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O que a teoria da relatividade tem a ver com a pensão por morte previdenciária?

Você se lembra daquele filme em que astronautas exploram o universo numa nave espacial em busca de uma solução para a incapacidade da Terra de produzir alimentos? Pois é, chama-se Interstellar. Para mim, o melhor filme de ficção científica de todos os tempos. Por que? Por causa do risco que é chamá-lo simplesmente de ‘ficção científica’. Porque, no fim das contas, parece-me muito mais uma distopia possível (no melhor estilo Black Mirror, da Netflix) do que uma ficção raiz como Star Wars ou Star Trek (adoro ambas!). Porque, acima de tudo, o que há de científico no filme simplesmente não é ficção.

Em dado momento (foi mal pelo spoiler…), eles precisam pousar num planeta próximo a um buraco negro. Não sei se você sabe, mas os buracos negros não são buracos. Não ligam dimensões, galáxias ou universos (esses são os ‘buracos de minhoca’). São corpos materiais com uma quantidade imensa de massa num volume minúsculo.

Imagine tudo que há no planeta Terra sendo comprimido até o tamanho de uma bola de gude. Com tamanha massa em tão pequeno volume, resulta daí uma densidade gigantesca (quantidade de massa por milímetro cúbico). De acordo com a Lei da Gravitação Universal (thanks, Sir Newton), a força gravitacional de um corpo é diretamente proporcional a sua densidade: quanto maior a densidade (ou seja, quanto maior a quantidade de massa dentro do mesmo volume), maior será a gravidade. Se uma quantidade de massa equivalente a milhares de vezes a do nosso Sol for comprimida até ficar do tamanho de uma bola de tênis, teremos uma força gravitacional tão grande, mas tão grande, que nem mesmo a luz conseguirá escapar. Como não há luz, em seu entorno ficará um breu absoluto.

Senhoras e senhores, eis aí o buraco negro.

Já com Isaac Newton na sala, vamos convidar mais dois personagens ilustres: Albert Einstein e Stephen Hawkins. Ouvindo essas três figuras, sabemos agora que o tempo não tem uma velocidade imutável e constante, mas varia em função de outras variáveis. Ele pode ser esticado para andar mais devagar ou comprimido para andar mais rápido. De acordo com nossos amigos na sala, quanto maior a força gravitacional e quanto maior a velocidade do deslocamento, mais lento é o curso do tempo.

No limite, a submissão de um corpo a uma força gravitacional infinita ou a um deslocamento na velocidade limite da luz implicariam, para esse corpo, uma paralisação total do curso do tempo!

Irado, não?

Voltando ao filme e à passagem em que os viajantes precisam ir a um planeta próximo a um buraco negro, alguns personagens descem sobre a superfície numa nave menor enquanto outros ficam na nave principal. Alguma coisa dá errado e eles passam mais tempo do que o planejado. Quando conseguem voltar à nave principal e reencontram os que haviam ficado, décadas se passaram: eles já são idosos! Há quem diga (tá, foi a tia do Zap…) que a música que toca nessa passagem marca um tique-taque ao fundo com intervalo de 1,25 segundo, marcando o equivalente, cada um, a um dia na Terra. Como os viajantes que ficaram em órbita estavam menos sujeitos à gravidade e ao deslocamento, eles envelheceram muito mais rápido que aqueles que desceram à superfície. O tempo correu em velocidades diferentes para cada equipe. Isso quebra, de uma vez por todas, a ideia de que o tempo seria um fator fixo e imutável.

Antes que você, jurista, perca o interesse na leitura, responda-me o seguinte: o que isso teria a ver com o benefício de pensão por morte no direito previdenciário brasileiro?

Veja só.

A Lei n. 8.213/91 (Plano de Benefícios da Previdência Social) foi alterada em 2019 para exigir-se, como regra geral, início de prova material de união estável e dependência econômica produzida nos dois anos imediatamente anteriores ao óbito e apta a comprovar união estável por tempo não inferior a dois anos antes do óbito. Assim, a pessoa que pede uma pensão por morte ao INSS deve apresentar: (a) documentos que comprovem ter a união estável durado pelo menos dois anos até o óbito e (b) documentos que tenham sido produzidos nos dois anos anteriores ao óbito.

Veja os textos:

Art. 16. (…)

§ 5º As provas de união estável e de dependência econômica exigem início de prova material contemporânea dos fatos, produzido em período não superior a 24 (vinte e quatro) meses anterior à data do óbito ou do recolhimento à prisão do segurado, não admitida a prova exclusivamente testemunhal, exceto na ocorrência de motivo de força maior ou caso fortuito, conforme disposto no regulamento. (Incluído pela Lei nº 13.846, de 2019).

§ 6º Na hipótese da alínea c do inciso V do § 2º do art. 77 desta Lei, a par da exigência do § 5º deste artigo, deverá ser apresentado, ainda, início de prova material que comprove união estável por pelo menos 2 (dois) anos antes do óbito do segurado. (Incluído pela Lei nº 13.846, de 2019).

Não é necessário que os documentos cumpram as duas exigências simultaneamente. Na prática, o INSS exige que alguns documentos comprovem união estável por mais de dois anos e outros que comprovem que a união estável durou até o óbito, sendo que esses últimos devem ter sido produzidos dentro desse período final de 24 meses.

Se você mora em um centro urbano, tem em seu nome contas de água, luz, telefone, internet, tevê a cabo, paga condomínio, tem conta em banco, vive tirando foto do celular e postando em rede social, certamente você pode contar que provas materiais sobre aspectos importantes de sua vida sejam produzidas quase todos os dias.

Nos centros urbanos, o tempo voa. A vida é marcada e documentada a uma velocidade alucinante, mesmo contra a vontade. Se a tia do Zap tira fotos suas em um evento social (uma festa em família, por exemplo) e joga na internet, lá está você, triturando, de boca aberta, uma coxinha. Dados sobre sua localização no espaço-tempo se tornam assim públicos e provados. Para o bem ou para o mal.

Mas o que dizer de dona Severina, de 80 anos, que vivia numa casinha emprestada na zona rural, região em que nasceu, cresceu, trabalhou, deu à luz seus filhos e viveu feliz a vida inteira, até que seu companheiro, João, com quem conviveu durante quase sessenta anos, viesse a falecer? Ela não tem telefone, internet, água encanada, serviço de esgoto. A energia elétrica está no nome do proprietário. Ela não declara imposto de renda, não tem conta em banco. Seu filho mais novo já tem 35 anos de idade e é quem vai à cidade, quase uma hora a pé de sua casa, para sacar-lhe o benefício de aposentadoria que recebe como segurada especial trabalhadora rural.

A verdade é que, no sitiozinho em que ela mora, nada acontece. Ninguém fica sabendo se uma guerra estoura numa ponta do mundo e que justamente por isso o açúcar e o café ficaram mais caros. Os serviços públicos essenciais mal chegam até ela. Seus resfriados, dores de cabeça e febres são curados ali mesmo. E sempre viveram felizes, por décadas, sozinhos, recebendo eventualmente a visita de um filho que não tenha ido embora para o Rio de Janeiro.

Até que um deles morre. E alguém lhe diz que, por causa disso, porque ambos eram aposentados como agricultores, aquele consorte que fica tem direito a um benefício de pensão por morte. O problema é que, como o tempo quase não anda nesse lugar, os fatos acontecem com uma lentidão inacreditável e, em sintonia com isso, também os fatores de produção material de prova não ocorrem. Sem fatos novos, sem provas novas. Simples assim. Fatos rarefeitos, provas rarefeitas.

Simples assim. Mas, não para o legislador.

Afinal, aquela alteração legislativa a que me referi não discrimina entre quem viva em João Pessoa, Natal, Recife, Coxixola, Patu ou Ouricuri. O tempo do legislador e da lei parece linear, uma constante invariável, fixa, imutável. O tempo do legislador é o tempo da mecânica clássica de Newton. Infelizmente, para dona Severina, que perdeu o companheiro, a sociedade brasileira já vive a era da teoria da relatividade geral e da mecânica quântica. A visão do tempo já não pode ser como uma constante entre variáveis, pois ele pode ser comprimido e esticado, pode voar e pode se arrastar.

Para entender a dificuldade de produção de prova material de nossa simpática senhora, que agora pede ao INSS ou à justiça federal a pensão por morte a que acredita ter direito, precisamos do tempo de Einstein e de Hawkins: alucinante e frenético nos grandes centros urbanos; letárgico e sonolento na mais remota periferia rural.

Pensar o tempo da sociedade nesses termos — os tempos de Einstein e Hawkins — poderá evitar que dona Severina, 80 anos, no fim de sua vida, seja deixada naquela nave principal do filme, em órbita no espaço, enquanto discutimos o papel dos direitos fundamentais na sociedade moderna, bem alojados naquele planeta cuja gravidade nos permite ter ‘todo o tempo mundo’.

Quando voltarmos à nave principal para dar a dona Severina a boa notícia sobre seu pedido, pode ser tarde demais — para ela.

Colunista

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Rogério Roberto Abreu
Doutor em Direito, Processo e Cidadania (Unicap). Mestre em Direito Econômico (UFPB). Professor de Direito Civil pela Unipê/PB. Juiz federal (PB).

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