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Teoria do fato jurídico e proteção de dados pessoais – 3: [ainda] o suporte fático e o tratamento por entes despersonalizados 

Duas perguntas ficaram em aberto da última coluna: o dado pessoal depende, como ente, da relação de tratamento? E, para além, um ente despersonalizado pode realizar tratamento de dado pessoal? Eu gostaria de me dedicar a estas duas questões antes de avançar sobre outros dois temas de suma importância, os quais já adianto: (1) qual a natureza jurídica do consentimento, posto como principal base legal? (2) as bases legais podem mudar o fato jurídico do tratamento – ou seja, termos, a depender da base, negócio jurídico, ou ato jurídico senso estrito, ou ato-fato jurídico?

 

O dado pessoal

 

Mas primeiro o que me proponho aqui: dado pessoal, como ente, é algo que não depende da relação jurídica de tratamento de dados pessoais. Inclusive, em certo sentido, o tratamento de dados é medida técnica que ocorre, também com dados considerados fora da pessoalidade, ou seja, dado que não tem sua existência demarcada conforme incidência da LGPD.

Como dito no primeiro texto dessa coluna: a essencialidade do dado pessoal é que ele está como o que adere à personalidade, portanto, está sob sua esfera de influência, como um conjunto de forças centrípetas. Mas o dado pessoal é, em si, a dialética oposta: é projeção centrífuga do núcleo da personalidade – e se insere na mesma história, já descrita por outros, da difratação desse direito[1].

A entificação do dado pessoal foi bem reconhecida pela Emenda Constitucional n. 115/2022, ao declarar a existência de direito e garantia fundamental à proteção de dados pessoais. Isso porque, como dado existencial, o dado pessoal não depende da relação de tratamento, ainda que só ganhe relevância para a economia de dados com ela – por entrar numa relação de mercancia em sentido largo.

Para a LGPD incidir, há de existir um dado pessoal em um processo econômico, no sentido amplo. Também por isso, a exceção descrita no art. 4º, I, fala do tratamento realizado (1) por pessoa natural, (2) para fins pessoais e não econômicos. Disso se extrai elemento importante já abordado na coluna anterior, mas aqui estressado à máxima: por não ser constituído pelo direito, o que se tem na norma constitucional é mera declaração do fático. Essa informação é de suma importância para entendermos como desdobrar, de forma clara, a aplicabilidade dos direitos do titular e das ações aplicáveis caso-a-caso.

 

Entes despersonalizados realizam tratamento?

 

Na primeira coluna eu abordei o ponto do suporte fático do tratamento da seguinte forma:

 

Os elementos do cerne do suporte fático de proteção de dados no brasil é composto por: tratamento (num dos tipos legais, não exaurientes) + dado pessoal exteriorizado + ente personalizado (natural ou jurídico).

 

Entretanto essa explicação, apesar de conforme a literalidade da lei, não é suficiente e não está correta em sua inteireza. O art. 1º da LGPD define que o diploma especial regulará “o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado”.

O tratamento, por outro lado, e como já dito alhures, é

 

toda operação realizada com dados pessoais, como as que se referem a coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração.

 

Essa operação, por seu turno, é realizada pelos agentes, controladores e operadores que, por definição da própria lei, são pessoas naturais ou jurídicas.

Isso nos apresenta a seguinte questão: é impossível o tratamento por ente despersonalizado? Afinal, o dado pessoal é projeção da personalidade, mas a personalidade é requisito para o tratamento? A resposta, adianto e ao contrário do texto legal expresso, é negativa. O tema já foi analisado por autores em diversos artigos.

Cito, como exemplo, artigo de Caitlin Mulholland e Carlos Eduardo de Souza relatando a nomeação de Encarregado pela própria ANPD, que, até aquele momento era componente da União, sem regime autárquico – o que lhe garantiria a personalidade jurídica de direito público:

 

Todas as reflexões levam à conclusão de que deve ser racionalizada e estruturada a possibilidade de entes despersonalizados figurarem como controladores, notadamente os condomínios, inclusive com a possibilidade de eventual regime diferenciado que adeque os deveres e responsabilidades impostos pela LGPD às estruturas de cada um[2].

 

No texto, analisando o caso dos condomínios, os autores defendem o uso de ficção jurídica, o que já seria expediente reconhecido pelo ordenamento. O ponto também merece maior exatidão. Entes despersonalizados realizam tratamento de dados, portanto, podem figurar como agentes, especialmente na figura do controlador.

E podemos avançar, em pequena digressão, sobre os sentidos do termo “operação de tratamento” – assim como quando, em paralelo, fazemos críticas ao termo “operador do direito”.  Operare é trabalho como serviço ou mão-de-obra, sendo vinculado, historicamente, ao trabalho eficaz, reprodutor, da plebe ou da classe baixa. Não por outro motivo que, ao longo da história, o termo deságua, semanticamente, em “proletário” – ou seja, aquele que serve ao Império Romano pela oferta da própria prole ao exército imperial.

