres.

O projeto seguiu para o Senado, para cumprir os trâmites de duas votações em cada casa.

Mas não somente isso, na PEC referida ainda ficou assentado que somente 30% dos investimentos para a diversidade racial nas eleições, desvinculando o investimento  proporcional ao número de candidatos negros. A proposta ainda anistia os Partidos políticos e imporia a Justiça Eleitoral a proibição de condena-los por infração aos investimentos na cota de gênero e racial.

Conforme se insurge a deputada Fernanda Melchionna (Psol-RS) que citou alguns dos motivos por que é contra a proposta: “A PEC 18, no seu art. 3º, anistia os  partidos que tiveram condenação por candidaturas laranjas. Então, trata-se de anistia ampla, geral e irrestrita. Além disso, tipifica como piso o teto. Hoje há uma conquista que não veio desta Câmara, veio da luta das mulheres e da decisão do TSE de acompanhar os 30% de fundo eleitoral, os 30% de cotas de mulheres. A PEC transforma isso em piso, que fica no mínimo em 30%, inclusive se o partido tiver 50% ou 70% de candidaturas femininas”, afirmou. (Fonte  Agência da Câmara).

A redação da PEC ainda anistia dívidas dos partidos e concede um REFIS (refinanciamento fiscal) especial para suas dívidas tributárias, que só podem ser na modalidade previdenciária.

Na sistemática interseccionalidade m 2022, por exemplo, as mulheres conquistaram 18% das cadeiras na Câmara dos Deputados, embora sejam 51,5% da população, segundo dados do Censo daquele ano. Na mesma  eleição, negros e pardos conquistaram 26% dos espaços da Câmara; mas são 55,5% da população, de acordo com a pesquisa do IBGE.

Óbvio que a questão moral seria a primeira crítica. É um retrocesso para a participação feminina e a diversidade racial no Congresso de esmagadora maioria masculina e branca.

Já por outro lado, ficamos ainda com mais pesar sobre a negativa dos parlamentares em agirem com a decência que se  espera dos representantes do povo. Eles modificam a Constituição em benefício próprio, maculando a democracia.

Muitas perguntas surgem dessa questão.

  1. Esse perdão se aplica às eleições de 2024 se for aprovada mesmo posterior ao pleito?
  2. Os partidos podem se negar a cumprir as Resoluções TSE de fevereiro de 2024 logo agora enquanto vigentes mas na iminência que a PEC será aprovada para anistia-los?
  3. Há retroatividade nesse caso, as eleições podem ter suas normas modificadas no curso da realização das eleições?
  4. Os parlamentares invadem e comprometem a atuação da Justiça Eleitoral ao anistiar penas impostas conforme regras vigentes a época do pleito?

São perguntas desafiadoras para os profissionais do direito.

 

Respostas:

  1. Princípio da anualidade da lei eleitoral

A regra vigente na Constituição diz que precisaria de um ano antes do pleito a aprovação de regras que modifiquem as eleições. Esse princípio está expresso no artigo 16 da Constituição de 1988, para o qual “A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”.

Assim, considero que não deveria ser aplicada nas eleições de 2024 na pior das hipóteses.

 

  1. Princípio da proibição de retrocesso

Considero que a PEC altera os investimentos nas candidaturas destinadas à diversidade racial e de gênero. Desta forma, compromete o princípio implícito da proibição de retrocesso. A previsão constante nas ECs n.° 111 e n.° 117 são significativas para o progresso democrático do sistema brasileiro, pois ampliam a participação das minorias sociais. Então, a primeira questão é que consideraria a proposta inconstitucional pelo princípio da proibição de retrocesso. E mesmo que fosse possível somente poderia ser aplicada ao próximo pleito em relação à divisão proporcional de recursos da candidaturas e a obrigação de investimento dos partidos na formação de quadros femininos.

A retroatividade, nesse caso, considero que não deveria haver, por conta da propria sistemática eleitoral. A aceitação da tese da proibição de retrocesso tem vasta adesão do Supremo Tribunal Federa – STF., O Princípio da Vedação ao Retrocesso Social já foi reconhecido pelo STF em algumas oportunidades, tendo como referência o julgamento do ARE 639.337, relatado pelo ministro Celso de Mello, segundo: “A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. (…). Em consequência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar — mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados”.

No caso, o direito fundamental de valorização é promoção da participação de pessoas negras e candidaturas femininas não pode retroceder. Os direitos políticos não podem caminhar para traz.

