Furto Qualificado Privilegiado
O delito de furto, previsto no art. 155 do Código Penal, além de dispor acerca de circunstâncias que majoram a pena, determina, em seu §4º, situações que qualificam a pena, sendo estas: I) destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa; II) abuso de confiança, ou mediante fraude, escalada ou destreza; III) emprego de chave falsa; IV) mediante concurso de duas ou mais pessoas.
Sobre as qualificadoras, leciona a doutrina:
São qualificadoras do crime aquelas circunstâncias que: a) revelam determinados motivos, interesses, meios ou modos de execução; b) produzem resultados graves ou gravíssimos para o bem jurídico afetado; c) expõem a vítima ao maior poder de ação do agente, seja em função da idade, de parentesco ou outra relação de confiança. Em tais hipóteses, a reprovabilidade da conduta justifica um tratamento penal específico e mais rigoroso. O CP ora destaca as hipóteses de qualificação por meio da rubrica, p. ex.: homicídio qualificado (art. 121, § 2.º); furto qualificado (art. 155, § 4.º); dano qualificado (art. 163, parágrafo único), ora prevê tais tipos de ilícito sem a indicação nominal: lesões corporais (art. 129, §§ 1.º a 3.º); abandono de incapaz (art. 133, §§ 1.º e 2.º); maus-tratos (art. 136, §§1.º e 2.º); rixa (art. 137, parágrafo único); favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual (art. 228, §§ 1.º e 2.º), além de muitos outros. Em ambas as hipóteses existe um traço comum: os limites mínimo e máximo para cada tipo qualificado, isto é, as penas cominadas são mais elevadas que as do tipo fundamental. (…). As circunstâncias qualificadoras do crime apresentam-se, também, sob duas espécies: a) objetivas e b) subjetivas. São objetivas o meio e o modo de execução (veneno, fogo, explosivo etc.) e a condição da vítima (criança, velho, enfermo e mulher grávida); são subjetivas as que dizem respeito aos motivos (fútil, torpe, dissimulação etc.). (DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 6. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. p. 757-758).
O mesmo dispositivo legal (art. 155, CP) prevê que, se “o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa”. A partir dessa definição, cabe-se analisar a viabilidade de aplicação da causa de diminuição de pena descrita no §2º do art. 155 do CP – denominada pela doutrina de furto privilegiado –, nos casos em que há a incidência de circunstâncias qualificadoras.
Acerca da temática, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula nº 511, que determina que “é possível o reconhecimento do privilégio previsto no § 2º do art. 155 do CP nos casos de crime de furto qualificado, se estiverem presentes a primariedade do agente, o pequeno valor da coisa e a qualificadora for de ordem objetiva”.
Essa foi a discussão debatida na Apelação Criminal nº 1.0000.23.137918-1/001, julgada pela 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que entendeu, por unanimidade:
Ementa: Apelação criminal. Furto qualificado pelo abuso de confiança. Decote da qualificadora. Inviabilidade. Furto privilegiado. Inaplicabilidade. Incompatibilidade com qualificadora de ordem subjetiva. – Inviável o decote da qualificadora do art. 155, § 4º, II, do CP, quando comprovado o abuso da confiança depositada pelo ofendido e que a coisa se encontra, em razão dessa confiança, na esfera de disponibilidade do agente. – Não é possível o reconhecimento do privilégio previsto no § 2º do art. 155 do CP nos casos de crime de furto qualificado, se, ainda que presentes a primariedade do agente e o pequeno valor da coisa, a qualificadora for de ordem subjetiva. (TJMG – Apelação Criminal 1.0000.23.137918-1/001, Relator: Des. Franklin Higino Caldeira Filho, 3ª Câmara Criminal, j. em 25/10/2023, p. em 26/10/2023).
Em seu voto, o relator compreendeu que, em razão dos fatos concretos se adequarem a conduta prevista no art. 155, §4º, II, do Código Penal – abuso de confiança, ou mediante fraude, escalada ou destreza –, que constitui uma qualificadora de cunho subjetivo, seria vetada a aplicação da causa de diminuição prevista no §2º do art. 155 do CP.
Ressalta-se que o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou em diversas oportunidades sobre a natureza subjetiva do referido dispositivo legal. Vejamos:
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. PENAL. FURTO. QUALIFICADORA DO ABUSO DE CONFIANÇA. CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO CONCRETO QUE DEMONSTRAM O VÍNCULO DE CONFIANÇA EXISTENTE ENTRE O AUTOR E A VÍTIMA. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. APLICAÇÃO DO FURTO PRIVILEGIADO. QUALIFICADORA DE CARÁTER SUBJETIVO. IMPOSSIBILIDADE. ORDEM DE HABEAS CORPUS DENEGADA. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. (…) 3. Não é viável a incidência do privilégio contido no art. 155, § 2.º, do Código Penal, na hipótese de o furto ser qualificado pelo abuso de confiança. Aplicação da orientação jurisprudencial sedimentada na Súmula n. 511/STJ. 4. Agravo regimental desprovido. (AgRg no HC n. 714.224/SC, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 29/3/2022, DJe de 4/4/2022 – grifos acrescentados). AGRAVO REGIMENTAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. CRIME CONTRA O PATRIMÔNIO. FURTO. QUALIFICADORA DO ABUSO DE CONFIANÇA. ORDEM SUBJETIVA. IMPOSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO DO PRIVILÉGIO. SÚMULA N. 511 DO STJ. ENTENDIMENTO ATUALIZADO DO STJ. DECISÃO MANTIDA. 1. É inadmissível habeas corpus em substituição ao recurso próprio, também à revisão criminal, impondo-se o não conhecimento da impetração, salvo se verificada flagrante ilegalidade no ato judicial impugnado apta a ensejar a concessão da ordem de ofício. 2. “É possível o reconhecimento do privilégio previsto no § 2º do art. 155 do CP nos casos de crime de furto qualificado, se estiverem presentes a primariedade do agente, o pequeno valor da coisa e a qualificadora for de ordem objetiva” (Súmula n. 511 do STJ). 3. A qualificadora do abuso de confiança, por ser de ordem subjetiva, inviabiliza o reconhecimento da figura privilegiada do crime de furto. 4. Mantém-se a decisão agravada cujos fundamentos estão em conformidade com o entendimento do STJ sobre a matéria suscitada. 5. Agravo regimental desprovido. (AgRg no HC n. 655.120/PR, relator Ministro João Otávio de Noronha, Quinta Turma, julgado em 7/12/2021, DJe de 14/12/2021).
Portanto, em consonância com o entendimento exarado pelo Superior Tribunal de Justiça foi a decisão da Colenda 3ª Câmara Criminal, ao indeferir a aplicação simultânea de circunstancia qualificadora de cunho subjetivo e a causa de diminuição de pena prevista no art. 155, §2º do CP.
Referência:
TJMG – Apelação Criminal 1.0000.23.137918-1/001, Relator: Des. Franklin Higino Caldeira Filho, 3ª Câmara Criminal, j. em 25/10/2023, p. em 26/10/2023
Link da decisão:
https://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisaNumeroCNJEspelhoAcordao.do?numeroRegistro=1&totalLinhas=1&linhasPorPagina=10&numeroUnico=1.0000.23.137918-1%2F001&pesquisaNumeroCNJ=Pesquisar