O operador é o que realiza, efetivamente, dentre os agentes, a operação de tratamento – e o faz em nome do controlador, ao qual cabe as decisões referentes ao tratamento – que, como visto, não incorpora o verbo “decidir” (art. 5º, X).

É claro que, sem preciosismo semântico, o controlador, ao menos indiretamente, trata dados. A lei, contudo, não se distancia, em sua estrutura tipológica – ainda que alguns de seus artífices não tenham se atentado – à história dos conceitos que os precedem. Fim da digressão.

E quais são os entes despersonalizados? Diferente dos entes com personalidade, numerus clausus de acordo com Marcos Bernardes de Mello[3], os despersonalizados são, entre outros: o espólio, a herança jacente, grupos de convênio, sociedades de fato, massa falida.

Qual a questão dogmática envolvida? A doutrina se debate com o termo, buscando atrair uma valoração semântica bigúmea ao termo “personalidade”. Como veremos, a “pessoa humana”, nesta acepção, ganha contornos de argumento moral dentro do sistema jurídico, a ensejar proteção diferenciada.

Longe de negar a importância do debate e da centralidade do humano nos sistemas jurídicos, inclusive em tempos de regulação de tecnocracismos de toda espécie, é preciso entender que os conceitos no sistema jurídico tem semântica amarrada por uma sintaxe muito própria – a apreensão dos termos em sua significação corriqueira põe a perder o sentido técnico-histórico dos mesmos, base de aplicação de algum nível de técnica que o direito possa oferecer para a sociedade[4].

Pontes de Miranda alcançou, ao menos de forma indireta, o cerne do problema ao afirmar que não há uma identidade entre personalidade/capacidade e sujeição de direito. Da década de 50 até a de 70, saindo do plano material do Tratado para o plano processual dos Comentários ao CPC, Pontes de Miranda, sem admitir uma revisão expressa de seu entendimento, vai ceder, parcialmente, à sujeição de direito dos entes despersonalizados[5].

Personalidade, é aquilo que demarca o humano como elemento a ser reconhecido no mundo do direito[6] – e, portanto, para o mundo do direito é mera potência a ser exaurida no ato da relação jurídica[7].

Entretanto, com base no método histórico, aplicado pelo alagoano, fica evidente que o mundo do direito, parte do mundo dos pensamentos, poderia construir, logicamente, estruturas artificiais e alberga-las dentro do guarda-chuva da personalidade. É daí que surge a personalidade jurídica.

Definindo a personalidade como a possibilidade de ‘vir a ser sujeito de direito (pretensão, ação, exceção etc)’ e, como tal, sinônimo da capacidade jurídica, Pontes de Miranda apresenta um elemento de essencialismo ontológico em sua formalização: a personalidade se estende, se estica, até aquilo que está, direta ou indiretamente, relacionado ao humano.

A análise de Pontes de Miranda  passou como “despercebido”, a dar espaço para preenchimentos morais nos espaços de discussão do meramente jurídico. Diz o alagoano, ainda no Tomo 1 de seu Tratado:

 

Personalidade é proposição: “ser capaz de direito”, função (truth-function), = “ser sujeito de direito é possível”. Se a pessoa tem direitos inatos, em vez de Mp (p é possível), tem-se NMNp, isto é, p é necessário (= não é possível não-p); Se não há direitos inatos, Mp é de interpretar-se como a relativa probabilidade do cálculo de probabilidades. […] Em vez do vazio, personalidade tem, se há direitos inatos, o valor 1. Tudo isso bem mostra que se está por cima do sistema jurídico, em cálculo proposicional, em sistema plurivalente de proposições. Se um só ou poucos são os direitos inatos, a possibilidade é quanto aos restantes.[8]

 

Trocando em miúdos a complexidade lógica: personalidade é ser capaz de direitos, e ser capaz de direitos é a possibilidade de ser sujeito de direito. Se o ente, personificado, tem direitos inatos ou não os tem, como os atuais direitos de dignidade da pessoa humana, então daí três consequências: (1) em não tendo direitos inatos, toda a personalidade se converte numa probabilidade de ser sujeito de direito; (2) em tendo direitos inatos absolutos, a categoria se exaure com o valor verdade e cria-se a falsa impressão de que, como apontado em nota exemplificativa, há um destaque que separa a subjetividade da personalidade; (3) em tendo alguns direitos inatos, conforme a própria ordem constitucional, então preenche-se de verdade apenas quanto a parcela de sua expressão existencial – a personalidade, como possibilidade de ser sujeito de direito, ainda é probabilística quanto ao vazio deixado.

Isso se desdobra em um consequente direto, com base na correta solução 3: se personalidade é “possível subjetividade de direito”, o “ser sujeito de direito” não é, necessariamente, “personalidade”. O mundo do direito pode, conforme lição basilar, atribuir feixes de direitos, pretensões, ações, exceções, deveres, obrigações de forma indefinida.  Eis o fechamento lógico: por não se preencher plenamente o elemento “personalidade” de valor verdade, é no campo das probabilidades que se vai preenchendo e atribuindo novos pertencimentos e continências.

