Área jurídicaDireito e EconomiaEconômico

Juristech, Lawtech, Legaltech: o nome não importa, o resultado sim

Falar sobre inovação, tecnologia e desenvolvimento no mundo jurídico é um desafio significativo, especialmente porque o setor é profundamente enraizado em tradições. Como já mencionei em outras ocasiões, nossos cursos jurídicos ainda parecem estar no século XVIII, enquanto nossos clientes já estão no século XXI — alguns até mesmo no XXII. Essa discrepância entre a formação e as demandas contemporâneas evidencia a necessidade urgente de modernização.

No entanto, há um movimento crescente em direção à transformação com inúmeras iniciativas sendo desenvolvidas no âmbito do Poder Judiciário, impulsionadas pelos Tribunais e pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Paralelamente, escritórios de advocacia estão adotando seus próprios processos de inovação, muitas vezes em parceria com startups que buscam romper com os tradicionalismos jurídicos e trazer soluções mais ágeis e eficientes para o dia a dia da prática legal.

Ao trabalhar em um processo produtivo, o primeiro passo é mapear todas as etapas envolvidas. Isso permite identificar falhas operacionais que, muitas vezes, comprometem o resultado final, mesmo que sejam aparentemente mínimas. Um processo que demanda alto custo pode falhar em entregar o resultado esperado justamente por pequenos erros em pontos específicos do fluxo. A otimização de procedimentos, portanto, é essencial para aumentar a produtividade e reduzir custos.

Um exemplo que ilustra bem essa ideia é o preparo de um café da manhã composto por ovos cozidos (3 minutos), torradas e café. Ao mapear esse processo, percebe-se que o cozimento dos ovos é a etapa mais demorada e, por isso, deve ser o ponto de partida para organizar as demais atividades. No entanto, diversas variáveis podem surgir: o tempo que a torrada leva para ficar pronta, o café que pode esfriar, a torradeira que está ocupada, entre outros. Cada etapa do processo agrega valor ao produto final — um ovo cozido tem mais valor do que um ovo cru, que, por sua vez, vale mais do que o ovo servido no café da manhã. Não se pode permitir que uma etapa mais rápida e barata cause danos ao resultado final, impedindo que o café da manhã seja servido quente e no tempo certo. Por isso, compreender o mapeamento de processos é fundamental para identificar onde agir e, principalmente, onde inovar.

Ao olharmos para o Poder Judiciário, esse mesmo princípio se aplica. É necessário mapear os processos judiciais para identificar e avaliar cada fase, garantindo que, ao final, o serviço prestado seja efetivo — ou seja, que o cidadão tenha sua decisão judicial cumprida de maneira ágil e eficiente. As inovações devem focar em melhorar as etapas críticas do processo, eliminando gargalos e aumentando a eficácia.

Falar em inovação no Poder Judiciário é essencial, mas é um caminho longo a ser percorrido. Antes de tudo, é preciso identificar as etapas procedimentais que podem ser aprimoradas. Muito se discute, por exemplo, sobre o uso da inteligência artificial no processo decisório — um tema relevante, que abordarei adiante. No entanto, ao mapear os processos, é crucial observar pontos específicos. Um exemplo prático é a etapa da prestação do serviço judicial, que, no Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), envolve os oficiais de justiça. Apesar de o processo ser digital, os oficiais precisam imprimir os mandados, se deslocar até o cidadão, realizar a intimação física, coletar a assinatura, retornar ao cartório, redigir a certidão de intimação, imprimi-la, assiná-la e, finalmente, digitalizá-la para reintegrar o documento ao processo. Ou seja, todo o fluxo processual é digital, exceto nesta etapa, que é física. Isso torna o processo mais lento, aumenta os custos operacionais (especialmente para os oficiais de justiça) e abre margem para erros que podem comprometer todo o procedimento. Além disso, apenas recentemente o sistema do Tribunal foi atualizado para organizar os processos em ordem cronológica, o que já era uma necessidade básica.

