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Multiplayer e suporte

Por Otávio Henrique Baumgarten Arrabal

Graduando em Direito pela FURB.

 

Quem joga games sabe muito bem que o modo multiplayer do jogo eletrônico (obra/software) na maioria das vezes é um grande atrativo. Jogar com mais pessoas, online, pode ser muito mais divertido e interessante do que jogar sozinho. Tal funcionalidade [feature] (a depender do jogo que tenha modo campanha e multiplayer ou seja só multiplayer) constitui valor agregado (ou principal[1]), e denota uma hibridização entre características de produto e serviço (ou pelo menos a característica de um serviço imbuído em um produto).

Jogar com outros jogadores-usuários-consumidores em rede pressupõe uma infraestrutura técnica de tecnologia e segurança da informação dotada de uma elevada complexidade, sustentadas e fornecidas pelas mantenedoras dos games [developers, publishers etc.] (ou suas business partners)[2], pelas fabricantes dos consoles, pelos serviços de datacenter e cloud computing etc.[3]

É de se cogitar que tal suporte, tão custoso no que diz respeito a sua continuidade, pode ser encerrado caso haja uma baixa quantidade de jogadores usufruindo do serviço, em virtude de defasagem/obsolescência técnica, dos lançamentos de “nova geração” [next-gen] que são planejados estrategicamente, ou até mesmo por pleno desinteresse.[4]

Questões interessantes do ponto de vista jurídico podem surgir deste contexto.

A excelente monografia do Dr. Vonthien, intitulada “Online-Komponenten digitaler Spiele: Eine rechtliche Untersuchung ihres Supports, ihrer Wiederherstellung und ihrer Eliminierung”[5] aborda algumas delas (sob a complexa perspectiva do direito alemão, e com referências a situações jurídicas norte-americanas), a exemplo das obrigações de suporte contidas nos Terms of Services e da previsão de seu possível encerramento; a interdependência do serviço com os mecanismos de Digital Rights Management e a sua quebra; a (im)possibilidade lícita de restauração do serviço por intermédio de engenharia reversa[6] (i.e., constituição de servidores “privados”/paralelos) e a tese de exceção autoralista por preservação, dentre outros pontos.

Mas em se tratando de direito brasileiro (donde, aparentemente, por hora carece de maiores debates substanciais na temática), verifica-se uma grande necessidade de se casar previsões de direito do consumidor (da perspectiva do jogador-usuário-consumidor) com as de direito de autor e mesmo de previsões de caráter mercantil-comercialista (da perspectiva dos mantenedores/desenvolvedores de games e seus servidores).  E, com relação a preservação e a memória, a temática merece um diálogo aprofundado com os direitos culturais constitucionalizados.

Sobre os servidores “privados”, vale uma consideração: há jogos que oficialmente permitem que você opere (ou hospede) seu servidor para partidas online (a exemplo do Counter Strike 1.6 ou versões mais antigas do Call of Duty para PC; principalmente jogos versados no multiplayer), podendo tal servidor ser acessado pela server list/lobby[7] ou por conexão direta no “prompt de comando” do game.

Tais jogos, se não mais receberem suporte de seus desenvolvedores ou se seu suporte passar a ser somente ocasional, muito provavelmente continuarão a ser jogados (como é o caso do Counter-Strike 1.6, que tem um cenário incrível de competição entre times até hoje) se ainda houver servidores ativos e pessoas fãs (e não estiverem infestados de cheaters[8]).

Mas há muitos outros jogos em que o modo multiplayer somente é proporcionado pela mantenedora/desenvolvedora, não havendo prima facie possibilidade de uma hospedagem privada.[9]

Porém, através de engenharia reversa[10], muitos servidores paralelos de MMORPGs (ou de MMOGs, que não envolvem só o role-play)[11] e jogos de outros gêneros com suporte insuficiente, descontinuado ou abandonado (ou mesmo em plena atividade, com a sua escorreita manutenção) foram surgindo, e alguns litígios com o objetivo de realizar o takedown de tais servidores e/ou da distribuição dos softwares de hospedagem fruto da engenharia reversa foram sendo ajuizados.