 

  1. Tripartição dos Poderes

No mais, a atuação do Congresso Nacional ao anistiar os partidos vai de encontro ao equilíbrio entre os Poderes. Parece-me que se trata de uma “estranha” anistia, em que o Congresso perdoa de forma ampla o descumprimento da legislação e da Constituição por ele mesmo editada. Não se trata de um fato jurídico específico, mas de uma verdadeira conduta imoral e acintosa ao sistema  democrático.

A anistia prevista no art. 7, II, do Código Penal, é uma modalidade de perdão amplo e irrestrito. Isso não é novidade no Brasil, já que os crimes cometidos pelos agentes estatais durante a ditadura militar foram anistiados, juntamente com a anistia às vítimas condenadas pelos aparelhos repressores. O que levou o Brasil à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, mas mesmo assim resistiu o STF sobre o tema. A Lei de Anistia (Lei 6.683/1979), portanto, seria incompatível com a Convenção Americana de Direitos Humanos, porém na ADPF 153 o STF não sedimentos esse entendimento.

Enquanto, vizinhos como Argentina e Chile apuraram os crimes, o Brasil numa interpretação anômala da norma incluiu os militares, amplamente reconhecidos pelo sistema como autores de crimes de várias ordens e atentatórios a diginidade da pessoa humana

A anistia dos partidos pelo descumprimento das cotas de gênero na forma prevista na recente Súmula 73 do TSE é estranha e fere princípios basilares do direito como  boa-fé, a repartição de poderes e a atuação da Justiça Eleitoral em garantir um ambiente democrático saudável. Se os políticos podem após serem anistiados por si mesmos, para que serve a jurisdição eleitoral?

Lamentavelmente, como os dois principais partidos em sintonia, PT e PL, parece que a aprovação da PEC é uma questão de pouco tempo.

 

  1. As eleições em curso, como ficam?

No mais os partidos, estão já com as convenções realizadas e a norma vigente hoje determina o cumprimento de deveres previstas na Constituição, Lei dos Partidos Políticos e Resoluções do TSE. Assim, devem os partidos seguir as normas vigentes ao tempo da realização das eleições, sendo incabível seu descumprimento por existência de norma jurídica futura e incerta.

A anistia proposta na PEC criou esse aparente limbo jurídico que parece permitir a os partidos ignorarem a legislação e as Resoluções do TSE bem como não serem executadas as multas e demais penalidades já impostas pelo Judiciário.

 

  1. É possível o STF declarar a PEC inconstitucional?

Não é novidade que o STF declare uma PEC inconstitucional. Já o fez com a PEC n.° 123/2022.  Do mesmo modo, há uma plausibilidade de declaração de inconstitucionalidade da PEC 45.

Assim, como é defensável afirmar que a PEC 45 viola o art. 5º, §2º, da CF, que assim estabelece: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Apesar dos assuntos diversos, o STF não te pudores sobre o tema. O mesmo quando para preservar sua competência.

Mas o que sobra no caso é uma imensa aliança política suprapartidária para isentar os próprios partidos e parlamentares. O STF precisaria de muito fôlego para suportar a pressão.

O STF também já anulou o indulto concedido à Daniel Silveira (ADPFs 964, 965, 966 e 967) por Bolsonaro. Intervindo sobre uma situação nova e inexistente. Entre os argumentos da Ministra Carmen Lúcia se sobressaiu a impessoalidade, que me parece também aplicável nesse caso de anistia aos partidos pelo descumprimento de normas imperativas e moralizadoras do processo eleitoral.

 

  1. Sobre o REFIS

O refinanciamento das dívidas e multas dos partidos incluídos nessa proposta também considero que fere a legislação. Da mesma forma que há a pretensão de uso dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha – FEFC para pagar as multas e encargos. Os partidos por sua atuação somam dívidas trabalhistas e previdenciárias, são associações civis e como tais são privados. Sendo, nesse caso uma confusão entre público e privado a utilização do recurso para tal fim. Óbvio que sei que a situação dos partidos é precária, em sua maioria não por ausência de recursos, mas de boa gestão. Como não se tem como falir um partido político, o REFIS é inevitável, mesmo que o direito não seja dos melhores.

No mais, o FEFC está vinculado a um fim específico, que são as eleições.. São recursos públicos, já que o Brasil tem um sistema misto, sendo possíveis o financiamento privado de pessoas físicas. O que é não utilizado na campanha deve ser devolvido aos cofres públicos. Assim, desnatura a natureza dessa receita vinculada o pagamento de multas e outros dívidas dos partidos.

