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Algumas considerações sobre o conceito de processo no pensamento de Aroldo Plínio Gonçalves

«O amante está sempre só

Ainda que em plena multidão

Como o óleo e a água

Jamais se mistura»

 

Este poderia ser mais um texto exploratório de mitos (processuais); um trabalho em que, na esteira das lições de Edgar Morin, reconhecendo a importância dos mitos para nossas vidas, encerraria sugerindo que ficássemos apenas com o “mito” do amor.[1] Sem embargo, esse não foi nosso mote ao tomar a estrofe de um poema de Rumi – se a memória não falha – como epígrafe. Nossa intenção não vai além de usar a passagem como uma metáfora de elementos que não podem ser baralhados; antes, que se repelem: óleo e água. Aos fins deste ensaio de direito processual, reiteramos a absoluta impossibilidade em se confundir garantia e instrumento. Processo não é instrumento; onde é instrumento, deixou de ser garantia.

A visão do processo como garantia está na base dos textos da Coluna «Garantismo Processual» no site Empório do Direito; não raro, irrompendo para as linhas. O tema já foi explorado à saciedade.[2] Todavia, é sempre possível adensar essa compreensão do processo com outros argumentos e/ou abordagens. É o que fazemos na oportunidade.

Há obras doutrinárias que, por sua importância, integram a historicidade do pensamento processual brasileiro; eventualmente, assumem relevo destacado porque lançam ideias fundamentais à sua crítica. A título de ilustração, com as devidas proporções, seria como estudar Descartes e ignorar Vico; ler Kant e negligenciar Dilthey etc. Concorde-se ou não com as ideias professadas pelo respectivo autor, o estudioso do processo brasileiro não poderá ser furtar de sua leitura (e do diálogo). Obras cujas lições se disseminaram ao ponto de modelarem institutos, engendrarem correntes de pensamento, consolidarem um paradigma etc. A nosso ver, é o que ocorre com a obra Técnica Processual e Teoria do Processo,[3] de Aroldo Plínio Gonçalves, porquanto fundamental à censura do instrumentalismo processual.[4]

É possível concordar com as ideias professadas por Aroldo Plínio Gonçalves; tanto quanto é possível discordar delas, quando então, supõe-se que o estudioso terá o cuidado em apontar-lhe os equívocos, criticar suas premissas etc. Só não faz sentido ignorá-las. Por certo, não se está a pretender a imposição de um pensamento. Parafraseando o próprio Gonçalves, não se nega o «direito fundamental» de doutrinadores em fazeres suas opções filosóficas. Todavia, por meio do diálogo e da crítica, coloca-se «em questão os problemas da construção jurídica e de sua fundamentação.»[5]

Aos fins deste ensaio, exploraremos duas teses disseminadas na doutrina brasileira cujos alicerces foram desterrados por Aroldo Plínio Gonçalves na obra em alusão: i) os escopos sociais e políticos da jurisdição, paralelos aos jurídicos; ii) a vinculação do processo à tutela do direito objetivo. Essas questões remetem aos próprios alicerces do Direito Processual; forjam as bases à posterior edificação. Em passagem do mesmo doutrinador ao justificar o estudo do processo e do procedimento:

[…]. As diferenças do quadro teórico não incidem apenas no conceito isolado de procedimento e de processo, mas alcançam temas fundamentais do Direito Processual. É necessário se ressaltar, entretanto, que essa diferença de tratamento dado aos temas decorre, fundamentalmente, da concepção que se adote sobre procedimento e sobre processo, porque e por ela que se começará a estabelecer todo um sistema de conceitos de que o Direito Processual necessita para suas construções jurídicas.[6]

Quanto ao primeiro ponto indicado, Aroldo Plínio Gonçalves consignou em sua obra que a censura aos escopos teve inspiração direta em Cândido Rangel Dinamarco, de quem o autor anunciava que iria divergir em vários tópicos, em «sinal do reconhecimento da grande influência que seu pensamento tem exercido na formação dos processualistas brasileiros da nova geração.» [7]  A questão da historicidade a que nos referimos. Adicionalmente, registre-se que o diálogo é uma manifestação de respeito pela obra.

Sobre essa doutrina, Gonçalves apontou que a tese dos escopos (jurídicos, sociais e políticos) pressupõe três ordens normativas correlatas. Naturalmente, conquanto seja possível falar em ordem social e em ordem política (assim como em ordens natural, cósmica etc.), não se atribui normatividade a elas.[8] Para ele, então, seria possível falar em escopos «pré-jurídicos», anteriores ao advento de uma determinada ordem jurídica, um momento ou fase prévio à «cristalização dos valores que serão acolhidos pelas normas, das ideologias que constituirão o conteúdo das normas». Entretanto, superado esse estágio primevo, em atenção ao código lícito-ilícito que funda a ordem jurídica, e que é indispensável à sua autonomia, já não seria possível crer em uma ordem social e política dotadas de normatividade e que também seriam tomadas como parâmetro pelo magistrado ao decidir os casos.

A rigor, além de colocar em xeque a autonomia do Direito, a perspectiva dos escopos dá azo à contaminação da decisão por elementos alheios à ordem jurídica, pois como observado por Aroldo Plínio Gonçalves, eles carecem de critérios objetivos de aferição.[9] É o que conduz a um modelo não democrático de magistratura, se quisermos aprofundar a crítica.[10] De logo se percebe que chamar todos os escopos de jurídicos não resolve o problema.

