A realidade que constrange o juiz e o juiz que constrange a realidade
*Por Eduardo José da Fonseca Costa
À Dra. Ana Luiza Rodrigues Braga
«Reality cannot be ignored except at a price; and the longer the ignorance is persisted in, the higher and more terrible becomes the price that must be paid» (Aldous Huxley)
A estrutura da realidade se impõe, constrange, reprime, coarcta, detém, impede o agir pleno, reprocha as convenções caprichosas, refreia a liberdade imputacional pretensamente irrestrita. O engenheiro aeronáutico é constrangido pela lei da gravidade; o planejador macroeconômico, pela lei da oferta e da procura; o engenheiro nuclear, pela força que «cola» entre si prótons e nêutrons no núcleo atômico. O juiz também é constrangido por uma realidade, que está fora dele, que dele independe e que minuto a minuto lhe aplaca os ímpetos. Geralmente, ela se estrutura no processo e pelo processo, impedindo-o de manipular o processamento da causa e o resultado dos seus próprios julgamentos e, por isso, de descair da sua devida imparcialidade. Impede-o de processar e julgar, por exemplo, movido por interesses próprios ou alheios, egoísticos ou altruísticos, louváveis ou reprováveis, confessáveis ou inconfessáveis, que sobreponham a sua subjetividade à objetividade da causa. Elimina do processamento e do julgamento qualquer fator judicial biopsíquico racionalmente incontrolável (vieses cognitivos, traumas de infância, medos, receios, recalques, desejo de vingança, dolo de favorecimento ou perseguição, justiçamentos, rompantes, juízos de equidade contra legem, ideologia político-social, preconceitos de classe, raça, cor, religião, gênero, orientação sexual, idade, nacionalidade, nível cultural etc.). Os resultados do processamento e do julgamento são determinados apenas e tão somente por fatores exógenos à psique judicial.
Logo, a realidade ocupacional que constrange o juiz é um conjunto de dados que se lhe impõem ab extra, não um construído que ele arquiteta ab intra. Se assim não fosse, o juiz planejaria a própria realidade que deveria reprimi-lo e, naturalmente, a abrandaria para se desreprimir. Ela se faz de dados externos objetivos, que funcionam como «grilhões invisíveis» e que são impostos ao juiz pelas PARTES (ex.: atuação estratégica das partes e dos seus advogados, fatos relevantes para o deslinde da causa, fundamentos jurídicos invocados, pedidos formulados, provas produzidas), pelo LEGISLADOR (ex.: distribuição do ônus probatório, direito material aplicável ao caso, sequência procedimental, limites da competência jurisdicional a ser exercida) e pela TRADIÇÃO (ex.: força conviccional de cada uma das provas produzidas no caso concreto, sentido das palavras utilizadas nos textos normativos aplicáveis ao caso) (obs.: não integram essa realidade razões extrajurídicas de índole moral, religiosa, política, econômica, estética, científica, modal e educacional). Daí já se nota que a realidade ocupacional que constrange o juiz não é um inteiriço monolítico, mas um conglomerado, uma mistura, um amálgama, uma justaposição classificatória, uma agregação de elementos, uma junção proposital de partes heterogêneas entre si. Enfim, essa realidade é produto de uma coalescência. O macroconstrangimento promovido pela realidade total nada mais é que a soma dos microconstrangimentos promovidos por cada uma das partes. Isoladas, elas constrangem parcialmente; somadas, constrangem totalmente.
Como já visto acima, a realidade ocupacional, que obsta o Estado-jurisdição de processar e julgar as causas ao seu bel-prazer, se constitui fundamentalmente das seguintes partes ou elementos: 1) a atuação das partes e dos seus advogados; 2) os fatos alegados pelas partes; 3) os fundamentos jurídicos invocados pelas partes; 4) os pedidos formulados pelas partes; 5) o ônus probatório distribuído ex ante a cada uma das partes; 6) as provas aportadas pelas partes; 7) o valor conviccional que cada prova assume dentro do contexto probatório; 8) as regras jurídicas de direito material aplicáveis ao caso; 9) o sentido técnico dos vocábulos utilizados nos textos jurídico-normativos; 10) procedimento legal que organiza a sequência tanto dos debates quanto das resoluções judiciais; 11) os limites da esfera de competências do órgão judicante. Trata-se de uma realidade constrangedora undécupla, de uma trama de onze valiosos «fios invisíveis», que amarram o juiz, prendendo-o aos quadrantes elevados da republicanidade democrática.
O juiz não deve interferir ou tomar partido no modo de atuação que cada parte, por meio do seu representante letrado, elegeu para si própria e, destarte, não deve auxiliá-la nem a prejudicar funcionalmente [= imparcialidade, isenção, neutralidade ou desinteresse subjetivo]. O juiz não deve interferir ou tomar partido nos fundamentos de fato, nos fundamentos de direito, nos pedidos e nos elementos de prova aportados aos autos pelas partes ao longo das discussões [= imparcialidade, isenção, neutralidade ou desinteresse objetivo]. O juiz não deve interferir ou tomar partido na força conviccional dos meios probatórios produzidos pelas partes e, assim, não deve atribuir extrinsecamente à prova um valor que ela intrinsecamente não tem [= imparcialidade, isenção, neutralidade ou desinteresse valorativo-probatório]. O juiz não deve interferir ou tomar partido no sistema de regras jurídicas de direito material aplicável ao caso, suplantando-as sem lhes pronunciar a inconstitucionalidade, modificando-as para as ajustar ao seu gosto pessoal ou criando-as à margem de processo legislativo regular [= imparcialidade, isenção, neutralidade ou desinteresse normativo]. O juiz não deve interferir ou tomar partido no sentido técnico das palavras empregadas pelo legislador na esquematização do texto de direito positivo, atribuindo a elas um sentido não compartilhado pela comunidade dos partícipes daquele jogo de linguagem [= imparcialidade, isenção, neutralidade ou desinteresse semântico]. O juiz não deve interferir ou tomar partido no procedimento estabelecido pelo legislador [= imparcialidade, isenção, neutralidade ou desinteresse procedimental]. O juiz não deve interferir ou tomar partido na sua própria esfera de atribuições, usurpando competência jurisdicional alheia, invadindo competências não jurisdicionais (em especial dos Poderes Legislativo e Executivo), desvencilhando-se da própria competência, ou simplesmente inventando competências inexistentes [= imparcialidade, isenção, neutralidade ou desinteresse competencial].
Entretanto, como cediço, a Modernidade trouxe a (pretensa) primazia da subjetividade sobre a objetividade. Dessa maneira, a relação se inverteu completamente. O sujeito passou a acreditar que ele não é determinado nem constrangido pela realidade, mas é ele quem a determina e a constrange no todo ou em parte. Tudo se passa como se em alguma medida o real se constituísse pensativamente. As consequências dessa inversão para a atividade humana têm sido desastrosas. Uma delas é a crença niilista na impossibilidade da neutralidade, da isenção, da imparcialidade, do conhecimento objetivo. No plano jornalístico, por exemplo, assiste-se ao abandono de qualquer esforço objetivante de autocontenção na produção da notícia: o jornalista emite uma opina sobre o fato noticiado, constitui-o em alguma medida e, portanto, induz o leitor à sua mesma opinião. Nesse sentido, liberou-se das amarras que a realidade constrangedora específica do seu meio profissional lhe impunha, passando a realizar um «jornalismo crítico, ativista ou engajado». No plano sociologístico, igualmente, assiste-se ao abandono de qualquer esforço objetivante de autocontenção na produção da pesquisa: o sociólogo assume uma posição ideológica sobre o fato social pesquisado, constitui-o em alguma medida e, por conseguinte, induz o leitor à sua mesma ideologia. Nesse sentido, liberou-se das amarras que a realidade constrangedora específica do seu meio profissional lhe impunha, passando a realizar uma «sociologia crítica, ativista ou engajada». No plano dramatúrgico também se assiste ao abandono de qualquer esforço objetivante de autocontenção na representação teatral: o ator toma partido no papel representado, constitui-o em alguma medida e, portanto, induz o espectador à sua visão de mundo sobre o enredo em geral e sobre o personagem em particular. Nesse sentido, liberou-se das amarras que a realidade constrangedora específica do seu meio profissional lhe impunha, passando a realizar uma «dramaturgia crítica, ativista ou engajada».
Pois algo similar ocorre no plano jurisdicional. Assiste-se ao abandono de qualquer esforço objetivante de autocontenção no exercício da jurisdição. Juízes e tribunais têm se posicionado antecipadamente sobre o mérito movidos por psiquismos incontroláveis (na ordinariedade dos casos, por ideologias políticas fundadas em utopias sociais igualitaristas), descaído em quebras sistêmicas de isenção, agido com uma espécie de «dolus bonus de privilegiamento funcional» (chamado por alguns de «parcialidade positiva») e usado os seus amplos poderes materiais para direcionar interessadamente o processamento e o julgamento da causa de acordo com aquele posicionamento inicial, liberando-se das amarras da sua realidade constrangedora undécupla e, dessa forma, desempenhando uma «judicatura crítica, ativista ou engajada». Ao fim e ao cabo, eis o que se tem: militantes disfarçados, respectivamente, de jornalistas, sociólogos, atores e juízes. Em suma: tem-se a profissionalização da impostura irrealista e pueril.
À vista disso, o juiz engajado da Modernidade deixou de ser refém 1) da atuação exclusiva das partes e dos seus advogados, 2) dos fatos que elas alegam, 3) dos fundamentos jurídicos que invocam, 4) dos pedidos que formulam, 5) dos ônus probatórios que se lhes imputam de antemão, 6) das provas que produzem, 7) do valor conviccional dessas provas em si mesmas, 8) do direito material aplicável para a resolução do caso prático, 9) do sentido das palavras que compõem o texto normativo, 10) do procedimento legal padrão e 11) dos limites da sua competência jurisdicional. Em síntese, deixou de ser imparcial em todos os aspectos compreendidos na noção de imparcialidade. By the way, deixou de sê-lo amparando-se em ampla doutrina de feição jurisdicionalista, judicialista, judiciocrática, judiciocêntrica. O juiz se alforriou de (1) pela doutrina do cooperativismo processual (que modela o processo como uma comunidade de trabalho em que o juiz e as partes atuam em colaboração recíproca para a obtenção de uma decisão de mérito «justa e efetiva»); de (2) pela doutrina da inadstrição fática; de (3) pela doutrina pela inadstrição jurídica (conhecida igualmente como iura novit curia); de (4) pela doutrina da incongruência; de (5) pela doutrina da carga probatória dinâmica (que permite ao juiz atribuir casuisticamente o ônus probatório de modo diverso daquele estabelecido na lei a fim de possibilitar ou facilitar a obtenção da prova); de (6) pela doutrina da iniciativa judicial probatória; de (7) pela doutrina do livre convencimento (cuja versão mais escrupulosa e um pouco menos discricionarista é o livre convencimento «motivado ou racional»); de (8) pelo jusmoralismo (em que o juiz, mediante a invocação de princípios nem sempre positivados, supera regras legais expressas, modifica regras legais expressas e cria regras não raro já rejeitadas em processo legislativo regular) e pelo neoconstitucionalismo (em que os direitos fundamentais são tratados como princípios ou «estados ideais de coisas» ponderáveis entre si); de (9) pela doutrina do ceticismo metodológico (segundo a qual o juiz escolhe discricionariamente entre os significados possíveis do texto normativo); de (10) pela doutrina da flexibilização procedimental (que permite ao juiz adequar o procedimento legal às vicissitudes do caso e às particularidades do ramo do direito material aplicável); de (11) pela doutrina do ativismo judicial (que permite ao juiz investir-se ou intrometer-se em funções típicas dos Poderes Legislativo e Executivo sempre que eles se demitam delas, ou as exerçam de modo insuficiente ou ineficiente).
Perceba-se que se fala aqui em «doutrinas», não em «teorias», porquanto ignoram a prescrição constitucional do processo como direito de defesa ou resistência do cidadão contra o Estado-juiz [CF/1988, art. 5º, LIV], desnaturando o processo em instrumento, ferramenta, utensílio ou método a serviço do poder jurisdicional (o que quase sempre configura uma atitude paeudodogmática, que deposita no juiz a concretização de pautas político-ideológicas rejeitadas democraticamente nos âmbitos governamental e parlamentar).
É indubitável que algumas dessas doutrinas não são um produto propriamente moderno. Basta lembrar-se, por exemplo, que o iura novit curia remonta ao procedimento civil romano e que a prova per officium iudicis tem as suas principais raízes no procedimento penal europeu medieval. Em todo caso, é inegável outrossim que a Modernidade agrupa todas essas doutrinas em um corpo global coerente, fazendo-o à luz de uma percepção «renovada» sobre a função social do juiz. Cada uma dessas doutrinas, tomada singularmente, é em si mesma uma unidade histórica. Cada uma delas teve a pretensão de resolver um problema pontual no espaço-tempo em que viveram os seus artífices. Cada uma delas se debruçou sobre uma rigidez específica da imparcialidade e procurou afrouxá-la em situações excepcionais com o objetivo de propiciar aqui e ali julgamentos mais «justos», «equânimes», «legítimos» ou «caridosos». Os juristas moralistas perceberam que a parte aparentemente socorrida pelo «ideal de justiça» nem sempre escolhe a melhor estratégia de atuação processual, nem sempre alega em benefício próprio os fatos mais relevantes, nem sempre invoca os melhores fundamentos jurídicos para o embasamento das suas pretensões, nem sempre formula adequadamente os seus pedidos, nem sempre consegue desincumbir-se dos seus ônus probatórios, nem sempre produz provas úteis e convincentes (aliás, muitas vezes produz provas inúteis ou inconvincentes), nem sempre é amparada pelas regras de direito material positivo e pela letra dos seus respectivos enunciados, nem sempre enfrenta um procedimento adequado às peculiaridades da pretensão que deduz em juízo, nem sempre tem as suas pretensões satisfeitas ante falta de competência especifica do juiz para tanto. Enfim, a parte aparentemente socorrida pelo «ideal de justiça» nem sempre vence em juízo (obs.: a maioria esmagadora desses juristas raramente se desincumbe do dever epistêmico de apresentar uma teoria metaética sobre esse «ideal de justiça» e, assim, justificar as exceções à rijeza da imparcialidade e torná-las racionalmente controláveis).
