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Dúvida jurídica razoável como excludente de responsabilidade civil, de enriquecimento sem causa e de outros remédios contra ilícitos civis

 

  1. Introdução

Este artigo objetiva comentar o cabimento ou não de restituição de valores obtidos a título de enriquecimento sem causa, de indenização (responsabilidade civil) e de outros remédios contra ilegalidades no caso de haver dúvida jurídica razoável.

 

  1. A dúvida jurídica razoável como excludente de ilicitude, de responsabilidade civil, de enriquecimento sem causa e de outros remédios contra ilícitos civis

2.1. Tipos de ilícitos civis e remédios

Em palestra no Instituto Brasileiro de Direito Público em Brasília (IDP/DF), em 7 de agosto de 2019, o sempre talentoso jurista Nelson Rosenvald apontou interessantes reflexões espelhando-se no direito britânico, com destaque nas obras de Peter Birks e James Goudkamp[1]. Com base nelas, acrescidas de adaptações nossas, podemos falar em quatro ilícitos civis e em cinco remédios para esses ilícitos.

Os ilícitos civis podem ser:

  1. Inadimplemento de obrigação decorrente de um contrato ou de outro ato jurídico (fato jurídico fonte: contrato ou outro ato jurídico);
  2. Violação da lei (fato jurídico fonte: lei);
  3. Enriquecimento ilícito (fato jurídico fonte: vedação ao enriquecimento ilícito em geral);
  4. Pagamento indevido (fato jurídico fonte: vedação ao enriquecimento ilícito por pagamento indevido).

 

Os remédios – que seriam efeitos jurídicos decorrentes dos ilícitos civis e que se destinam a reprimi-los –  podem ser:

 

  1. Invalidação (aqui empregamos o termo em sentido extremamente amplo para abranger todas as hipóteses de inexistência, invalidade ou ineficácia dos fatos jurídicos, com inclusão das hipóteses de resolução contratual por culpa da parte);
  2. Indenização[2];
  3. Restituição (em decorrência do enriquecimento ilícito ou do pagamento indevido);
  4. Tutela específica; e
  5. Punição.

 

Havendo algum dos ilícitos civis, o ordenamento jurídico brasileiro articula os quatro remédios de diversas maneiras a depender de cada caso.

No caso de inadimplemento de um contrato ou de outro ato jurídico, o direito brasileiro permite, por exemplo, que o credor: (1) cobre os encargos moratórios ou a cláusula penal, alguns dos quais representam o remédio “indenização”, outros dos quais representam o remédio “punição”; (2) cobre indenização por danos sofridos por força da responsabilidade civil contratual, o que corresponde ao remédio “indenização”; (3) exija o cumprimento forçado da prestação, o que retrata o remédio “tutela específica”; ou (4) pleiteie a resolução contratual, que é uma hipótese de perda da eficácia do negócio jurídico a qual enquadramos no remédio designado de “invalidação”.

Em se tratando de violação da lei, o mais comum é ser cabível: (1) o pronunciamento da inexistência, invalidade ou ineficácia do ato jurídico, o que representa o remédio “invalidação”; (2) a indenização pelos danos sofridos, ou seja, a responsabilidade civil extracontratual, o que retrata o remédio “indenização”.

Havendo enriquecimento ilícito, o remédio disponível pelo ordenamento jurídico é a restituição do ganho indevidamente obtido por meio da ação in rem verso (ação de enriquecimento sem causa), nos termos dos arts. 884 ao 886 do CC.

Em havendo o pagamento indevido, é cabível, como remédio, a “restituição” por meio da repetição de indébito nos termos dos arts. 876 ao 883 do CC. Historicamente, a ação de repetição de indébito era uma espécie de ação in rem verso.

Todavia, o direito brasileiro desmembrou a ação de repetição de indébito, e passou a disciplinar a ação in rem verso nos arts. 876 ao 883 do CC com um caráter subsidiário. Por isso, no direito brasileiro, o pagamento indevido é fato jurídico diverso do enriquecimento sem causa e sujeita-se a ação diversa. Aliás, o próprio prazo prescricional é diverso: a ação de repetição de indébito prescreve em 10 anos, ao passo que a ação in rem verso prescreve em 3 anos (STJ, EREsp 1523744/RS, Corte Especial, Rel. Ministro Og Fernandes, DJe 13/03/2019).

