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Os efeitos práticos da renovação automática da fiança no contrato de locação e o direito de exoneração do fiador.

No contexto do Direito Civil, a fiança funciona como um mecanismo para resguardar o direito do credor ao recebimento de determinada prestação. Consiste em uma garantia pessoal oferecida por terceiro, denominado fiador, em favor do cumprimento da obrigação assumida por outra pessoa, chamada de devedor principal.

Ocupar a posição de fiador deságua em consequências significativas, sobretudo porque se o devedor principal não honra impreterivelmente com seu ônus, recairá sobre o fiador o dever de satisfazer o que é devido ao credor.

À luz do permissivo contido no Art. 37, II da Lei 8.245/91 (Lei do Inquilinato), a fiança é frequentemente utilizada nos contratos de locação, nos quais o fiador se compromete a garantir o pagamento dos alugueres e outras despesas correlatas ao bem locado diante da ausência de pagamento por parte do inquilino.

O manejo da fiança traz benefícios para o locador e para o locatário. Para o proprietário, proporciona uma garantia de recebimento dos valores devidos e aumenta a segurança na relação contratual, enquanto que para o inquilino facilita seu acesso ao mercado imobiliário.

Afinal, uma vez que a população brasileira é abarcada por uma cultura de inadimplência culminando à existência de 71,10 milhões de inadimplentes[1] (conforme relatório atualizado do SERASA – dezembro de 2023), um cenário no qual o credor disponibilizaria do seu imóvel sem meios secundários hábeis a sanar eventuais dívidas constituídas seria totalmente desvantajoso.

Dado o risco e os efeitos práticos desse instrumento de garantia, o artigo 819 do Código Civil veda a interpretação extensiva da fiança e assegura que ela deverá ser firmada por escrito. Busca-se, portanto, proteger o fiador, que encontra-se diante de um negócio jurídico benéfico, no qual apenas uma das partes aufere vantagem efetiva – e esse indivíduo não é ele.

Esse preceito normativo conduziu por muito tempo a cognição de que não seria possível renovar automaticamente a fiança, condicionando seu tempo de vigência à duração do contrato de locação. Esse era o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:

PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. LOCAÇÃO. FIANÇA. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. PRORROGAÇÃO DO CONTRATO DE LOCAÇÃO. FALTA DE ANUÊNCIA DO FIADOR. RESPONSABILIDADE. INEXISTÊNCIA. SÚMULA 214/STJ. O contrato de fiança deve ser interpretado restritivamente, pelo que é inadmissível a responsabilização do fiador por obrigações locativas resultantes de prorrogação do contrato de locação sem a anuência daquele, sendo irrelevante a existência de cláusula estendendo a obrigação fidejussória até a entrega das chaves. Precedentes. Agravo regimental a que se nega provimento. (STJ – AgRg no REsp: 502836 SP 2002/0174881-3, Relator: Ministro PAULO MEDINA, Data de Julgamento: 03/02/2005, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: –> DJ 14/03/2005 p. 431LEXSTJ vol. 188 p. 97)

A expressa concordância do fiador quanto à renovação do ônus era considerada a mola propulsora para a continuidade do negócio na hipótese de ocorrer a manutenção do inquilinato, não bastando a existência de uma cláusula de extensão da garantia. Todavia, será que a vedação à interpretação extensiva da fiança descortinada no art. 819 do Código Civil representa sinônimo de proibir a sua renovação automática? E se desde o início da relação o próprio fiador consentir com a renovação da sua obrigação através de cláusula específica?

A bem da verdade, não admitir interpretação extensiva aparenta significar que o fiador responderá somente por aquilo que se comprometeu. Se o terceiro garantidor tiver autorizado a continuidade da sua obrigação pelo tempo que perdurar a locação, pelo menos a princípio, não haveria que se falar em onerosidade excessiva ao fiador ou em qualquer ilegalidade.

Esse assunto foi objeto de reflexão jurisprudencial. Questionou-se a validade da cláusula contratual que permitisse a renovação automática da fiança em caso de prorrogação da locação. Em 2006, o Superior Tribunal de Justiça admitiu a prorrogação no contrato de locação através do julgamento dos Embargos de Divergência em Recurso Especial 566.633:

EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. LOCAÇÃO. FIANÇA. PRORROGAÇÃO. CLÁUSULA DE GARANTIA ATÉ A EFETIVA ENTREGA DAS CHAVES. Continuam os fiadores responsáveis pelos débitos locatícios posteriores à prorrogação legal do contrato se anuíram expressamente a essa possibilidade e não se exoneraram nas formas dos artigos 1.500 do CC/16 ou 835 do CC/02, a depender da época que firmaram a avença. Embargos de divergência a que se dá provimento. (STJ – EREsp: 566633 CE 2004/0102172-5, Relator: Ministro PAULO MEDINA, Data de Julgamento: 22/11/2006, S3 – TERCEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJ 12.03.2008 p. 1).