Outro ponto que chamou atenção recentemente foi um caso noticiado no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP). Em um recurso impetrado, uma das partes pediu a anulação de uma sentença de execução, alegando que ela teria sido escrita por inteligência artificial. Para “comprovar” o argumento, anexou aos autos uma consulta feita ao ChatGPT, na qual a ferramenta afirmou que havia uma “probabilidade média a grande” de o texto ter sido redigido total ou parcialmente por IA. O caso envolvia uma sentença de execução em que não foi reconhecida a abusividade de juros. A parte, em vez de questionar o mérito da decisão, optou por alegar nulidade com base na suposta autoria da IA.

O ChatGPT, por sua vez, respondeu que análises jurídicas densas e técnicas, como a presente na sentença, são algo que muitos modelos de IA treinados com dados jurídicos seriam capazes de produzir. A ferramenta citou como indícios a estrutura formal e técnica do texto, o uso extensivo de jurisprudência e referências, além da linguagem jurídica complexa.

Esse tipo de debate é, no mínimo, preocupante nos dias atuais. O argumento de que o ChatGPT “disse” que a sentença foi elaborada por IA e, por isso, deveria ser anulada, revela uma incongruência jurídica digna do século XVIII. A lógica parece ser a de que a inteligência artificial não pode ser usada para produzir decisões, mas pode ser utilizada para anulá-las. Essa contradição expõe a necessidade de uma discussão mais profunda e estruturada sobre o papel da tecnologia no Judiciário.

A discussão sobre o uso de inteligência artificial pelo Poder Judiciário ainda carece de embasamento sólido, especialmente quando se trata de casos repetitivos. Como já escrevi em outras ocasiões, as demandas repetitivas são um dos principais fatores que elevam o custo do serviço jurídico. Nesse contexto, a IA assume um papel crucial, pois pode agilizar a resolução desses casos e reduzir significativamente os custos processuais. Afinal, os fatos são conhecidos, a jurisprudência e as normas aplicáveis estão bem definidas, e os pedidos seguem um padrão previsível.

Além disso, é importante destacar que tanto as petições iniciais quanto as decisões judiciais já são construídas com base em modelos padronizados, utilizados de forma exaustiva. A diferença é que, hoje, esses modelos são criados manualmente, enquanto a IA poderia automatizar e otimizar esse processo, garantindo maior consistência e eficiência. O uso de ferramentas tecnológicas não deve ser visto como uma ameaça, mas como uma oportunidade para modernizar o Judiciário e torná-lo mais acessível e ágil para a sociedade.

De acordo com uma pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 70,9% dos magistrados e 75,5% dos servidores já utilizam inteligência artificial generativa para realizar consultas relacionadas ao trabalho. Além disso, aproximadamente 64% desses profissionais empregam a tecnologia para a geração de textos. As aplicações da IA no Judiciário são vastas e incluem a sistematização de resumos, traduções, análise de dados, criação de tabelas, mapas mentais, cálculos judiciais e muitas outras funcionalidades que otimizam o dia a dia do setor.

No entanto, quando se trata da busca por precedentes, a IA ainda não é tão eficiente quanto se esperaria. Os sistemas atuais, tanto das ferramentas de IA quanto dos sites dos tribunais, ainda dependem de formulações específicas de palavras-chave, o que muitas vezes se assemelha ao antigo jogo “Onde Está Wally?”. O grande desafio é que as IAs generativas são projetadas para simular o discurso humano, e não necessariamente para buscar fatos ou dados precisos. Isso limita sua eficácia na identificação de jurisprudências e precedentes relevantes.

Na prática, as IAs têm cumprido funções mais auxiliares, como agrupar processos, classificar documentos, identificar suspeitas de advocacia predatória, notificar sobre movimentações processuais e indexar documentos digitalizados. Essas tarefas, embora menos complexas, são essenciais para a organização e eficiência do sistema judiciário.

A mesma pesquisa do CNJ destacou os principais benefícios da implementação da IA no Judiciário:

  • Aumento da eficiência e agilidade no processamento de documentos (52,8%);
  • Otimização de recursos (48,6%);
  • Automação de tarefas repetitivas (45%);
  • Redução do tempo de tramitação dos processos (37,1%).