Essa classificação de atos ilícitos e remédios permite articular as obrigações, contratos, os atos unilaterais e a responsabilidade civil com maior clareza.

No presente texto, o que nos importa saber é se a dúvida jurídica razoável seria hábil ou não a afastar ou a atenuar o ilícito civil e, por consequência, os remédios daí decorrentes, especialmente os remédios da indenização e da restituição.

 

  1. Natureza indeterminada do direito: a relevância da dúvida jurídica razoável como elemento de segurança jurídica

O Direito é marcado por certo grau de indeterminação. Isso não quer dizer que ele é totalmente imprevisível, mas sim que sempre haverá certa margem de imprevisibilidade acerca de como, no futuro, se comportará o profissional do Direito incumbido de interpretar o ordenamento. Em poucas palavras, as regras do jogo nem sempre são absolutamente claras de modo prévio (Oliveira, 2018-A)[3].

A dúvida jurídica razoável é elemento de segurança jurídica que deve ser levado em conta pelo jurista ao avaliar a legalidade da conduta do indivíduo. Se este age amparado em dúvida jurídica razoável, ele não deve ser futuramente submetido a repreensões desproporcionais na hipótese de vir a prevalecer uma solução jurídica diversa. Em outras palavras, se, no referido exemplo, a conduta do indivíduo vem a ser considerada ilegal, é forçoso reconhecer que ele agiu de boa-fé e, por isso, a sua “ilegalidade” é legítima.

Sobre o tema, tivemos a oportunidade de defender que o jurista, ao adotar uma interpretação, deve ter grau de empatia com o indivíduo que agiu sob dúvida jurídica razoável e, por isso, deve ter cuidado em só permitir a produção dos efeitos jurídicos que sejam proporcionais (cindibilidade dos efeitos jurídicos).

Tomamos a liberdade de reproduzir nossas reflexões (Oliveira, 2018-B, pp. 7-10):

A dúvida jurídica razoável não é um conceito absoluto; pode ser escalonada em graus de intensidade. Embora não haja um termômetro cirúrgico para essa medição, a prudência do jurista poderá aquilatar esse grau de intensidade da dúvida jurídica razoável com olhos no nível de amparo que as interpretações encontram na comunidade jurídica, na história do Direito e na tradição da sociedade.

O grau de dúvida jurídica razoável dirá também o grau de ilegalidade que terão as interpretações que vierem a ser vencidas.

Se, por exemplo, a interpretação vencida era escorada em jurisprudência pacificada dos Tribunais Superiores, o grau de dúvida jurídica razoável era altíssimo. A mudança de entendimento dos Tribunais Superiores, derrotando uma interpretação anteriormente pacífica, entregará essa interpretação vencida a uma situação de ilegalidade legítima. Essa ilegalidade, diante do elevado grau da dúvida jurídica razoável, é de intensidade baixíssima.

Quanto menor o grau da ilegalidade legítima, menores devem ser as sanções jurídicas daí decorrentes. É nesse contexto que o jurista, em um juízo de proporcionalidade, deve analisar quais os efeitos jurídicos da ilegalidade legítima que podem ser irradiados.

Se a ilegalidade era de intensidade baixíssima diante de um cenário de dúvida jurídica razoável, seria desproporcional admitir a produção de efeitos jurídicos punitivos drásticos, mas seria proporcional acatar os efeitos jurídicos de baixa repercussão contra quem confiou em uma interpretação razoável que foi vencida. De fato, em uma situação de grau baixíssimo de ilegalidade legítima, temos que praticamente nenhum efeito sancionador deverá ser produzido, pois, nessa situação, a dúvida jurídica era tão grande que a própria existência de uma norma jurídica pode ser questionada. Afinal de contas, norma é texto e contexto: se o contexto é extremamente turvo, a norma é incompleta.

Em um exemplo extremo, seria desproporcional punir com prisão quem, no século XVIII, impedia um negro de entrar em um ambiente, embora possa ser proporcional impor-lhe um dever de abster-se de reiterar essa prática doravante. Isso porque, naqueles tempos sombrios de escravidão, a comunidade jurídica brasileira era majoritária no sentido de negar direitos aos negros. Embora esse fato (obstrução do negro a adentrar um estabelecimento) possa ser considerado ilegal atualmente – e repugnante! –, os efeitos jurídicos desse fato devem ser cindidos e, em seguida, devem ser submetidos a um juízo de proporcionalidade próprio, com olhos no grau de dúvida jurídica razoável que imperava sobre o tema no século XVIII.

Com base nesse juízo de proporcionalidade entre o grau de ilegalidade e a intensidade dos efeitos jurídicos, o jurista precisa individualizar a análise de cada um desses efeitos e negar a produção daqueles efeitos que se afigurem desproporcionais. Os efeitos jurídicos da ilegalidade podem ser cindidos; trata-se do que designamos de “cindibilidade dos efeitos da ilegalidade legítima”.

Por essa razão, o jurista, ao enfrentar a árdua tarefa de interpretar o Direito, deve ter a prudência de, após eleger a sua alternativa hermenêutica, investigar quais são as soluções efetivas que poderão ser aplicadas ao caso concreto, com a postura humilde e empática de reconhecer que, em um cenário de razoável dúvida hermenêutica, será injusto infligir duras punições a quem adotou, em momento anterior, uma opção hermenêutica diferente.

(…)

Diante da natureza inexata do Direito, entendemos que a ilegalidade legítima – assim entendida aquela contrariedade à interpretação normativa vitoriosa que esteja amparada em uma dúvida jurídica razoável – afasta a má-fé e, em consequência, impõe ao jurista o dever de proceder à cindibilidade dos efeitos jurídicos a serem produzidos. Nesse procedimento de “cindibilidade dos efeitos jurídicos”, o jurista deverá realizar um juízo de proporcionalidade entre o grau da ilegalidade legítima e a intensidade dos efeitos jurídicos para somente admitir a produção daqueles efeitos que sejam considerados proporcionais.

 

Portanto, é imperativo da segurança jurídica que o jurista incumbido de analisar a legalidade de uma conduta tenha a sensibilidade de não expor aqueles que agiram sob dúvida jurídica razoável a repreensões desproporcionais. Cabe-lhe, diante dos vários efeitos jurídicos espargidos pelo reconhecimento da ilegalidade de uma conduta, autorizar a irradiação apenas daqueles que sejam proporcionais.

 

  1. Dúvida jurídica razoável nos outros ramos do direito

Há diversos exemplos de cindibilidade dos efeitos jurídicos em situações de dúvida jurídica razoável nos mais diversos ramos do Direito.

No Direito Administrativo, sanções administrativas podem ser afastadas contra agente público que agiu sob dúvida jurídica razoável, a exemplo de gestor que agiu amparado em parecer jurídica da procuradoria, da vedação de responsabilização do agente público por infração hermenêutica fora dos casos de dolo ou erro grosseiro (art. 28, LINDB[4]), do juiz que interpretou a legislação sem dolo ou fraude, do advogado público licenciado que exercia a advocacia privada com base em interpretação razoável da legislação, do servidor público que, de boa-fé, com base em interpretação razoável da legislação, recebe valores indevidos e da convalidação, pelo STF, de nomeação de empregados públicos sem concurso público diante da existência de dúvida jurídica razoável acerca da necessidade de concurso público.

No Processo Civil, há vários exemplos, como a fungibilidade recursal e a possibilidade de modulação dos efeitos da jurisprudência no caso de mudança da orientação dominante (art. 927, § 3º, do CPC).

No Direito Constitucional, a modulação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade é um exemplo.

 

  1. Dúvida jurídica razoável e a cindibilidade de efeitos jurídicos desproporcionais no direito civil: a atenução ou a exclusão da responsabilidade civil

No Direito Civil, a dúvida jurídica razoável e a cindibilidade dos efeitos jurídicos também devem ser observadas. Em muitos casos, elas são admitidas sob institutos irmãos, como a de proteção da boa-fé, a da vedação da não surpresa (princípio da confiança) ou a do princípio da proporcionalidade. Esses outros argumentos, na verdade, são outros nomes ao que, com mais especificidade, designamos de tutela da dúvida jurídica razoável e de cindibilidade dos efeitos jurídicos.

há diversos tipos de ilícitos civis (inadimplemento de obrigação, violação de lei, enriquecimento ilícito e pagamento indevido). E, para eles, há remédios, que são efeitos jurídicos que reprimem esses ilícitos (invalidação, tutela específica, indenização, restituição e punição). Cabe ao jurista, quando se deparar com alguém que agiu sob dúvida jurídica razoável, só autorizar o manuseio dos remédios que se afigurem proporcionais.

No caso da responsabilidade civil, convém recordar que o art. 186 do Código Civil exige, como requisito do ilícito civil, não apenas o dano e a culpa, mas também a “violação de direito[5]”. Se há dúvida jurídica razoável, ela é idônea a afastar ou, no mínimo, a atenuar a caracterização desse requisito da “violação de direito”, o que, consequentemente, repele o dever de indenizar ou, no mínimo, acarreta a redução do valor a ser fixado a título de indenização.

Ora, como a legalidade prévia é um pressuposto do Estado de Direito, o particular que age com amparo em dúvida jurídica razoável não pode ser punido se, posteriormente, a jurisprudência vem a decidir diversamente, sob pena de transformá-lo em um “boca de canhão hermenêutico”, em um “boi de piranha hermenêutico” ou em um “mártir hermenêutico”. Os arts. 138, III, e 186 do CC e o art. 942, § 2º, do CPC dão suporte a isso (Oliveira, 2018-B, pp. 15-17).

Em suma, a depender de grau de intensidade da dúvida jurídica razoável, o requisito “violação do direito” previsto no art. 186 do CC deve ser tido por total ou parcialmente descaracterizado e, em consequência, a responsabilidade civil deve ser excluída total ou parcialmente (atenuada, com redução proporcional do valor da indenização).

 

  1. Um interessante caso do STJ

Um caso interessante que ilustra o exposto é este julgado do Superior Tribunal de Justiça (STJ): REsp 1617636/DF, 3ª Turma, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, DJe 03/09/2019. Nesse julgado, o STJ afastou a condenação de uma viúva a pagar lucros cessantes aos filhos do falecido desde a data da extinção do direito real de habitação. E o motivo foi a existência de dúvida jurídica razoável sobre a efetiva ocorrência dessa extinção. No caso concreto, a viúva havia emprestado o imóvel sobre o qual tinha direito real de habitação. Não havia clareza jurídica que o empréstimo implicaria extinção do referido direito real: a jurisprudência nunca tinha decidido nada.

Esse caso ilustra bem uma aplicação da exclusão da responsabilidade civil ou da restituição por enriquecimento sem causa por dúvida jurídica razoável.

O STJ reconheceu que o direito real de habitação havia sido extinto desde o momento em que o viúvo formou união estável. No caso concreto, o viúvo havia formado união estável no ano de 1992.

Daí decorre que, em princípio, a ocupação exclusiva do imóvel (a casa do bairro Lago Sul em Brasília/DF) pelo ex-viúvo sem pagamento de qualquer valor aos seus filhos (que eram proprietários de parte da casa) configura um ilícito civil: o enriquecimento sem causa.

Desse ilícito civil, em tese, abre-se o leque dos seguintes remédios:

  1. Restituição: a condenação do ex-viúvo a restituir o ganho indevido, o que, na espécie, significaria o seu dever de pagar aos filhos o valor de aluguel do imóvel proporcionalmente à fração ideal deles no imóvel;
  2. Tutela específica: filhos poderiam exigir que o ex-viúvo desocupasse o imóvel com a posterior locação do bem a terceiros para divisão dos frutos ou com posterior dissolução do condomínio.

 

O STJ, com base em um juízo de razoabilidade, reconhecendo que o ex-viúvo amparava-se em uma interpretação razoável da legislação (no sentido de que o direito real de habitação não teria sido extinto com a união estável) e que o assunto era inédito, afastou parcialmente o remédio da “restituição”, estabelecendo que este só seria devido a partir da data de julgamento. A ideia é a de que, com o julgamento pelo STJ, dissipou-se a situação dúvida jurídica razoável do ex-viúvo, que, agora, não terá dúvida alguma de que seu direito real de habitação já se extinguiu. O STJ, em outras palavras, modulou os efeitos do remédio da “restituição”, emprestando-lhe eficácia ex nunc. Trocando em miúdos, o STJ cindiu parcialmente os efeitos jurídicos diante do cenário de dúvida jurídica razoável.

Quanto à tutela específica, não houve pedido dos filhos nesse sentido, mas ela provavelmente seria tida por razoável após o julgamento do STJ.

 

  1. Alguns casos ilustrativos

5.1. Casos de planos de saúde

Nos casos de negativas indevidas de cobertura pelo plano de saúde, o STJ entende que esse fato pode causar dano moral a ser indenizado pela operadora[6]. Se, porém, à época, a operadora tivesse se amparado em dúvida jurídica razoável, o STJ promove uma cindibilidade dos efeitos produzidos por sua decisão de reconhecer a ilegalidade da conduta da operadora: o efeito jurídico drástico (a indenização por dano moral) é afastado, ao passo que o efeito jurídico da condenação da operadora a, doravante, dar a cobertura (tutela específica) é deferido.

Nesse sentido, quando o STJ passou a decidir que os planos de saúde têm de fornecer medicamentos registrados na Anvisa, ele afastou a condenação da operadora a pagar dano moral ao consumidor (indenização), mas manteve o seu dever de fornecer os medicamentos (tutela específica), por reconhecer que a operadora, ao negar a cobertura à época, agira ao amparo de dúvida jurídica razoável. O STJ, com base na razoabilidade, realizou uma cindibilidade dos efeitos jurídicos produzidos pelo reconhecimento da ilegalidade da conduta da operadora (STJ, REsp 1632752/PR, 3ª Turma, Rel. Ministro Ricardo Villas Boas Cueva, DJe 29/08/2017).

Procedeu da mesma forma o STJ ao reconhecer a ilegalidade da cláusula de exclusão da cobertura de stent: negativas indevidas dessa cobertura antes da pacificação da jurisprudência não ensejariam condenação da operadora a indenizar dano moral (indenização), embora coubesse à operadora fornecer a cobertura (tutela específica). Afinal de contas, havia dúvida jurídica razoável (STJ, AgRg no REsp 1457475/MG, 4ª Turma, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, DJe 24/09/2014).

Igual postura se deu em relação a negativas do plano de saúde com fundamento em dúvida jurídica razoável na interpretação da cláusula contratual. O STJ afasta o dano moral aí. Foi sob essa ótica que o STJ absolveu do dever de indenizar a operadora de plano de saúde que negou tratamento fisioterápico domiciliar, pois ela havia se amparado em uma interpretação razoável de cláusula contratual que excluía tratamentos domiciliares e que veio a ser declarada nula pelo Judiciário posteriormente (STJ, AREsp 1.464.124/MG, Rel. Min. Moura Ribeira, decisão monocrática, DJ 18/09/2019).

Igualmente, o STJ afastou condenação de indenização por dano moral contra a operadora de plano de saúde que, alegando inexistir previsão contratual, negou tratamento home care, pois havia aí dúvida jurídica razoável (STJ, AgInt no AREsp 983.652/SP, 3ª Turma, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, DJe 2/2/2017).

A propósito, ao considerar indevida a conduta do plano de saúde de negar tratamento de obesidade mórbida em clínica de emagrecimento por recomendação médica, o STJ cindiu os efeitos jurídicos: deferiu a tutela específica, mas negou o dano moral por conta da dúvida jurídica razoável (STJ, REsp 1645762/BA, 3ª Turma, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 18/12/2017).

Idêntico proceder adotou o STJ em relação a plano de saúde que, com fundamento em dúvida jurídica razoável em relação a cláusula contratual, negou indevidamente: (1) cobertura de quimioterapia e radioterapia[7]; (2) tratamento de injeção intra-vítrea[8]; e (3) fornecimento de prótese ocular necessária para cirurgia de catarata[9].

 

5.2. Caso da classificação indicativa de filmes

Além dos casos envolvendo pleito de lucros cessantes por controvérsia acerca da existência de direito real de habitação e pleito de indenização por dano moral por recusa indevida de tratamento por plano de saúde, o STJ vale-se da cindibilidade dos efeitos jurídicos diante da existência de dúvida jurídica razoável em outras hipóteses.

Em interessantíssimo julgado, o STJ absolveu uma empresa que retirou da sala de exibição do cinema uma criança e seu pai alegando que o filme era inadequado para menores de idade. A empresa se escorara em dúvida jurídica razoável, pois, à época dos fatos, o ato infralegal em vigor (Portaria nº 796/2000, do Ministério da Justiça) era genérico, e o ECA poderia vir a ser interpretado de modo a expor a empresa a pesadas sanções por ter permitido o acesso de menores a filme com conteúdo inadequado. O art. 255 do ECA previa multa pesada contra quem exibisse filme classificado como inadequado a crianças ou adolescentes. Naquele momento, era razoável interpretar que a classificação indicativa dos filmes era compulsória e não podia ser flexibilizada nem mesmo por vontade dos pais[10]. Com base nisso, o STJ valeu-se da dúvida jurídica razoável para afastar a condenação da empresa ao pagamento de indenização por dano moral.

 

5.3. Casos em que a dúvida jurídica razoável poderia ter sido utilizada

Temos que não deveria ter sido condenado a pagar indenização por dano moral a padaria que havia se amparado no texto expresso da convenção condominial (que previa destinação exclusivamente comercial das unidades) para ligar suas máquinas de madrugada. O STJ, aplicando a supressio, condenou a padaria a pagar indenização por dano moral a moradora que, há anos, desrespeitava a convenção e emprestava destinação residencial à sua unidade (REsp 1096639/DF, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 12/02/2009). Nessa hipótese, temos que, no mínimo, por conta da situação de dúvida jurídica razoável, deveria ter sido feita uma cisão dos efeitos jurídicos: deferir-se-ia a tutela específica (proibir padaria de ligar as máquinas) e indeferir-se-ia a indenização por dano moral[11].

Além do mais, também se deveria aplicar a dúvida jurídica razoável para repelir a condenação de estabelecimentos comerciais ao pagamento de indenização por dano morais nas hipóteses em que eles tenham negado acesso de transgênero a banheiro diverso daquele que consta de seus documentos de identidade, especialmente se essa negativa ocorreu antigamente, quando inexistia jurisprudência sobre o assunto. Não se trata aqui de questionar o mérito do direito do transgênero a escolher o banheiro que lhe aprouver. Cuida-se, sim, de apontar que esse tema não era pacificado (e ainda hoje não o é), de maneira que, ainda que se venha a pacificar o direito de livre escolha do transgênero, convém que seja feita uma cindibilidade dos efeitos jurídicos para fatos ocorridos antes dessa pacificação: defere-se a tutela específica (assegurar entrada do transgênero no banheiro de sua escolha), mas se nega a indenização por dano moral. Evidentemente, para fatos posteriores à pacificação, a indenização será devida por ter-se dissipado o cenário de dúvida jurídica razoável.

O STF[12] ainda está apreciando o mérito do direito do transgênero, assunto difícil, especialmente pelo fato de que, como hoje já se admite a mudança de sexo mediante mero pedido no Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais, soa sensível aceitar que o transgênero que não mudou seu registro civil (e, por consequência, seu documento de identidade) acesse banheiro de gênero diverso do constante de seus documentos oficiais. Seja como for, independentemente da decisão a ser proferida pelo STF, temos que a cindibilidade dos efeitos jurídicos é imperiosa por força do ambiente de dúvida jurídica razoável[13].