Depois de certa nebulosidade sobre o tema, em 2022 foi editada pelo Superior Tribunal de Justiça a Súmula 656 com a seguinte redação: “É válida a cláusula de prorrogação automática de fiança na renovação do contrato principal. A exoneração do fiador depende da notificação prevista no artigo 835 do Código Civil.”

Logo, é válida a cláusula de prorrogação automática da fiança, estendendo a sua validade até o fim do ajuste principal, resguardando-se o direito do fiador exonerar-se do ônus no período de prorrogação contratual.

Embora o entendimento tenha sido pacificado apenas em 2022, é importante relembrar que treze anos antes foi dada uma nova redação ao artigo 39 da Lei 8.245/91, prevendo que as garantias da locação (o que inclui a modalidade da fiança) se estendem até a efetiva devolução do imóvel, ainda que a locação seja prorrogada por prazo indeterminado, salvo as hipóteses nas quais houver disposição contratual diversa.

No entanto, isso não repele o direito potestativo do fiador de requerer a exoneração da sua obrigação. Nesse panorama, deverá notificar o devedor principal, observando o disposto no artigo 473 do Código Civil, ficando vinculado a todos os efeitos da garantia pelo prazo de sessenta dias.

Por outro lado, se o contrato de locação for firmado por prazo determinado, o fiador não poderá pedir a sua exoneração, tendo em vista que se comprometeu com o múnus, por força do próprio artigo 39 da Lei 8.245/91. Resguarda-se o direito à exoneração nas situações as quais a locação passe a viger por tempo indeterminado, de forma que qualquer cláusula contratual que objetive sua renúncia será ineficaz.

O artigo 40 da mesma legislação prevê que a exoneração do fiador poderá carrear no envio de uma notificação do locador para o inquilino a fim de que, no prazo de trinta dias, seja apresentado um novo fiador ou seja firmada uma nova modalidade de garantia dentre àquelas elencadas legalmente, sob pena de desfazimento da locação.

Esse tema comporta a observância de alguns princípios que regem o Direito Civil. À luz daqueles que fundamentam a relação contratual, como o Princípio da Boa-Fé, Função Social do Contrato e Autonomia da Vontade, não há guarida para a alegação de onerosidade excessiva ao fiador com a renovação automática da garantia, notadamente porque não se está à míngua da anuência do fiador.

Quando ele concorda com a cláusula de renovação automática da fiança  no início do elo contratual, o garantidor tem ciência de todas as consequências do seu compromisso. Exerce-se a sua autonomia da vontade, que refere-se à liberdade das partes contratantes estabelecerem os termos e condições da avença, desde que não sejam violados os contornos legais ou princípios do ordenamento jurídico.

Se o garantidor considerar a renovação automática da fiança como desfavorável, poderá optar por não assinar o contrato ou negociar outros cenários. Não por acaso, a Súmula 214 do Superior Tribunal de Justiça garante que o fiador do contrato de locação não responderá pelas obrigações resultantes de aditamento ao qual não anuiu.

Com os delineamentos apontados, verifica-se lícita a cláusula contratual que permite a prorrogação automática da fiança, cabendo ao garantidor, findo o prazo da locação por tempo determinado, requerer, caso deseje, a sua exoneração por meio da competente notificação ao locatário no período de prorrogação contratual.

 

Notas e Referências:

[1]https://cdn.builder.io/o/assets%2Fb212bb18f00a40869a6cd42f77cbeefc%2Fc0dcf4adf18a48ca815222ba45c418fc?alt=media&token=7b530584-d6b6-4f84-8ce1-53b8ead5b86f&apiKey=b212bb18f00a40869a6cd42f77cbeefc

Colunista

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Maria Luiza Homcy
Pós-graduanda em Direito Imobiliário pelo Instituto Luiz Mário Moutinho (ILMM). Graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Advogada.

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    3 Comentários

    1. Excelente texto, muito bem construído e explicativo.

    2. Nunca havia parado para refletir sobre os detalhes envolvendo a renovação automática da fiança em contratos de locação. O conteúdo está muito bom e a abordagem detalhada e esclarecedora. Suas análises e a clareza na exposição dos pontos legais proporcionaram uma compreensão sobre oDireito Imobiliário até para quem não é da área.

    3. Conteúdo excelente e com muita informação importante!!

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