Muitas destas ações são norte-americanas, a exemplo de Davidson Assoc. (Blizzard) v. Internet Gateway (2006); Atlus Co., Ltd. v. “John Doe”[12] (2021); Gravity Co., Ltd. v. Novaro, LLC (2022) etc. [13] Mas há notícia de lides versando a matéria em território nacional, a exemplo do deferimento parcial de pedido de antecipação de tutela pelo Juízo da 33ª Vara Cível da Comarca de Recife em favor de mantenedora/desenvolvedora, oficial/licenciada de popular jogo MMORPG, para que os requeridos imediatamente se abstivessem de explorar o game por intermédio de “servidor pirata”.[14]

Outro julgado interessante é o prolatado pela 1ª Turma Recursal do Egrégio Tribunal de Justiça da Bahia, em que o objeto principal não versa sobre o servidor privado, mas sim o banimento de uma conta de um servidor privado devido ao uso de bots pelo jogador. No feito, o requerente colocou em litisconsórcio passivo a mantenedora/desenvolvedora oficial de outro consagrado jogo MMORPG, junto a uma pessoa jurídica que mantém (ou mantinha) servidor privado de tal jogo.

Correta e precisamente, a mantenedora oficial pugnou pela sua ilegitimidade passiva e lhe foi reconhecida tal situação jurídico-processual pelo juízo, além do mérito ter sido julgado improcedente para os pedidos do jogador requerente.[15]

Com relação ao caso na Bahia, uma perspectiva precisa ser honestamente colocada aqui: quem joga em servidores privados cujos games apresentam servidores oficiais (i. e., representação ou até mesmo agenciamento) e suporte vigente (ou mesmo descontinuado) no Brasil ou em outro país, a meu sentir, não pode ser considerado consumidor para fins de incidência de tal “microssistema” e nem aparenta poder deduzir qualquer pretensão legítima, cujos desdobramentos jurídico-processuais sejam válidos[16] e eficazes a seu favor, eis que o “serviço” funda-se em ilícito.

 

Notas e Referências:

[1] Se o jogo for mesmo destinado à jogatina online, como um punhado de jogos first ou third person shooters para plataformas mobile existentes.

[2] “O desenvolvimento e produção de jogos é tipicamente realizado por um estúdio de desenvolvimento e envolve várias etapas, como design, arte, programação e testagem. Um estúdio de desenvolvimento pode se especializar no desenvolvimento de jogos para tipos específicos de hardware (PC, console e dispositivos móveis) ou para múltiplos dispositivos. Durante a fase de desenvolvimento, os desenvolvedores de jogos utilizam ferramentas de desenvolvimento de software, ‘como game engines e middleware de áudio e vídeo’, que podem ser criadas internamente ou licenciadas de terceiros. […]. Após o desenvolvimento, o jogo segue para publicação. O publicador, ou publisher, é o agente responsável por disponibilizar os jogos ao público, seja por meio de venda (podendo utilizar diferentes métodos de monetização) ou de forma gratuita. […].” (CADE. Parecer no Ato de Concentração 08700.003361/2022-46 – Microsoft/Activision Blizzard)

[3] “Muita coisa aconteceu desde 1958, quando William Hinginbotham usou um osciloscópio para simular um jogo virtual de tênis. A tecnologia de computação deu saltos impressionantes em poder, miniaturização e sofisticação. As redes de dados internacionais de alta velocidade fazem parte da vida cotidiana moderna no que chamamos de ‘Internet’. Nosso desejo peculiarmente humano por entretenimento e diversão impulsionou a fusão e a evolução das tecnologias tanto de computação quanto de rede. […]. Os jogos multiplayer estão fazendo maior uso da Internet e impulsionando a demanda por serviços de acesso ‘melhores do que dial-up’ no espaço do consumidor. No entanto, muitos engenheiros de rede não estão familiarizados com os jogos que utilizam suas redes, pois os designers de jogos geralmente não têm certeza de como a Internet realmente se comporta […], como os jogos multi-party/multi-player utilizam a Internet e influenciam os patterns de tráfego. Os jogos multijogador impõem cargas aos provedores de serviços de Internet (ISPs) bem diferentes das cargas geradas por e-mail, navegação na Web ou conteúdo de streaming. A demanda das pessoas por interatividade realista cria demandas um tanto únicas ao nível da rede para troca de dados altamente confiável e precisa pela Internet […]. Os game designers desenvolveram técnicas fascinantes para manter a ilusão de um jogo de experiências compartilhadas, mesmo quando a rede subjacente está perdendo dados e geralmente se comportando mal.” (Armitage/Claypool/Branch. Networking and Online Games: Understanding and Engineering Multiplayer Internet Games. Nova Jérsei: Wiley, 2006. [ebook] [tradução livre])

[4] Cfr. Winkie. “What it’s like to kill a game: how developers and community managers deal with the process and pain of shutting down online communities”. PC Gamer, 2018.

[5] “Componentes on-line de jogos digitais: Um exame jurídico de seu suporte, restauração e eliminação” (Springer, 2020). Disponível em open access em: <https://link.springer.com/book/10.1007/978-3-658-29993-4>

[6] Mais na perspectiva dos emuladores, mas que também é de interesse no presente contexto, cfr. Schirru. Direito Autoral e Games: A Engenharia Reversa de Programas de Computador e o seu Potencial como Fonte de Inovação. Curitiba: Juruá, 2019.

[7] Há aqui, também, o problema dos servidores “redirecionadores” (proxy), presentes até mesmo nos servers list oficiais, que podem acarretar riscos atinentes à segurança da informação do próprio jogador. Cfr. “Malicious Counter-Strike 1.6 servers used zero-days to infect users with malware”. ZDNet, 2019.

[8] Um estudo bastante curioso sobre as condutas de “counterplay” é o de Meades. Understanding Counterplay in Video Games. Nova Iorque: Taylor & Francis Routledge, 2015. E um julgado nacional relevante que reforça o combate à disseminação de cheats (para além dos inúmeros julgados em que o jogador tem a conta banida por uso de hack ou pelo exercício de outro comportamento que viole os termos de serviço, e tenta reverter o banimento judicialmente com alegações consumeristas) é a Sentença no Procedimento Comum Cível 0186431-76.2019.8.19.0001

[9] Uma perspectiva muito relevante sobre a temática e sua dinâmica também pode ser encontrada em Lin/Sun. Thrift Players in a Twisted Game World? A Study of Private Online Game Servers. In: Crawford/Gosling/Light (eds.). Online Gaming in Context: the social and cultural significance of online games. Nova Iorque: Taylor & Francis Routledge, 2013.

[10] Mas nem sempre o servidor privado é oriundo totalmente de engenharia reversa, eis que o código-fonte que permite seu funcionamento pode ter sido vazado ou roubado.

[11] Cfr., principalmente, (i) Bainbridge. Online Multiplayer Games. Suíça: Springer, 2009. p. 1 [tradução livre]: “Embora os limites do conceito sejam vagos, a ideia central é a de um mundo gerado por computador, no qual o usuário é representado por um avatar ou personagem, interagindo com outros personagens, sob a alçada de regras e para atingir as metas estabelecidas pelos criadores do MMORPG e pelos jogadores.”; (ii) Moreira. Identificando indicadores de economias virtuais para melhorar aquisição, retenção e monetização: uma aplicação aos MMOGs. Tese de Doutorado defendida perante o PPG em Ciências da Computação da UFPE, 2021.

[12] Expressão equivalente a requerido “desconhecido ou a descobrir”.

[13] Para uma perspectiva asiática (de onde muitos MMORPGs são exportados para o mundo), vide Vale/Tao. “The litigation landscape of private server actions in Asia”. Lexology, 2021. Uma outra situação muito interessante é a do jogo online Club Penguin, focado no público infantil. Com seu encerramento em 2017, houve uma proliferação de servidores paralelos, sem nenhum tipo de filtro, moderação ou censura de conteúdo inadequado, o que acabou gerando algumas situações de vulnerabilidade digital às crianças que eventualmente se cadastravam e jogavam em tais servidores. Confira uma matéria da BBC sobre o assunto: https://www.youtube.com/watch?v=weU5b5WPtIY (Club Penguin: How fans turned Disney’s children’s game toxic).

[14] Vide relatório do Acórdão no Agravo de Instrumento 0014067-24.2019.8.17.9000

[15] Vide Acórdão no Recurso Inominado 0163230-45.2019.8.05.0001

[16] Cfr. Didier Jr./Nogueira. Teoria dos Fatos Jurídicos Processuais. Salvador: Juspodivm, 2013.

Obs: sobre a Coluna do Estudante, cuida-se de um espaço destinado aos graduandos em Direito que desejem publicar conosco.

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