 

  1. Conclusão

Este autor já tem alertado para a importância da maior exploração, pela doutrina e pela jurisprudência, da dúvida jurídica razoável como categoria jurídica essencial para assegurar o mínimo de estabilidade em meio ao movediço ambiente de “modernidade líquida” no Direito brasileiro.

As “regras do jogo” não são tão previsíveis, notadamente nos tempos modernos, marcado por um rosário de argumentações jurídicas que competem entre si sob o testemunho dos conceitos jurídicos abertos e do protagonismo dos princípios.

O Direito, por natureza, já é indeterminado, mas é inegável que essa característica tem sido amplificada por posturas de argumentação jurídica mais flexíveis.

Não importa aqui definir o acerto ou não dessas posturas ou se elas são ou não necessárias diante da complexidade da sociedade contemporânea[14]. O que interessa é que os juristas contemporâneos precisam atentar para a importância de utilizar a dúvida jurídica razoável como elemento de segurança jurídica para poupar os indivíduos de repreensões desproporcionais.

Nesse sentido, conforme exposto, a jurisprudência acena favoravelmente a admitir que a dúvida jurídica razoável é idônea para permitir o que designamos de cindibilidade dos efeitos jurídicos, de modo a afastar ou, ao menos, atenuar indenizações ou deveres de restituição de ganho indevido.

A dúvida jurídica razoável também é idônea para repelir outros remédios a ilicitudes, como a invalidação e a tutela específica, embora seja mais difícil isso se caracterizar no caso concreto.

 

 

  1. Bibliografia:

BIRKS, Peter. Rights, Wrongs, and Remedies. In: Oxford Journal of Legal Studies, vol. 20, nº 1, 2000, pp. 1-37 (Disponível:

https://academic.oup.com/ojls/article-abstract/20/1/1/1582765?redirectedFrom=fulltext)

 

OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de Oliveira. A Segurança Hermenêutica nos vários Ramos do Direito e nos Cartórios Extrajudiciais: repercussões da LINDB após a Lei nº 13.655/2018. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, junho/2018. Disponível em www.senado.leg.br/estudos. Publicado em março de 2018-A.

 

_________________________. A Dúvida Jurídica Razoável e a Cindibilidade dos Efeitos Jurídicos (Texto para Discussão nº 245). Disponível em: www.senado.leg.br/estudos. Acesso em 5 de março de 2018. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, março, 2018-B.

 

_________________. A Lei da Liberdade Econômica: diretrizes interpretativas da nova Lei e Análise detalhada das mudanças no Direito Civil e no Registros Públicos. Disponível em: www.flaviotartuce.adv.br/artigos_convidados. Elaborado em 21 de setembro de 2019.

 

ROSENVALD, Nelson; KUPERMAN, Bernard Korman. Restituição de ganhos ilícitos: há espaço no Brasil para o disgorgement?. In: Revista Fórum de Direito Civil – RFDC –, Belo Horizonte, ano 6, n. 14, jan./abr. 2017, pp. 11-31 (Disponível em: https://revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/view/5283/3367).

 

SMITH, Stephen. Rights, Remedies, and Causes of Action. In: RICKETT, C. E. F.; GRANTHAM, Ross. Structure and Justification in Private Law: essays for Peter Birks. Oxford and Portland: Editora Hart Publishing, 2008 (Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1344458).

 

STRECK, Lênio. Jurisdição constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2018.

 

_____________. Dicionário de Hermenêutica: quarenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte (MG): Letrameto: Casa do Direito, 2017.

 

TARTUCE, Flávio. Direito civil: direito das obrigações e responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

 

 

Referências Bibliográficas:

[1] Sobre o assunto, reportamos aos textos de Stephen A. Smith (2009), Peter Birks (2000) e Rosenvald e Kuperman (2017).

