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Fato gerador do ITBI: uma análise à luz da regra-matriz de incidência tributária e da decisão proferida pelo STF no RE 1.294.696/SP

Como professora de Direito Tributário, nas minhas aulas sobre a teoria do fato gerador e sobre os impostos em espécie, costumo sempre dizer que para termos a certeza do nascimento da obrigação tributária com a materialização do tributo no caso concreto, devemos sempre olhar para a regra-matriz de incidência tributária.

A referida regra-matriz é uma construção teórica, bastante desenvolvida por Paulo de Barros Carvalho[1], tendo como objetivo principal demonstrar a ocorrência do fato gerador de um tributo na realidade fática, utilizando os elementos da norma abstrata, e transpondo-os para o mundo dos fatos (com isso facilita a percepção do momento exato do nascimento do tributo e a construção do lançamento tributário).

A regra-matriz de incidência tributária divide-se em antecedente tributário (hipótese de incidência) e consequente tributário. No antecedente, ligado à previsão abstrata da legislação, temos os critérios material (verbo + complemente), temporal (momento da ocorrência do fato gerador do tributo) e espacial (local onde se dá a incidência). Já o consequente, considera elementos surgidos após a verificação da ocorrência do fato gerador, trazendo os critérios: pessoal (sujeito ativo e sujeito passivo da relação jurídico-tributária) e quantitativo (base de cálculo e alíquota).

Aplicando essa lógica ao tributo analisado por nós no texto de hoje, vamos verificar como se daria a construção da regra-matriz do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI).

O ITBI é um imposto de competência municipal, previsto no art. 156, II da Constituição Federal:

 

Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:

(…)

II – transmissão “inter vivos”, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição;

 

Tratando-se de um imposto municipal, cabe a cada municipalidade instituir e regulamentar este tributo. Mas considerando os elementos constitucionais, podemos afirmar que são fatos geradores do ITBI: a) a transmissão onerosa, entre vivos, de bens imóveis; b) a transmissão onerosa, entre vivos, de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia; c) a transmissão onerosa, entre vivos, da cessão de direitos de aquisição de bens e/ou direitos imobiliários.

Construindo agora a regra-matriz do ITBI, temos:

Hipótese de Incidência:

a) Critério material: Adquirir onerosamente bens ou direitos imobiliários ou a ceder onerosamente os direitos à aquisição de bem imóvel;

b) Critério temporal: momento da aquisição da propriedade do bem ou direito imobiliário;

c) Critério espacial: local da situação do bem (o que será definido mais especificamente na legislação municipal).

Consequente Tributário:

a) Critério Pessoal: sujeito ativo (Município onde se situa o bem imóvel); sujeito passivo (a ser definido pela legislação municipal)

b) Critério Quantitativo: Base de cálculo (valor da transação comercial, conforme decidido pelo STJ em se de rito de recurso especial repetitivo – Tema 1.113); Alíquota (a ser definido pela legislação municipal).

O que nos interessa para o texto de hoje é a análise dos critérios material e temporal da hipótese de incidência do ITBI.

Nos termos da Constituição Federal, o ITBI incidirá quando ocorrer a transmissão onerosa de bens imóveis ou direitos reais imobiliários (exceto os de garantia), ou quando ocorrer a cessão do direito à aquisição de bens imóveis. Considerado isto, temos que buscar a definição da transmissão imobiliária, a qual encontraremos no Código Civil:

 

Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis.

§ 1º  Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel.

 

De acordo com o Direito Civil, portanto, percebemos que a transmissão da propriedade do bem ou direito imobiliários só correrá com o efetivo registro do título translativo no cartório respectivo. Antes disso, não se pode afirmar que ocorreu a referida transmissão.

Nos termos do que dispõe o art. 110 do Código Tributário Nacional “a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias”. Deste modo, ao Direito Tributário é vedado modificar a definição contida na lei civil do momento da transmissão da propriedade imobiliária.

Diante do acima relatado, fica cristalino o momento em que incide o ITBI quando falamos em transmissão de bens ou direitos imobiliários, qual seja: o momento do registro do título translativo no Registro de Imóveis.

No entanto, na prática, esse não é o entendimento que prevalece. As leis municipais, em sua maioria, preveem que o ITBI deverá ser pago em momento anterior ao registro, muitas vezes só sendo possível finalizar o procedimento de confecção da escritura pública no tabelionato de notas, com o comprovante de recolhimento do ITBI. Perceba-se que ter uma escritura pública demonstrando a realização do negócio jurídico de compra e venda de um imóvel, não torna o comprador proprietário do bem, para os fins jurídicos, conforme dispõe expressamente o § 1º, do art. 1.245, do Código Civil. Então, a cobrança do ITBI neste momento é inconstitucional, porquanto ainda não ocorreu o fato gerador do citado tributo.

