Área jurídicaDestaques recentesFora da caixaJurisconsulto

O Estilo Eloquente

Por José Rafael de Menezes*[1]

Politicamente, século dos bacharéis, o XIX, com seu parlamentarismo britânico, suas revoluções sociais com mística francesa, alimenta os destinos brasileiros pela eloquência dos homens públicos formados em Olinda ou em São Paulo. O pernambucano Nunes Machado é um exemplo de parlamentar – revolucionário – vítima da sua eloquência, na liderança militarmente equívoca da última batalha dos praieiros, em 1849, seu contemporâneo de estudos jurídicos, o Senador Nabuco de Araújo, colocará o requintado talento oratório, a serviço da monarquia; Eusébio de Queiroz, resume um e outro, pois sendo cortesão, é de certa forma revolucionário, como abolicionista. E em Joaquim Nabuco modela-se toda a classe e o ethos histórico na perfeição da eloquência brasileira. Sobre os dons excepcionais do jovem Nabuco no teatro Santa Isabel, a ganhar a causa da Abolição, a influência do seu preceptor mestre-escola Barão de Tautphoeus.

Em Professores domésticos, a se comunicarem para meia dúzia de púberes ou em professores de colégios – e Lyceus – em salas acanhadas, ficaria sem estímulo, quando não supérflua ou ridícula a eloquência do mestre-escola; igualmente dentro dos currículos e métodos oficializados. Em alguns, porém, há tal efervescência para o comunicar-se que a eloquência flui, ainda que “despejada” sobre um só discípulo. Deve ter acontecido isto nas aulas privadas de Sales Torres Homem, o trovejante autor das Cartas e Manifestos – Timândro – um dos opositores mais incômodos dos gabinetes imperiais; como há de se supor nas primeiras aulas de Tobias Barreto, adolescente paupérrimo, ensinando filosofia e retórica, francês e história, no Recife de 1860. Bom espaço didático somente alcançaria Tobias na Faculdade de Direito em 1880, mas é como mestre-escola que exercita a eloquência modificadora dos padrões de ensino, criadora da Escola do Recife; é bom lembrar, haver Tobias Barreto feito o seu mais famoso pronunciamento – Discurso em Mangas de Camisa – para um auditório de uma modesta cidade da zona açucareira de Pernambuco, num Clube Popular, sede de suas ilusões em 1879.[2] Para outros mestres-escolas de uma vocação oratória semelhante, já havia auditório escolar no Lyceu Provincial de Pernambuco, por onde passariam um Pe. Lopes Gama e um Maciel Monteiro, também parlamentares na Corte, com prestígio nacional. Um discípulo de ambos, Aprígio Guimarães será um professor de eloquência da “arte de falar em público”[3] e através dela organiza seu magistério, impondo-se antes de Tobias Barreto, na Faculdade, nos anos de 1870, como um professor admirado e estimado por seus alunos, numa verdadeira revolução didática, por esse estimado…

Vinculando-se ao denso ambiente pernambucano, cujo título erudito com profunda justificativa, de Escola do Recife, pertence-lhe, Sylvio Romero será mestre-escola no Rio de Janeiro. No estilo exuberante do seu daimon nordestino, de conterrâneo de Tobias, e inteiramente desprendido, tanto de métodos como de estipulações profissionais, Artur Guimarães relata a sucessão de fatos indicadores dos ambientes e das personalidades, no Brasil dos mestres-escolas: “Leituras desordenadas tinham-lhe aguçado o espírito e despertado curiosidade e ânsias novas, que o tempo e o estudo lhe dariam a conhecer. Quem se prestaria a dar-lhe noções gerais, científicas de várias ordens?” O jovem pretendente à carreira literária, já com alguns contos – e sem dúvida, poesias – em rascunhos, ousou falar com Sylvio Romero, o crítico literário de eloquente opinião. “O professor extranhando tanta sêde de saber em um empregado de comercio, submeteu a minucioso interrogatório e, só depois de ter verificado não se tratar de pedanteria, de um luxo é que anuiu”.[4]

Para um magistério privatíssimo, destinado a um aluno sem condições de recompensar ao professor ilustre, somente a esperança de um discípulo, Sylvio Romero, já se orgulhava dos seus “evangelistas”: Clóvis Bevilaqua, Artur Orlando, Francisco Alves; um moço de balcão talentoso, por tais origens, desafiava seu mestrado. Institui um programa eloquentíssimo. Uma Propedêutica das Ciências; em trinta e seis pontos; do Conceito de Ciência à idéia de Civilização, incluindo Matemática e Física, Sociologia e Política, História da Filosofia e das Artes. Uma imensidão erudita, a cumprir-se com entusiasmo na medida em que o aluno correspondia. Por coincidência, será Sylvio Romero, prof. de Filosofia do Direito de Argeu Guimarães, filho desse discípulo tão privilegiado. O adolescente está atento ao mestre famoso, com toda turma em estado de rendição. Mas Sylvio Romero não gostava dessa passividade; em tema hirsuto, quebrava a monotonia “pela clareza e facilidade com que expunha e resumia, escancarando-nos (sic) as portas do conhecimento acumulado e transfigurado pela sua inteligência”.[5] O mestre-escola evoluíra nele a tais dimensões acadêmicas, sendo proporcional a revolução a produzir-se por seu estilo, a violar formalismos e solenidades. Numa tarde de magistério na Faculdade Livre de Ciências Jurídicas do Rio de Janeiro, o mestre de Filosofia do Direito, percebendo o esforço da turma para escutar suando no verão carioca, propõe uma saída para o pátio em sombras, onde se improvisa uma “pelada”, na mesma vibração do comunicar-se de Sylvio Romero.

A eloquência não é um artifício, embora o termo tenha se comprometido com pompas verbais em ambientes suntuosos. Com tribunais e púlpitos, onde um Cícero acuse Catilina e um Bossuet evoque glórias – e direitos divinos – de Reis… A eloquência é um estilo grandioso, em técnica de expressão e conteúdo de programa cuja alma se alimenta da vida, em capacidade de adaptação para o soerguimento, como lógica vital. Não pode ser eloquente quem não vive, quem não sofre. Os nordestinos Tobias  Barreto e Martins Júnior, foram mestres-eloquentes, penando em suas profissões, desafiados, injustiçados, a ponto da eloquencia ser neles, em Tobias sobretudo, um gemido teimoso, composição amarga de uma alma genial, tropeçando sem render-se a uma sociedade reacionária. Como o poeta Cruz e Sousa, por causa da cor; empolgantes esforços desses começos de mulato e negro num país escravocrata, ambos foram mestres-escola na adolescência e só obtiveram o reconhecimento nacional das gerações literárias e cultas pela eloquência post-mortem, dos ensaios do sergipano, dos poemas do catarinense.

A eloquência de Sylvio Romero rendeu mais, escalando-se com as vantagens do seu porte e do seu ambiente, da própria astúcia de quem se preparou para o êxito, sem traumatizar-se, com uma lógica triunfalista a fazer parte da eloquência, embora tendo sua tática de simplificação.

Medeiros e Albuquerque, memorialista de sutilezas e julgamentos vigorosos, passou pelas aulas – ou cursos – privadas do autor da História da Literatura Brasileira: “… Sylvio Romero meu professor de filosofia. Dava-me aulas particulares. Meu pai lhe pedira isso e lhe perguntara o preço das lições. Ele ficara de ajustar depois. “Era em Santa Teresa, na casa de Sylvio! Conversamos um pouco, ele tomou em uma estante dez ou doze volumes, abriu-os na parte em que davam a definição de disciplina e mandou que eu os trouxesse para casa, lesse e lhe dissesse a minha opinião”. Em alguns dos nossos Cursos de pós-Graduação, como nos Mestrados, este procedimento sobrevive. Sem as intervenções ruidosas, a prosseguirem no estilo do ardoroso mestre-escola, em episódica colaboração intelectual do grande Sylvio Romero. “Invariavelmente quando eu acabava de expor a questão ele dizia que estava errado” – prossegue Medeiros e Albuquerque.[6] “Fazia um barulho imenso a propósito de tudo. Quando me acontecia dar um bom argumento, batia palmas, ria-se contente. E as discussões eram acaloradas”. Mas havia uma conclusão, desde que se tratava de aulas: “No fim ele resumia a questão; fazia a crítica dos meus e dos seus argumentos; mostrava muitas vezes os sofismas de que lançara mão para me embaraçar. E tudo era feito alegremente, com muito bom humor”.[7]