Logo, não se pode alegar que cada uma dessas doutrinas tenha sido isoladamente concebida com a intenção malévola de permitir ao juiz que manipule os resultados dos seus próprios julgamentos. Contudo, «onde passa um boi, passa uma boiada». À medida que elas foram sendo gestadas ao longo dos séculos, foram ajuntando-se pouco a pouco umas às outras. Como era de se esperar, elas são hoje aplicadas em conjunto, em bloco, de uma só vez, sob uma força única, central, interna, agindo de modo teleológico. Embora haja uma relativa independência estrutural entre essas doutrinas, cada vez mais elas se reúnem sob a coordenação funcional de magistrados manipuladores, que as instrumentalizam como peças de guerrilha para fazerem tudo que bem entendem. Agrupadas em um todo semiorgânico, num corpo autoritário que as ressignifica, elas transformam o juiz em um Leviatã de toga.
Talvez o clímax representativo desse corpo autoritário seja o «processo estrutural» (para uma crítica à «teoria», v. nosso Dez senões do processo estrutural. RBDPro. n. 115. jul-set/2021, p. 289-306). Essa doutrina nada mais é que a colheita proporcional de um plantio irrealista de décadas. O «juiz estruturador» não se manieta pela atuação das partes, nem pelos fatos que alegam, nem pelos fundamentos jurídicos que invocam, nem pelos pedidos que formulam, nem pelos ônus probatórios que se lhes imputam de antemão, nem pelas provas que produzem, nem pelo valor conviccional dessas provas em si, nem pelo direito material aplicável à resolução dos casos, nem pelo sentido das palavras que compõem os textos normativos, nem pelo procedimento legal padrão, nem pelos limites da sua própria competência. Trata-se de um agente solipsista, que constrange a realidade que o deveria constranger, que ofusca a realidade para impor a ilusão, que substitui a dimensão da realidade pela dimensão do desejo. Convém lembrar, porém, que a realidade verga, mas não se rompe. Cedo ou tarde ela se impõe. Afinal, não é apagável o objetivo pelo subjetivo, a realidade pela ilusão, o fato pelo desejo, o dado pelo imaginado, a ontologia pela ideologia, o essencial pelo acidental, o natural pelo convencional, o pressuposto pelo posto, o constante pelo fluido, o invariável pelo variável, o permanente pela impermanente. Todavia, até que a opinião pública pressione e o Congresso Nacional se encoraje a editar uma emenda constitucional que regule de uma vez por todas o controle externo de políticas públicas, a normalidade institucional brasileira terá de se atolar em um lamaçal insuportável.
Ora, há algo de «estranho» no ar. Já se assiste aos tribunais superiores identificando-se como: um «poder constituinte derivado», que reforma a CF para readequá-la a «novas realidades valorativo-sociológicas» (ex.: ADI 4277; ADPF 132), ou para excepcionar o teto de gastos (ex.: MI 7300); um «chefe de Poder Executivo», que substitui regulamentos já existentes para, ao seu jeito, editar normas gerais que complementem a lei (ex.: ADIs 6119, 6139, 6466, 6675, 6676, 6677, 6680 e 6695); um «legislador geral», que invoca princípios para refazer regras de lei federal (ex.: EREsp 1874222, REsp 1704520); um «legislador penal», que, à margem de reserva legal absoluta, inventa crimes (ex: ADO 26; MI 4733); um «delegado de polícia», que investiga crimes mediante inquéritos intermináveis sem objeto específico (ex: INQ 4781); um «ordenador de despesas», que se intromete na execução discricionária de verbas orçamentárias (ex: ACO 3359); um «gestor público», que redefine políticas públicas (ex: ADPF 635). Só tem faltado aos tribunais: exigir e aumentar tributos; abolir crimes; intrometer-se em política econômica, política externa, política de defesa nacional e serviços de inteligência (o que não está longe de ocorrer). No entanto, para que a opinião pública se forme, será preciso que a sociedade brasileira amadureça (o que está longe de ocorrer). Porque maturidade é isto: deixar para trás as fantasias, aceitar a realidade como ela é e apegar-se àquilo que é firme.
*Juiz Federal em Ribeirão Preto/SP. Especialista, Mestre e Doutor pela PUC-SP. Professor de Mestrado e Doutorado da Universidade de Ribeirão Preto. Ex-Presidente da Associação Brasileira de Direito Processual (triênio 2016-2018). Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual. Membro do Instituto Pan-Americano de Direito Processual