Vista chinesa – Tatiana Salem Levy
O ano era 2014.
O Brasil vivia a euforia da Copa do Mundo e o Rio de Janeiro, em adição, a alegria de sediar os Jogos Olímpicos dali a dois anos. Encarregada do projeto do campo de golfe olímpico, Júlia sai para correr pouco antes da reunião que teria à tarde na Prefeitura com o projetista internacional. As passadas iam se seguindo, as árvores que ladeavam o asfalto ficavam para trás, o sol entrava e saía das nuvens e Daniela Mercury cantava nos headphones, nada muito diferente do seu ritual de corrida. Exceto pela arma que um sujeito encosta na sua cabeça e a força a entrar na floresta, “[n]aquela mata que todo mundo admira e na qual quase nunca reparo, porque quando estou correndo eu me desligo do mundo, aquela mata virou o meu inferno (p. 12)”.
Júlia sobrevive e, anos depois, toma para si a tarefa de contar aos filhos do estupro e do que se seguiu à tragédia que mudaria tudo para sempre. O desabafo reconstrói, aos poucos, a vida fragmentada de uma mulher violentada, para quem o esquecimento não foi possível, porque “há coisas que, mesmo depois de terem acontecido, continuam acontecendo” (p. 9).
Baseado em uma história real, o livro de Tatiana Salem Levy é um retrato pungente de uma sociedade marcada pela violência, sobretudo contra as mulheres. Júlia fala de si, da sua dor, do seu caminho de volta à vida e do amor pelos filhos; nessa trajetória, contudo, fala muito do que somos todos enquanto sociedade. Tudo isso de uma forma preciosa que consegue, a um só tempo, respeitar a dor dessa personagem (real) e confrontar o leitor, sem subterfúgios, com a vileza da realidade.
“Antes de mais nada, quero que entendam uma coisa que eu mesma demorei para aceitar: se em algum momento parecer que enlouqueci, saibam que ninguém é verdadeiro na lucidez. Ninguém. Nem mesmo a mãe de vocês” (p. 10)