Os dados apresentados pelo CNJ reforçam o potencial transformador da inteligência artificial no Poder Judiciário. O aumento da eficiência e agilidade no processamento de documentos, citado por 52,8% dos entrevistados, demonstra como a tecnologia pode eliminar gargalos operacionais. Além disso, a otimização de recursos (48,6%) e a automação de tarefas repetitivas (45%) evidenciam que a IA não apenas acelera processos, mas também libera profissionais para atividades que demandam maior análise crítica e subjetividade. A redução do tempo de tramitação dos processos (37,1%) é outro ponto crucial, pois reflete diretamente na melhoria do acesso à Justiça para a população. Esses números não apenas comprovam os benefícios práticos da IA, mas também destacam a necessidade de investimentos contínuos em tecnologia para modernizar o Judiciário e torná-lo mais eficiente e acessível.

A utilização da IA pode, de fato, aprimorar o acesso à Justiça no Brasil, especialmente na tramitação de processos repetitivos. No âmbito da execução penal, por exemplo, softwares bem desenvolvidos podem contribuir para uma gestão mais justa e eficiente da população carcerária. Essas ferramentas podem alertar os magistrados sobre o término de penas, o preenchimento de requisitos para progressão de regime e o livramento condicional, entre outras situações.

No entanto, é crucial estar atento ao viés algorítmico, um fenômeno em que preconceitos são incorporados aos algoritmos, resultando em decisões que podem favorecer ou prejudicar certos grupos de maneira desproporcional. Diversos países, como o Reino Unido e os Estados Unidos, já utilizam sistemas preditivos, como o Oasys e o Compas, para auxiliar em decisões relacionadas à execução penal. Esses exemplos mostram tanto o potencial quanto os riscos da aplicação da IA no Judiciário.

Ao analisar o mapeamento de processos do Judiciário, é evidente que muitas etapas podem ser atribuídas à IA; quando se considera o custo de um processo judicial, é natural esperar que os recursos públicos investidos resultem em um benefício efetivo para a sociedade. Ou seja, a atividade jurisdicional deve ser prestada de forma ágil e eficiente. Não adianta termos decisões judiciais transitadas em julgado se elas não são cumpridas na fase de execução. Por exemplo, um devedor que oculta seu patrimônio para evitar o pagamento de uma obrigação judicial frustra a finalidade do processo. Nesse contexto, a IA pode desempenhar um papel crucial na localização de bens e na garantia do cumprimento das decisões judiciais. No futuro, talvez até seja possível suprimir a fase de execução (cumprimento de sentença) com o auxílio dessas tecnologias.

Na fase de execução, todos os dados factuais já foram analisados durante o processo, restando apenas a satisfação do direito. Esse é um momento propício para a utilização da IA, que pode agilizar e garantir a efetividade das decisões. A inteligência artificial tem o potencial de ampliar o acesso à Justiça e assegurar que as decisões judiciais sejam cumpridas de maneira célere e eficiente.

O caminho a ser seguido por pesquisadores e profissionais do Direito não deve se limitar a reduzir a carga de trabalho do Judiciário. É preciso buscar um processo judicial mais acessível, ágil e efetivo para a população. Casos singulares, que demandam uma análise subjetiva e aprofundada, devem continuar sob a responsabilidade dos magistrados. Já as demandas repetitivas, a identificação de práticas predatórias, a busca por precedentes e a organização da gestão processual podem ser delegadas à IA. Dessa forma, a tecnologia se torna uma aliada na construção de um Judiciário mais moderno, justo e eficiente.

 

 

Colunista

Avalie o post!

Incrível
1
Legal
0
Amei
1
Hmm...
0
Hahaha
0
Pedro Carvalho
Advogado e Professor Universitário com mestrado em Direito pela UFPE. Especialista em Contratos pela Harvard University e em Negociação pela University of Michigan. Possui certificações em Sustentabilidade, Governança e Compliance pela Fundação Getúlio Vargas. É docente em instituições de prestígio como UNICAP, IBMEC e PUCMinas.

    Você pode gostar...

    Leave a reply

    O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *