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O fim da sustentação oral (2ª Parte): uma decisão um tanto quanto inusitada

Em recente artigo publicado neste portal (link), tivemos o cuidado em analisar os votos prolatados pelos integrantes do Supremo Tribunal Federal por ocasião do julgamento da ADIn 1105, ação de controle concentrando que mirou a inconstitucionalidade do art. 7º, IX, do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei de nº 8.906/94), cujo texto previa a realização de sustentação oral por advogado após a apresentação do voto do relator.

Como visto naquele artigo, a maioria dos Ministros se posicionou pela inconstitucionalidade do referido dispositivo, invocando as razões condensadas a seguir: (i) violação da autonomia ou autogoverno dos Tribunais, por suposta interferência legal no procedimento de julgamento, matéria reservada aos Regimentos Internos (art. 96, I, «a», CF); (ii) afronta ao contraditório e ao devido processo legal, pois o âmbito de incidência da garantia estaria confinado às partes, não alcançando o julgador; (iii) por fim, violação à isonomia, haja vista a ausência de preceito normativo reconhecendo direito similar ao Ministério Público.

Nenhum desses argumentos resiste a uma reflexão mais apurada.

O direito à exposição oral perante o colegiado é um consectário de garantias processuais (garantia das partes), sendo um contrassenso qualquer argumentação que sugestione a colisão entre eles. É impossível sustentar que a realização da sustentação oral após o voto do relator transgrida o contraditório, ampla defesa ou a qualquer outra garantia do devido processo legal, o que, verdadeiramente, decorreu de premissas equivocadas do colegiado acerca do conteúdo normativo do contraditório. Os votos que compuseram a maioria não consideraram que o julgador é sujeito passivo do contraditório e que as garantias processuais conformam o procedimento judicial como um todo; logo, também o julgamento.

A suposta afronta à isonomia, porque o «Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil» não previu direito similar ao Ministério Púbico, poderia ser facilmente equacionada com a interpretação/aplicação analógica, assegurando-se similar direito ao representante do Parquet etc.

Por fim, o argumento de violação ao autogoverno dos Tribunais tampouco se sustenta, uma vez que o Regimento Interno, ato infralegal, subordina-se às garantias processuais e, ademais, tem campo limitado aos vazios deixados pela lei. Ciente da fundamentalidade das garantias processuais, é pouco crível sustentar que o autogoverno dos Tribunais possa se sobrepor àquilo que é fruto de uma limitação ao Estado-jurisdição.

Não assiste razão nas razões da ADIn 1105, o que pudemos demonstrar amiúde no trabalho citado (link).

Dito isso, enquanto amadurecia a 2ª Parte do texto sobre o fim da sustentação oral, na qual pretendia abordar outros aspectos desse direito, deparei-me com uma decisão judicial um tanto quanto inusitada. Oriunda de um Juizado Especial Cível, a decisão foi prolatada pelo Juiz Relator de um Recurso Inominado ao ensejo da manifestação da parte recorrente pela retirada do recurso da sessão virtual, haja vista o interesse em sustentar as razões oralmente.

Pois bem.

Quando o recurso, ação ou incidente é passível de sustentação oral, a mera sinalização de que o direito será exercido é suficiente para impedir que o julgamento transcorra em sessão virtual (espécie de deliberação em que a interação entre os integrantes do colegiado é limitadíssima e alheia aos olhos das partes, advogados e do público em geral). Não se trata de um requerimento ou ato postulatório, quando então haveria um juízo de admissibilidade e um juízo de mérito. Em contextos que tais, a única atribuição do órgão jurisdicional consiste em verificar: (i) se naquele determinado procedimento há previsão legal de sustentação,[1] e (ii) se a sinalização ao exercício do direito foi apresentada oportuno tempore. No mais, a manifestação de vontade produz efeitos imediatos (art. 200, CPC)[2], e um deles consiste em inibir a deliberação colegiada em sessão virtual.

As afirmações anteriores podem ser consideradas obviedades. Afinal, além de estar previsto em lei, o direito à sustentação oral retira fundamento do contraditório e da ampla defesa, garantias processuais alçadas ao status de direitos fundamentais pela CF/88 (de incidência imediata e aplicabilidade direta, conforme art. 5º, § 2º). Sem embargo, outra foi a posição adotada pelo Juiz Relator de um Recurso Inominado ao indeferir a sustentação e manter a sessão virtual.