A eloquência nasce de uma energia poderosa, fluindo em adaptações hábeis; se possuir uma consciência didática, ganhará em missão professoral. Tudo indica ter possuído esses requisitos a eloquência de Alcindo Sodré, mestre-escola aristocrático na aristocrática Petrópolis dos começos do nosso século. Era um professor “eternamente jovial, irônico sem melindrar”, que, ao ministrar aula sobre a Revolução Francesa, cantava a Marselhesa, depõe Artur César Reis (in Anuário do Museu Imperial, nº XXI, pág. 152). Se mantinha o humor e a teatralidade, não fugia do ponto nem desperdiçava a lição. “Porque não obstante o tom alegre das suas aulas, o respeito era absoluto”. A eloquência didática está assim completa: é uma expressão vivaz, altissonante, emotiva, despertando, empolgando para vigorar. Não é um discurso desafiador de auditórios, esmagador de expectativas ingênuas; é uma inspirada e ritmada composição verbal, com suas vinculações a programas e ambientes, onde a clientela, no caso alunos-adolescentes, será considerada em prioridades para a eles se chegar em intuitos de aprendizagem, com possíveis ambições de se edificar, como uma arregimentação de discípulos. Como em preleções escondidas de um Arruda Câmara, em 1808 no Areópago de Itambé, “templo cívico”, ou em aulas concorridas de um mestre Alceu de Amoroso Lima, nos começos da PUC, nos anos de 1950.

 

Notas e Referências:

* José Rafael de Menezes nasceu em 23 de agosto de 1924 no município de Alagoa do Monteiro, atual Monteiro, no Estado da Paraíba. Em 1944, ingressou na tradicional Faculdade de Direito do Recife, após obter aprovação em primeiro lugar em seu concorrido vestibular; e, por escolha dos colegas, foi distinguido como orador da Turma de 1948. Ainda na condição de estudante de Direito, compartilhou com o Professor Barreto Campelo a honra de ser um dos oradores oficiais da Cerimônia de instalação da então Universidade do Recife (atual Universidade Federal de Pernambuco), no dia 11 de agosto de 1946, nas dependências do Mosteiro de São Bento em Olinda-PE. Em 1947, um ano antes de concluir o bacharelado em Direito, obteve a licenciatura em História e Geografia pela Faculdade Manoel da Nóbrega, atual Universidade Católica de Pernambuco. Enquanto ainda era estudante de Direito, em 1943, ao lado do também acadêmico Felipe Tiago Gomes, dos Professores Luiz Delgado e Everardo Luna, e outros colegas e mestres, sua vocação para o magistério o levou a fundar a Campanha do Ginasiano Pobre em Recife, onde se iniciou na docência, atual Campanha Nacional das Escolas da Comunidade (CNEC), também conhecida como rede de educação cenecista, que se encontra presente atualmente em 18 Estados e no Distrito Federal. Em 1949, retorna a Monteiro após ser nomeado Promotor Público. Pouco tempo depois, entrou no mundo da política, obtendo eleição para Deputado Estadual da Paraíba pelo Partido Socialista Brasileiro. Por ato do então governador José Américo de Almeida, foi nomeado para a Diretoria de Ensino da Paraíba. Contudo, exerceu esta função por apenas 3 meses. Na Paraíba, também exerceu a Magistratura, na condição de juiz auditor militar. Em 1967,  chegou a ser convidado por Nilo Coelho, Governador do Estado de Pernambuco à época, para ser Secretário de Educação do Estado. Contudo, os filhos do professor José Rafael de Menezes nos confidenciaram que sua oposição a ditadura civil-militar levaram o SNI (Serviço Nacional de Informações) a impedir sua nomeação para esta função. Esta singular vinculação a Pernambuco e a Paraíba, talvez explique também a eleição do Professor José Rafael de Menezes para a Academia Pernambucana de Letras e para a Academia Paraibana de Letras, imortalizando-se nas Casas de Carneiro Vilela e de Coriolano de Medeiros. Na Paraíba, também foi agraciado com o título de sócio do Instituto Histórico e Geográfico daquele Estado. Colaborou com diversos jornais de Pernambuco e da Paraíba, destacando-se entre eles: O Norte, A Imprensa, A União, Correio da Paraíba, Jornal do Commercio e Diário de Pernambuco. Neste último Jornal, o mais antigo em circulação na América Latina, era o responsável pela redação dos editoriais. No Ensino Superior, notabilizou-se como Professor em diversas instituições públicas e privadas, a exemplo da Universidade Federal da Paraíba, da Universidade Católica de Pernambuco, da Universidade Federal de Pernambuco, da FAFIRE e da atual Faculdade de Administração e Direito da Universidade de Pernambuco (FCAP-UPE), onde lecionou Sociologia. No Jornalismo e na Literatura, notabilizou-se como um dos pioneiros da crítica cinematográfica no Brasil; além de haver sido o primeiro a lecionar esta disciplina em diversas Universidades do Nordeste brasileiro. Na sua extensa obra literária, pode-se destacar: “A Geração de 45”, “Andrade Bezerra: o erudito gentil”, “História do Lyceu Paraibano”, “O filosofar em Luiz Delgado”, “O Humanismo Socialista de Joaquim Nabuco”, “Reflexões de um professor universitário”, “Caminhos do Cinema” e “O Mestre-Escola brasileiro”, que consideramos sua grande obra.  Em setembro de 2001, foi distinguido com o título de Cidadão Pernambucano, outorgado pela Assembleia Legislativa de Pernambuco. Naquela ocasião, assinalou que buscou ser essencialmente um professor, o que o levou ao mundo da literatura. Foi casado com D. Ádila de Paula Menezes, e deste amor nasceram: Raíssa, Tereza Julieta, Bruno e Rafael José. Em 02 de outubro de 2009, falece na Cidade de Recife-PE. Após a sua páscoa, a Universidade Estadual da Paraíba denominou uma de suas bibliotecas setoriais de “Biblioteca Setorial José Rafael de Menezes” e o Município de Monteiro criou uma cozinha comunitária e a nominou “Cozinha Comunitária José Rafael de Menezes”. Por fim, queremos registrar nosso agradecimento ao professor, magistrado e escritor Rafael José de Menezes por haver permitido a publicação do texto de seu pai neste Portal.

[1]Publicado originalmente em: MENEZES, José Rafael de. O Mestre-Escola brasileiro. Recife: Conselho Municipal de Cultura, 1982, p. 81-85.

[2]A QUESTÃO DO PODER MODERADOR E OUTROS ENSAIOS BRASILEIROS, pág. 173.

[3] ESTUDOS SOBRE O ENSINO PÚBLICO, 1860, pág. 153.

[4] SYLVIO ROMERO DE PERFIL, págs. 12 a 14.

[5] Argeu Magalhães, in PRESENÇA DE SÍLVIO ROMERO, págs. 40/41.

[6] QUANDO EU ERA VIVO, pág. 50.

[7] Idem, ibidem.

Colunista

Avalie o post!

Incrível
4
Legal
1
Amei
4
Hmm...
0
Hahaha
0

Você pode gostar...

1 Comment

  1. Prof. Venceslau, em nome da família obrigado pelo texto. Rafael Jose de Menezes

Leave a reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

1 × três =