Pessoas jurídicas, por seu turno, existem pois há elemento humano, como dado de fato, que compõe sua existencialidade. Os demais sujeitos de direito ou são algo de “vir a ser pessoa” e, portanto, já fazem parte do conjunto maior (sujeito de direito), mas não fazem parte do conjunto menor (personalidade), ou não guardam nenhuma relação com a personalidade, sendo subjetividade ou mera sujeição (atenção ao étimo) da norma que incide fazendo-os titulares de uma situação jurídica[9].

O tema se alongou e é preciso refletir a continuidade dele em outro momento. Ainda precisamos conversar sobre a solução “diferente” dada por Marcos Bernardes de Mello, buscando atualizar Pontes de Miranda – ao que me parece, trata-se de solução útil, porém não há uma efetiva contradição com o pensamento ponteano, mal compreendido pelo seu seguidor alagoano.

Ademais, com o avanço do tema de tratamento de dados por entes despersonalizados, como explicar, tecnicamente: (a) a situação das autarquias, na qual a ANPD se insere; (b) a atribuição de feixes de situação jurídica a entes maquínicos que tratam dados, já que a personalidade não é pressuposto essencial; (c) isso tudo vai descambar numa conversa sobre responsabilidade de robôs e inteligência artificial?

Veremos na próxima coluna!

 

Notas e Referências:

[1] Por todos, Danilo Doneda (Da Privacidade à proteção de dados pessoais, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 99) afirma, sem a devida definição de que direitos são eficácia de fatos jurídicos, que: “[…] o intérprete que procurar descrever a estrutura dos direitos da personalidade em uma metodologia circunscrita aos domínios do Código Civil perdera de vista o seu aspecto mais importante – o de que a normativa a ele referente representa apenas uma emanação, quase que pontual e até tímida, do valor da personalidade, cujo fundamento extrapola a alçada do Código Civil e para cuja aplicação se deva realizar uma leitura de todo o sistema a partir da norma constitucional”.

[2]  MULHOLLAND, Caitlin; DE SOUZA,  Carlos Eduardo Ferreira. Entes despersonalizados e sua função como controlador na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Disponível em: <

https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-protecao-de-dados/345139/entes-despersonalizados-e-sua-funcao-como-controlador-na-lgpd>

[3] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico – Plano da Eficácia. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 127

[4] Incorrem no ponto objeto desta crítica, por exemplo: “Em outras palavras, a personalidade, ao contrário da subjetividade, é expressão da dignidade da pessoa humana e objeto de tutela privilegiada pela ordem jurídica constitucional (Gustavo Tepedino, “Crise de Fontes Normativas”, p. XXVI e ss.).In: TEPEDINO, Gustavo. BARBOZA, Heloisa Helena, MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado Conforme a Constituição da República. São Paulo: Renovar, 2014, p. 4

[5] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil de 1973. T. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1974.

[6] O que, na opinião de Roberto Gouveia Filho, faz uma concessão a um jusnaturalismo não expresso. Ademais, a discussão entre ato e potência da personalidade se deve ao pensamento de Roberto Gouveia, que aqui eu sigo com viés estritamente formal – sem avaliar as repercussões pragmáticas.

[7] “A personalidade, como possibilidade, fica diante dos bens da vida, contemplando-os e querendo-os, ou afastando-os de si; o ser sujeito de direito é entrar no suporte fático e viver  nas relações jurídicas, como um dos termos delas” (MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo I. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954)

[8] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo I. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, p. 155. A notação polonesa de lógica proposicional (Mp, NMNp) e a referência ao valor verdade da tabela preenchida pelo conceito de personalidade revela o quão fundamental é o conhecimento lógico para entender o conhecimento jurídico materialmente aplicado.

[9] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico. Plano da Eficácia. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 131.

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André Fernandes
Advogado. Head de Direito Digital no Buonora & Oliveira Advocacia. Mestre em direito no Programa de Pós-graduação em Direito - PPGD/UFPE, linha Teoria da Decisão Jurídica. Graduado em direito pela Faculdade de Direito do Recife - UFPE. Fundador do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (IP.rec). Professor Universitário. Membro em Grupos de Trabalho de Especialistas sobre Responsabilidade Civil na Internet (GTRI/Internet Society) e Inteligência Artificial e Governança (Governo Federal/CGI.br). Ex-Presidente da Comissão de Direito da Tecnologia e da Informação (CDTI) da OAB/PE. Pesquisa: 1) estruturas históricas acerca da automação do trabalho; 2) os modelos históricos de responsabilização civil e as legislações atuais sobre intermediários tecnológicos; 3) processos decisórios da técnica multissetorial no ambiente da governança da Internet e no âmbito institucional (público e privado). Estuda a vida e obra de Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda.

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