Esse tema foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal nos autos do Recurso Extraordinário nº 1.294.696/SP, definindo o tema como de repercussão geral – Tema 1.124. Neste processo, estava-se discutindo a regularidade da cobrança de ITBI pelo Município de São Paulo, já tendo sido decidido pelo TJSP que referido imposto só poderia ser cobrado com a efetiva transferência do bem imóvel, o que ocorre com o registro do título translativo, e não com a mera confecção de escritura pública de cessão dos direitos de aquisição de imóveis.

De acordo com notícia publicada no site oficial do Supremo, “o ministro do STF, ministro Luiz Fux (relator), observou que o entendimento do TJ-SP está em sintonia com a jurisprudência do Supremo. Ele apontou diversas decisões, colegiadas e monocráticas, no sentido de que a exigência do ITBI ocorre com a transferência efetiva da propriedade, que se dá com o registro imobiliário, e não na cessão de direitos, pois não se admite a incidência do tributo sobre bens que não tenham sido transmitidos[2].

Deste modo, em fevereiro de 2021, foi fixada a seguinte tese de repercussão geral: “O fato gerador do imposto sobre transmissão inter vivos de bens imóveis (ITBI) somente ocorre com a efetiva transferência da propriedade imobiliária, que se dá mediante o registro”.

A fixação da tese acima gerou um alívio aos estudiosos do Direito Tributário, que viram ser personificado o real fato gerador do ITBI, em conformidade com o texto constitucional.

Mas quando acreditávamos que estava tudo pacífico e tranquilo, nos deparamos com uma decisão do STF, no final de agosto de 2022, anulando a tese fixada anteriormente.

A nova decisão foi proferida nos autos do Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) nº 1.294.969, no qual o Município de São Paulo insurge-se contra a referida tese, alegando que o caso não tratava de todos os fatos geradores do ITBI, mas apenas em relação à cessão de direitos à aquisição de bens imóveis, enquanto a tese fixada relacionava-se aos fatos geradores de transmissão de bens e direitos imobiliários.

Verificando a violação à congruência externa objetiva[3] da decisão judicial, o Ministro Dias Toffoli afirmou: “Nos julgados mais recentes da Corte, não houve debate aprofundado sobre aquela última hipótese de incidência, sendo certo que os precedentes utilizados como jurisprudência no acórdão ora embargado trataram de hipótese diversa, concernente à primeira parte do inciso II daquele artigo, qual seja transmissão de bens imóveis“.

Apesar da repercussão geral reconhecida, a tese foi anulada, não se aplicando mais ao caso concreto de controle de constitucionalidade (RE nº 1.294.696/SP).

Voltamos, pois, à antiga prática, não havendo, até o presente momento, uma decisão de caráter vinculante que vede a cobrança do ITBI antes do efetivo registro do título translativo.

Esperamos, no entanto, que o Supremo Tribunal Federal um dia retorne à análise da correta configuração do fato gerador do ITBI em relação a todas as hipóteses previstas no inciso II, do art. 156 da Constituição Federal, a fim de ser respeitados os institutos jurídicos e garantir a segurança jurídica e o princípio da legalidade tributária.

 

Notas e Referências:

[1] Paulo de Barros Carvalho sobre o tema. In.: CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: linguagem e método. 5. ed. São Paulo: Noeses. 2013.

[2] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=460486&ori=1. Acesso em 05 out. 2022.

[3] No âmbito processual, o princípio da congruência busca garantir que a decisão proferida pelo magistrado guarde exata correlação com os termos da demanda. A congruência será externa, quando se relacionar às questões objetivas da demanda (nesse caso a decisão não poderá ser extra, ultra ou citra petita) e subjetivas da demanda (em regra a decisão só pode vincular as partes do processo). A congruência será interna, quando disser respeito aos elementos intrínsecos da decisão, a qual deve ser certa, líquida (em regra), clara e coerente. No caso analisado neste texto, a decisão do STF pode ser considerada extra petita, pois analisou fundamento não discutido nos autos do processo.

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Larissa Pinheiro
Mestra em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Especialista em Direito Tributário pelo IBET. Graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Professora na Faculdade do Sertão do Pajeú (AEDAI-FASP), lecionando as disciplinas de Direito Tributário e Direito Processual Civil. Participante do grupo de estudo Moinho Jurídico / UFPE. Membra da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). Advogada no Escritório Larissa Pinheiro Advocacia, onde atua nas áreas de Tributação, Sucessão e Regularização Imobiliária.

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