Passemos à análise da decisão. Os dados do procedimento judicial serão omitidos, pois a demanda segue em curso e não queremos personalizar o debate.

Em seu pronunciamento, após mencionar um ato normativo exarado pelo respectivo Tribunal prevendo a sustentação oral como causa de retirada de um procedimento da deliberação colegiada em sessão virtual, o Relator aduziu o seguinte:

 

[…].

Porém, tenho o entendimento de que o pedido de sustentação oral não é de atendimento obrigatório.

Ora, a controvérsia destes autos não se reveste de excepcionalidade a exigir amplo debate oral.

Ademais, a retirada de um recurso de uma pauta virtual para presencial implica em desfazer e refazer vários atos judiciais e da secretaria.

Outrossim, a parte não apresentou nenhuma justificativa plausível para a retirada de processo de pauta virtual. Ora, não basta apenas requerer, deve o pedido ser fundamentado.

Assim, em atenção aos princípios da economia e celeridade processual, o pedido de sustentação oral deve ser indeferido.

Pelo exposto, INDEFIRO o pedido de sustentação oral.

Aguarde-se a sessão virtual anteriormente aprazada.

 

Como advertido no título, a decisão é inusitada, atípica ou insólita. Imediatamente após referir o ato normativo exarado pelo Órgão Pleno de seu Tribunal, o magistrado consignou que outro era seu entendimento, pois o “pedido (sic.) de sustentação oral não é de atendimento obrigatório”.

Ora, desde quando a realização de sustentação oral é antecedida de um pedido ou requerimento? O advogado pede para sustentar ou informa que o fará?

Para além disso, note-se que o «fundamento» da decisão seria o de que a matéria dos autos não se «reveste de excepcionalidade a exigir amplo debate oral». Não que a decisão tenha explicado o que seria isso, incorrendo em conduta proibida por lei (art. 489, § 1º, III, CPC).

Não fosse suficiente, a decisão abraça uma contradição. Se a indicação de sustentação oral é suficiente para retirar o recurso da sessão virtual – aliás, sequer seria necessário assimilar os fundamentos constitucionais e fundamentais da sustentação oral, bastando a leitura da Resolução do Tribunal – que outro motivo «plausível» precisaria ser declinado pela parte? Onde consta na legislação que o exercício do direito à sustentação precisa ser motivado? Desde quando a conveniência do exercício desse direito deixou de ser exclusiva da parte?

 

***

 

A lei torna a presença do advogado obrigatória em grau de recurso para a Turma Recursal dos Juizados (art. 41, § 2º, Lei de nº 9.099/95). Ciente que o advogado fala ou intercede em nome de seu constituinte, o indeferimento da sustentação oral afronta uma prerrogativa profissional, mas, sobretudo, nega vigência a garantias processuais de titularidade da parte. E tudo sob a falaciosa retórica da “economia” e “celeridade” processuais, palavras mágicas que nos remetem à conhecida censura de Calmon de Passos em texto sobre a pretensa instrumentalidade do processo:

 

“[…]. E a resposta foi dada pela palavra mágica “instrumentalidade”, a que se casaram outras palavras mágicas ­ “celeridade”, “efetividade”, “deformalização”, etc. E assim, de palavra mágica em palavra mágica, ingressamos num processo de produção do direito que corre o risco de se tornar pura prestidigitação. Não nos esqueçamos, entretanto, que todo espetáculo de mágica tem um tempo de duração e a hora do desencantamento.”[3]

 

Notas e Referências:

[1] O ponto nos remete a um problema que será enfrentado em outra oportunidade, pois a previsão legal acerca da sustentação oral perante o colegiado é ociosa, já que o direito retira fundamento de garantia processual.

[2] Art. 200. Os atos das partes consistentes em declarações unilaterais ou bilaterais de vontade produzem imediatamente a constituição, modificação ou extinção de direitos processuais.

Parágrafo único. A desistência da ação só produzirá efeitos após homologação judicial.

[3] PASSOS, José Joaquim Calmon de. “Instrumentalidade do Processo e Devido Processo Legal.” In: Ensaios e artigos. Salvador: JusPodivm, 2014, v. I, p. 31-44.

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Mateus Pereira
Doutor e Mestre em Direito Processual. Professor de Direito Processual Civil na Graduação, no Programa de Pós-Graduação em Direito e Coordenador da Especialização em Processo Civil da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Advogado (sócio do Da Fonte, Advogados). . Autor do Podcast e do canal de Telegram "Processo & Prosa"(https://t.me/processoeprosa).

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