A CARGA TRIBUTÁRIA SOBRE OS COMBUSTÍVEIS: UMA ANÁLISE DA LEI COMPLEMENTAR Nº 192/2022
Diante de um quadro onde vemos um aumento constante no preço dos combustíveis, gerando consequências diretas no cotidiano da maioria das pessoas (sejam aquelas que tem automóveis próprios, sejam aquelas que utilizam transporte público), nos questionamos como se compõe o preço desse produto e qual o real motivo para a elevação dos valores repassados aos consumidores.
Um dos tributos que incide na cadeia de circulação dos combustíveis é o ICMS-Combustíveis, que tem previsão no art. 155, § 2º, XII, “h” e § 4º, da Constituição Federal e regulamentado pela Lei Complementar Nacional nº 87/1996 (Lei Kandir).
Muito se afirmou durante os anos de 2021 e 2022, que o ICMS seria o grande vilão em relação ao aumento de preços sentidos nos “postos de gasolina”, de modo que o Governo Federal aprovou a Lei Complementar nº 192/2022, com a finalidade de reduzir o preço dos combustíveis através de mudanças na incidência do imposto em referência.
A Lei Complementar nº 192/2022 foi promulgada na data de 11 de março de 2022, e realizou alterações na Lei Kandir, regulando a incidência monofásica do ICMS-Combustíveis prevista no art. 155, § 2º, II, “h”, CF/88 (h) definir os combustíveis e lubrificantes sobre os quais o imposto incidirá uma única vez, qualquer que seja a sua finalidade, hipótese em que não se aplicará o disposto no inciso X, b).
Antes da aprovação da citada legislação, cada Estado-membro tinha uma alíquota diferente de ICMS-Combustíveis, de modo que não havia uma uniformização de parâmetros para cobrança. Além disso a incidência era polifásica, ou seja, cada etapa da produção de combustíveis tinha um valor diferente, e os Estados poderiam aumentar ou diminuir o percentual (alíquota) do imposto cobrado sobre os combustíveis de forma individual.
Com a Lei Complementar nº 192/2022, tivemos as seguintes alterações na incidência do ICMS sobre os combustíveis:
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- A cobrança do imposto passou a ser uniforme em todo o território nacional, podendo ser diferenciada apenas em relação ao produto circulado (art. 3º, V, “a);
- Sua alíquota será definida de forma ad rem[1], considerando a unidade de medida (como o litro do combustível, no caso de combustíveis líquidos). Essa mudança faz com que o valor do imposto seja sempre calculado em relação à quantidade de combustível circulado, não acompanhando as oscilações de preços e os aumentos decorrentes da inflação, o que ajuda a diminuir o valor final do ICMS que incide sobre o combustível;
- As suas alíquotas poderão ser reduzidas ou restabelecidas no mesmo exercício financeiro, mas devendo obedecer ao princípio da noventena, previsto no art. 150, III, “c” da Constituição Federal. Isto quer dizer que o ente tributante poderá diminuir ou retornar ao patamar superior que a alíquota tinha antes, no mesmo ano calendário, mas deve aguardar, pelo menos, 90 (noventa) dias para aplicar a alíquota restabelecida (aumentada ao patamar anterior).
As modificações apontadas acima, são as principais alterações que esta lei complementar traz em relação ao ICMS-Combustíveis, sendo perceptível a intenção do Governo Federal em tentar reduzir o valor final do produto para o consumidor, através da redução da incidência do imposto estadual.
Busca também trazer uma uniformização na cobrança, de modo buscar uma maior segurança jurídica ao sujeito passivo dessa relação jurídica tributária, facilitando os trâmites arrecadatórios.
Numa visão imediatista, poder-se-ia afirmar que a medida adotada pelo Governo Federal resolve todos os problemas relacionados ao preço dos combustíveis, porquanto o preço deveria ser reduzido com a nova forma de cálculo do ICMS. No entanto, devemos fazer algumas considerações mais aprofundadas sobre o tema, sem ter a pretensão de esgotar a análise acerca das mudanças trazidas pela LC nº 192/2022, o que não seria possível num breve ensaio.
Em primeiro lugar, a reflexão mais premente que se deve fazer é em relação ao que compõe o preço dos combustíveis.
De acordo com dados da Petrobrás, em fevereiro de 2022, em relação ao valor da gasolina: 34,1% decorre dos ativos a serem pagos à Petrobrás; 26,7% ICMS; 15,7% valor do etanol que compõe a gasolina; 10,4% de contribuições especiais federais; 13,1% vai para distribuição e revenda. Em relação ao valor do diesel: 55,8% decorre dos ativos a serem pagos à Petrobrás; 15% ICMS; 10,7% de biodiesel; 6,1% de contribuições especiais federais; 12,4% vai para distribuição e revenda[2].
Diante destes dados, verificamos que o real vilão no aumento do preço dos combustíveis são os valores destinados à Petrobrás, principalmente após a modificação ocorrida em 2016, no Governo Temer, quando se passou a aplicar a Política de Preços de Paridade de Importação (PPI), onde se considera como 100% dos combustíveis que circulam no Brasil fossem importados, mesmo sabendo-se que parte do petróleo é extraído em solo nacional.
O valor do ICMS não estava sendo aumentado, pois a alíquota aplicada pelos Estados era fixa. Ocorre que, como o valor dos preços praticados pela Petrobrás sempre aumenta quando há alterações do dólar, a base de cálculo do imposto era que aumentava, gerando um valor final do tributo mais elevado. Mas não por culpa de aumento de tributação por parte dos Estados.
Além dessa constatação, deve-se haver uma reflexão sobre os impactos a longo prazo em decorrência dessa imposição federal da modificação de cálculo de um imposto estadual.
Em primeiro lugar, é uma alteração de constitucionalidade duvidosa, porquanto há dúvidas se a LC nº 192/2022 não estaria ferindo o princípio do Pacto Federativo, onde a União interfere em como outro ente público deve realizar a arrecadação de um imposto de sua competência.
Noutro giro, fica claro o fato de que haverá uma queda de arrecadação dos Estados, haja vista o valor do ICMS ser calculado agora com base na quantidade de combustível e não no preço do produto, de modo que o litro de gasolina pode estar valendo R$ 10,00 (dez reais) ou R$ 20,00 (vinte reais), mas o valor do tributo será sempre o mesmo, não acompanhando a inflação. De acordo com estudos do Instituto Fiscal Independente (IFI) – órgão ligado ao Senado Federal -, há uma previsão de queda de arrecadação no importe de R$ 13,3 bilhões, num período de 60 (sessenta) meses[3].
Diante desse previsível rombo nos cofres públicos estatais, a realidade histórica tem nos mostrado que quem arca com as consequências desse decréscimo financeiro é a população mais necessitada de serviços prestados pela Administração Pública, pois os primeiros cortes realizados geralmente ocorrem nas prestações sociais.
E o pior de tudo é que, na prática, os consumidores não foram capazes de sentir nenhuma melhora no preço do produto na hora de encher os tanques de seus veículos ou no pagamento das tarifas para utilização de transportes públicos.
Considerando todas essas reflexões, devemos continuar nos questionando: as alterações impostas pela Lei Complementar nº 192/2022 resolvem o problema do aumento do preço dos combustíveis; ou nós, como cidadãos conscientes, devemos lutar para alterações mais profundas na composição do preço desse produto, aliadas a uma reforma tributária que traga, de verdade, maior justiça fiscal e respeito aos entes federados?!
Notas e Referências:
[1] Na doutrina tributarista, classifica-se as alíquotas em “ad valorem” ou “ad rem”(específica). As alíquotas ad valorem são aquelas caracterizadas como percentuais sobre a base de cálculo indicada. Por exemplo, se o ICMS-Combustíveis no Estado de Pernambuco tivesse uma alíquota ad valorem de 18%, então numa venda de R$ 100,00 (cem reais) de gasolina, o valor de ICMS seria R$ 18,00 (dezoito reais). Já as alíquotas ad rem são aquelas em que se determina um valor X de tributo para cada unidade de medida do produto circulado. Como exemplo, podemos citar a situação de se impor um valor de R$ 0,50 (cinquenta centavos) de ICMS a cada 1 (um) litro de gasolina, de modo que se a circulação de 20 litros de gasolina, geraria um imposto no valor de R$ 10,00.
[2] Dados atualizados sobre a composição dos preços dos combustíveis disponível em: https://petrobras.com.br/pt/nossas-atividades/composicao-de-precos-de-venda-ao-consumidor/. Acesso em 03 mai. 2022.
[3] Relatório de Avaliação Fiscal do IFI, disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/596473/RAF62_MAR2022.pdf. Acesso em: 03 mai. 2022.