[2] A propósito da indenização (responsabilidade civil), enfatize-se que ela decorre, em regra, de um ato ilícito. O enciclopédico civilista Flávio Tartuce (2020, p. 356), citando oportunamente San Tiago Dantas, averba, in litteris:

A concepção da responsabilidade sempre esteve relacionada à lesão do direito, segundo ensina San Tiago Dantas, sendo este conceito “fundamental para compreender-se bem o tema que se passará a estudar, o tema da defesa dos direitos”. Ensina esse doutrinador que, “sempre que se verifica uma lesão do direito, isto é, sempre que se infringe um dever jurídico correspondente a um direito, qual é a primeira consequência que daí advém? Já se sabe: nansce a responsabilidade” (Programa…, 1979, p. 376)

[3]     A propósito da indeterminação do Direito, reportamo-nos aos escritos de Inocêncio Mártires Coelho:

COELHO, Inocêncio Mártires. Indeterminação do direito, discricionariedade judicial e segurança jurídica. Disponível em: https://www.uniceub.br/media/491563/Anexo9.pdf. Acesso em 24 de maio de 2018. Chegamos a apontar essa natureza incerta do Direito sob o enfoque de Miguel Reale, de Recaséns Siches e Eros Roberto Grau nestes textos: (1) OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Competência para fiscalizar atividade jurídica de membros da advocacia pública federal: TCU ou órgão correcional próprio. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24056. Acesso em 31 de maio de 2018. Publicado em abril de 2013; (2) OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. A Dúvida Jurídica Razoável e a Cindibilidade dos Efeitos Jurídicos. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, março/2018 (Texto para Discussão nº 245). Disponível em www.senado.leg.br/estudos. Acesso em 5 de março de 2018. Publicado em março de 2018.

[4] Reportamos a outro texto nosso que esmiuçou o assunto (Oliveira, 2018-A).

[5] Art. 186, CC. “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.

[6] A mera negativa indevida pela operadora do plano de saúde, por si só, não gera dano moral. É preciso haver agravamento da dor, do abalo psicológico ou prejuízos à saúde do paciente (STJ, AgInt no REsp 1776261/SC, 4ª Turma, Rel. Ministro Raul Araújo, DJe 18/12/2019).

[7] Veja: STJ, AgInt no REsp 1764592/PR, 3ª Turma, Rel. Ministro Moura Ribeiro, DJe 20/03/2019. Há julgado contrário, concedendo dano moral pelo fato de a cláusula contratual ter previsto a cobertura de quiomioterapia (STJ, REsp 1.651.289/SP, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 5/5/2017).

[8] STJ, AgInt no AREsp 1.134.706/SC, 3ª Turma, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 23/11/2017.

[9] STJ, AgInt no AREsp 1395816/SP, 3ª Turma, Rel. Ministro Moura Ribeiro, DJe 02/05/2019.

[10] É verdade que, posteriormente, sobreveio a Portaria nº 1.100/2016, do Ministério da Justiça, para dar liberdade aos pais para flexibilizar a classificação indicativa dos filmes. Entretanto, à época dos fatos julgados pelo STJ, não havia essa clareza normativa.

[11] Oliveira, 2018-B, pp. 19-20.

[12] Atualmente, julgamento está paralisado em razão de pedido de vista (STF, Recurso Extraordinário nº 845.779/SC).

[13] Oliveira, 2018-B, pp. 17-19.

[14] Sobre isso, há cadentes debates acadêmicos entre inúmeros juristas, com inclusão das ponderações sempre incisivos de Lênio Streck (2017 e 2018).

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Carlos E. Elias
Professor de Direito Civil, Notarial e Registral na Universidade de Brasília - UnB - e em outras instituições. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Advogado/Parecerista. Ex-membro da Advocacia-Geral da União (Advogado da União). Ex-Assessor de Ministro do Superior Tribunal de Justiça - STJ (turmas de Direito Privado). 1º lugar em Direito no Vestibular 1º/2002 da Universidade de Brasília - UnB. Doutorando e mestre em Direito na UnB. Pós-graduado em Direito Notarial e de Registro. Pós-graduado em Direito Público.

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