Os partidos recebem um fundo partidário mensal para arcar com suas atividades ordinárias, além de contribuição de filiados e outras receitas.

 

  1. Perpectiva Transconstitucional

Cabe ainda relembrar que o Brasil é signatário dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável em especial o ODS 5, ODS 10 e ODS 16.

No ODS 5 prevê o compromisso de  “Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”,  e no subitem 5.5  das Nações Unidas: “Garantir a participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública”.

O compromisso do Brasil  foi “Garantir a participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão na esfera pública, em suas dimensões política e econômica, considerando as intersecções com raça, etnia, idade, deficiência, orientação sexual, identidade de gênero, territorialidade, cultura, religião e nacionalidade, em especial para as mulheres do campo, da floresta, das águas e das periferias urbanas”.

Mas os indicadores estão muito aquém de alcançar as metas.

O ODS 10 prevê que: Reduzir a desigualdade dentro dos países e entre eles

Meta 10.1

  • Nações Unidas

Até 2030, progressivamente alcançar e sustentar o crescimento da renda dos 40% da população mais pobre a uma taxa maior que a média nacional.

  • Brasil

Até 2030, progressivamente alcançar e sustentar o crescimento da renda dos 40% da população mais pobre a uma taxa maior que a renda média dos 10% mais ricos.

As pessoas mais pobres são os negros no Brasil e não há como melhorar o vácuo histórico das população tradicionais e pessoas negras e migrantes sem a ação institucional.

Já a ODS 16 prevê que “Paz, Justiça e Instituições Eficazes” .

Com o objetivo de “Promover sociedades pacíficas e  inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis”

O subitem da Meta 16.7 prevê que as Nações Unidas

“Garantir a tomada de decisão responsiva, inclusiva, participativa e representativa em todos os níveis”.

E ainda Meta 16.b que as Nações Unidas devem

“Promover e fazer cumprir leis e políticas não discriminatórias para o desenvolvimento sustentável”.

Assim, a PEC vai de encontro aos compromissos brasileiros internacionais e é um retrocesso inquestionável na ampliação da participação das mulheres, dos negros e compromete a autonomia do judiciário em promover o cumprimento das  normas adequadas para as instituições serem eficazes.

Em dezembro de 2023 foi instituída a Comissão Nacional dos ODS (Decreto 11.704/2023), com formação paritária – 84 membros, sendo metade representantes de governo e metade, da sociedade civil. Com a reinstalação CNODS, foi criada a Câmara Temática para o ODS 18 (Resolução n.°2/2023), para dar continuidade às discussões sobre o ODS 18 e apresentar um Plano de Trabalho.

 

Concluo!

Considero que a PEC n.° 18/2021 é inconstitucional diante do princípio implícito da proibição de retrocesso, além de afrontar as decisões transitadas em julgado da Justiça Eleitoral ferindo a tripartição dos Poderes.

Não considero que deve existir retroatividade da lei e anistir os

partidos até porque o art. 16 da própria Constituição confirma que as normas vigentes e não alteradas um ano antes das eleições não se aplicam ao pleito.

No mais, prosperar a anistia aos partidos que descumprem o dever de promover as diversidades de gênero e racial é imoral, absurda e de má-fé dos parlamentares. Além disso vão de encontro aos ODS’s 5, 10 e 16, comprometendo a inserção do Brasil no cenário internacional.

Não tenho ideia de como o STF vai se posicionar nesse caso diante da alta pressão política que sofrerá, caso exista um ADI ou ainda um Mandado de Segurança que objetive obstacularizar o seguimento da matéria.

Considero que a anistia prevista na proposta tem os mesmos vícios do indulto concedido por Bolsonaro a Daniel Silveira, fere os princípios da impessoalidade, moralidade,  boa-fé e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável.

No mais seria contradição se o Brasil sugere a ODS 18, em debate nas Nações Unidas, e modifica as normas internas em desfavor da igualdade racial.

 

*Doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2014), Mestra em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2007).  Já atuou como professora substituta da Universidade Federal de Pernambuco (2013-2014) e foi Professora da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Autora de capítulo de livros e diversos artigos jurídicos em revistas especializadas. Advogada publica concursada da Prefeitura do Cabo de Santo Agostinho e Advogada

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