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Improbidade Administrativa e o seu elemento subjetivo

Edilson Pereira Nobre Júnior*

 

“O dolo é um só, variando de acordo com a figura típica” (Damásio E. de Jesus)[1]

 

Recentemente, assiste-se o desenrolar de variadas polêmicas resultantes das alterações à Lei de Improbidade Administrativa (LIA) advindas com a promulgação da Lei nº 14.230/2021.

Um dos principais aspectos sob discussão diz respeito ao elemento subjetivo, justamente pela circunstância De o art. 10, caput, da redação original da LIA, haver empregado a expressão “culposa”, atualmente suprimida, enquanto que as mutações legislativas procuraram afirmar a exclusividade do dolo para a caracterização dos tipos ímprobos. Daí a inclusão da expressão “dolosa” no art. 9º, caput, e no art. 11, caput, e, como reforço, acresceu-se ao art. 1º do referido diploma legal o §2º, dispondo que se considera “dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente”.

O dispositivo tem ensejado muitas discussões. O importante é que, no particular, bem como noutros pontos onde se evidenciam de acesa controvérsia, o intérprete procure aportar em resultados que, lastreados com a imparcialidade requerida pelo rigor científico, faça preponderar as balizas que informam o sistema jurídico, com atenção ao desenvolvimento doutrinário sobre o tema, banindo-se, assim, a influência de paixões ou a avidez da busca do justicialismo midiático.

Da mesma forma, impõe que se rejeitem teses acomodatícias conforme a posição processual daquele que sustenta uma determinada compreensão, equívoco que, lamentavelmente, assinalou a experiência anterior à Lei nº 14.230/2021, do qual pude verificar em investigação sobre o instituto da improbidade administrativa[2].

De fato, e justamente quanto à menção à forma culposa no então art. 10, caput, chegou-se a constatações que parecem ter ido além de meras coincidências. Isso porque, ao verificar o pensar de cinco autores, sem exceção, integrantes do segmento da advocacia, observa-se que sustentavam a incompatibilidade da prática de ato de improbidade administrativa sob a forma culposa[3]. Noutra direção, coligiu-se quatro posicionamentos doutrinários favoráveis a que o legislador pudesse delinear tipos de atos ímprobos a título de culpa. Em mais uma nova surpresa, foi possível verificar que todos os autores eram integrantes do Ministério Público[4].

Pois bem. Diante da modificação legislativa, a maior inquietação diz respeito sobre haver ou não o legislador reclamado a presença do dolo específico.

Em se tratando de discussão que envolve o tema da culpabilidade, penso que o ponto de partida para tanto se situa no âmbito do direito penal, em virtude da solidez e precedência das contribuições doutrinárias nesse segmento do Direito. A antecedência da sistematização de princípios e regras no que concerne aos crimes ou delitos, conforme  acentuou Alejandro Nieto[5], constitui um valioso subsídio para o direito administrativo sancionador.

Isso sem, especificadamente, considerar que a culpabilidade e suas espécies foram objeto de longo e sólido desenvolvimento doutrinário e legislativo no âmbito do direito criminal.

Tecida essa observação, visualiza-se de Aníbal Bruno[6] que, no dolo, tem-se uma vontade informada pela previsão do ato e do resultado. Aludindo ao dolo direto, o autor distingue, quanto à sua intensidade, entre o dolo determinado, no qual o agente previu e quis o resultado, e o dolo indeterminado que, por sua vez, afirma compreender o dolo eventual, onde o agente, não querendo propriamente o resultado, admite-o e aceita o risco de produzi-lo, e o alternativo, no qual aquele almeja um ou outro entre dois ou mais resultados possíveis.

A formulação doutrinária guarda precisa correspondência com a moldura legislativa, uma vez o art. 18, I, do Código Penal, dispor que o crime se diz doloso “quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”.

Não passível de uma definição legal em nosso ordenamento, tem-se a categoria nominada como dolo específico, a qual, no dizer de Magalhães Noronha[7], notabiliza-se por uma vontade dirigida a um resultado que se situa fora dos atos externos de execução material do delito. É identificada, normalmente, pelo uso das expressões “com o fim de”, “com o intuito de”, ou o com o emprego da preposição para, como se tem em “para isto” ou “para aquilo”. À feição de exemplo, aponta o autor a diferença clássica entre os tipos de rapto de mulher honesta, constante da redação originária do Código Penal (art. 219), e o de sequestro (art. 148), tendo em vista o primeiro conter a expressão “para fim libidinoso”.

Essa conceituação, que é confirmada na seara doutrinária[8] – mas, para alguns autores, não sem antes de escapar de críticas quanto à própria autonomia do dolo específico, por, na verdade, não passar de um elemento subjetivo do tipo[9] –,  serve para evidenciar que a inovação legislativa, ao considerar o dolo “a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente”, não foi além do dolo direto, pois não traz a exigência de um fim especial de agir.

Desse modo, o §2º do art. 1º da LIA visou espancar, definitivamente, duas dúvidas. A uma, de que não se concebe a improbidade mediante culpa em sentido estrito; a outra, no sentido de afastar a convicção de que a voluntariedade, elemento típico das contravenções (art. 3º, primeira parte, do Decreto-lei nº 3.688/41)[10], no sentido de que a vontade do agente apenas se volte à pratica do fato, sendo irrelevante se quis ou aceitou a produção do resultado. A sua explicitação pela Lei nº 14.230/2021 porventura decorreu para evitar outra possível preocupação, diante da existência de ponto de vista doutrinário que considera a voluntariedade como apta para servir de base à culpabilidade no plano das sanções administrativas[11].

Significa dizer que, em princípio, não cogita a LIA de dolo específico, conclusão que há de ser investigada conforme o respectivo tipo em análise.

Em assim sendo, é de se notar, no que concernem aos atos de improbidade que importam enriquecimento ilícito, que não há no art. 9º, caput, da LIA, nenhuma indicação de uma finalidade específica a ser perseguida além do núcleo do tipo. Não obstante, nalguns dos tipos que enumera se vê, precisamente nos incisos V, IX e X, alusão aos escopos de “tolerar a exploração ou a prática de jogos de azar, de lenocínio, de narcotráfico, de contrabando, de usura ou de qualquer outra atividade ilícita”, “para intermediar a liberação ou aplicação de verba pública de qualquer natureza” e “para omitir ato de ofício, providência ou declaração a que esteja obrigado”. Nestas situações o dolo específico – ou, para quem assim entender, o elemento subjetivo do tipo – é imprescindível.

Semelhante remate sucede quanto aos atos dos quais resultam prejuízo em detrimento ao erário, de sorte a se constatar no art. 10, inciso XII, a expressão “para que terceiro se enriqueça ilicitamente”.

Finalmente, quanto aos atos que atentem contra os princípios regentes da Administração Pública, verifica-se, nos incisos V, VI e XII, todos do art. 11 da LIA, a indicação de um fim especial de agir, dentre os quais “com vistas à obtenção de benefício próprio, direto ou indireto, ou de terceiros”, “com vistas a ocultar irregularidades” e “de forma a promover inequívoco enaltecimento do agente público e personalização de atos, de programas, de obras, de serviços ou de campanhas dos órgãos públicos”.

No que se refere aos tipos do art. 11 da LIA, é de notar ainda o acréscimo de §1º que, ademais de provocar perplexidade pelo teor do seu pórtico, dispõe que, nas hipóteses dos incisos do referido preceito, a improbidade apenas restará caracterizada quando comprovado “na conduta funcional do agente público o fim de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade”.

Esse aspecto, explicitado pelo legislador, tem ensejado a compreensão de que, em se tratando de ato de improbidade por violação a princípio informador da função administrativa, a sua configuração pressupõe dolo específico[12].

Em suma, o que pretendeu o legislador – repito – foi afastar as figuras da culpa em sentido estrito e da voluntariedade como elementares subjetivas da improbidade administrativa, satisfazendo-se com o dolo, sem prejuízo da figura típica consagrar a indispensabilidade de se visar a uma finalidade específica.

Eis o nosso contributo.

 

Notas e Referências:

* Professor Titular da Faculdade de Direito do Recife – Universidade Federal de Pernambuco. Desembargador do Tribunal Regional Federal da Quinta Região. Membro do Instituto Internacional de Derecho Administrativo – IIDA e do Instituto de Direito Administrativo Sancionador.

[1] Direito penal – parte geral. 10ª ed. São Paulo: Saraiva. Vol. 1º, p. 248.

[2] Improbidade administrativa: alguns aspectos controvertidos, Revista de Direito Administrativo, vol. 235, janeiro/março de 2004.

[3] Ibidem, pp. 71-72.

[4] Ibidem, p. 72.

[5] Derecho administrativo sancionador. 5ª ed. Madri: Editorial Tecnos, 2012, p. 134.

[6] Direito penal – parte geral (fato punível). 3ª ed. Rio: Forense, 1967. Tomo 2º, pp. 63 e 71.

[7] Direito penal – introdução e parte geral. 35ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000. Vol. 1, pp. 139-140.

[8] Guiseppe Bettiol (Direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971. Vol. II, p. 107. Tradução de Paulo José da Costa Jr. e de Alberto Silva Franco. Notas de Everardo da Cunha Luna).);

[9] Damásio Evangelista de Jesus (Direito penal – parte geral. 10ª ed. São Paulo: Saraiva. Vol. 1º, p. 248) e Júlio Fabrini Mirabete (Manual de direito penal. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1986. Vol. 1, p. 141).

[10] Art. 3º Para a existência da contravenção, basta a ação ou omissão voluntária.

[11] Consultar Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de direito administrativo. 35ª ed. São Paulo: Malheiros, 2021, pp. 814-815).

[12] Cf. Og Fernandes, Frederico Augusto Leopoldino Koehler, Jacqueline Paiva Rufino e Silvano José Gomes Flumignan (Lei de improbidade administrativa. Principais alterações da Lei 14.230/2021 e o impacto na jurisprudência do STJ. Salvador: Editora Juspodivm, 2022, p. 68).

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Edilson Pereira Nobre Jr.
Professor Titular da Faculdade de Direito do Recife – Universidade Federal de Pernambuco. Desembargador do Tribunal Regional Federal da Quinta Região. Membro do Instituto Internacional de Derecho Administrativo – IIDA e do Instituto de Direito Administrativo Sancionador.

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