No tocante ao segundo ponto indicado neste texto, compulsando nosso texto constitucional, não é possível encontrar elementos à sustentação de doutrinas que vinculam o processo à tutela do direito objetivo, ou, que o associam à realização de interesses superiores do Estado. Ao longo de sua monografia, Aroldo Plínio Gonçalves lecionava que as novas conquistas do Direito teriam deslocado a problemática da justiça de «papel-missão» do julgador à garantia das partes de igual participação (simétrica e paritária) para a formação do «provimento jurisdicional».[11] Em certa medida, esse é o horizonte das garantias processuais, e no qual deve ser compreendido o art. 5º, XXXV, CF/1988.

Não fosse suficiente, a tentativa de associar o processo à tutela ou reafirmação (da eficácia) do direito objetivo (entre outros pretensos escopos) esbarra no artigo 8 do Pacto de San José da Costa Rica (Dec. nº 678/92). O artigo 8 proclama o direito de qualquer pessoa «a ser ouvida, com as devidas garantias» (ex., duração razoável, órgão jurisdicional competente, dotado de independência e imparcialidade etc.), para que sejam determinados «seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.»[12] Nem a CF/1988 (art. 5º, XXXV), tampouco o Pacto de San José da Costa Rica (artigo 8), oferecem «abertura» à interpretação de que o processo tenha por desiderato a tutela do direito objetivo; a não ser que a interpretação seja de lege ferenda (a título de proposta ou sugestão legislativa), o que nem sempre vem advertido pelos seus defensores.

Feitas essas breves considerações, tudo com suporte privilegiado na obra de Aroldo Plínio Gonçalves, talvez seja necessário lembrar que este ensaio visa a demonstrar que o processo não é instrumento da jurisdição; ao menos, não à luz da ordem jurídica brasileira. E como a visão que apequena ou reduz o processo a utensílio da jurisdição está alicerçada na tese dos escopos e na pretensa associação do processo à tutela do direito objetivo, a derrocada das premissas elimina a própria tese. Em certa medida, trata-se de uma questão de lógica.

Se o processo é visto como condição de possibilidade da jurisdição (processo como procedimento realizado em contraditório, em que o contraditório é enxergado como participação em simétrica paridade, para influir na formação do provimento),[13] na preleção de Aroldo Plínio Gonçalves, então não é preciso muito esforço para compreender que ele seja uma garantia. Eventual dificuldade estaria em visualizar o conteúdo específico do devido processo, o que buscamos demonstrar em outra oportunidade.[14]

Ao encerrar este texto, não cedo à tentação de retomar a metáfora do óleo e da água. Não é preciso. Finalizo com uma passagem de Aroldo Plínio Gonçalves: «No momento em que uma ciência renuncia a continuar investigando seu objeto e as complexas relações a que pode ser submetido pela análise, terá renunciado, antes, a si própria, como competência explicativa da realidade, quando clarificar a realidade que elege como seu domínio de trabalho é, inegavelmente, a missão social comum de qualquer ciência.»[15]

Post scriptum: em algumas passagens da obra, Aroldo Plínio Gonçalves refere-se a processo como instrumento (p. 48 e 58, por exemplo). Sem embargo, no contexto do trabalho, processo não é referido como instrumento da jurisdição, senão condição de possibilidade ao exercício jurisdicional. Tanto que a ideia do processo como instrumento do poder, ou, de que seria possível discernir o processo do procedimento mediante um critério teleológico (o primeiro teria finalidades, ao passo que o segundo, não), foram expressamente rechaçadas pelo autor (p. 64/66). Inclusive, Gonçalves afirmava que a doutrina moderna “diluiu o procedimento no processo” (p. 66). Não parece ser por outro motivo que a legalidade processual virou um não-tema; e que a adaptação procedimental vem ganhando tantos entusiastas.[16]

 

Notas e Referências:

* A versão original deste foi publicada no site Empório do Direito, Coluna Garantismo Processual, em 07 dez. 2020, com o título “Processo não é instrumento da jurisdição, ou, o mínimo que é possível apreender da obra de Aroldo Plínio Gonçalves”.

[1] Assim: PEREIRA, Mateus Costa. Sobre o mito – autoritário e moderno – da oralidade. Trabalho publicado no Empório do Direito (Coluna ABDPro). Disponível em: <https://bit.ly/3ooMvcI>.

[2] É suficiente ler os textos de Eduardo José da Fonseca Costa que integraram a coluna Garantismo Processual.

[3] GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992, p. 15.

[4] A partir e para além dela (dialogando com outras obras), aprofundamos as críticas ao instrumentalismo processual em: PEREIRA, Mateus Costa. Introdução ao Estudo do Processo: fundamentos do garantismo processual brasileiro. Belo Horizonte: Letramento / Casa do Direito, 2020.

[5] GONÇALVES, Aroldo Plínio, p. 15.

[6] Ibid., p. 63.

[7] Ibid., p. 15.

[8] Ibid., p. 182.

[9] “19 – Os fins metajurídicos do processo não possuem critérios objetivos de aferição no Direito Processual Civil. Se o exercício da função jurisdicional se manifesta sob a disciplina do ordenamento jurídico, e nos limites por ele definidos, ‘qualquer fim do processo só pode ser jurídico’ (Cf. rodapé 268).” Ibid., p. 195.

[10] Essa última conclusão não está em Aroldo Plínio Gonçalves, mas é uma conclusão natural a partir de sua obra. A lição foi retirada de: ABBOUD, Georges; LUNELLI, Guilherme. Ativismo judicial e instrumentalidade do processo. Diálogos entre discricionariedade e democracia. Revista de Processo, São Paulo, RT, vol. 242, p. 21 – 47, abr. 2015.

[11] GONÇALVES, Aroldo Plínio, op. cit., p. 195.

[12] A problemática foi ainda melhor percebida por Eugenia Ariano Deho: Problemas del proceso civil. Lima: Jurista Editores, 2003, p. 06-07.

[13] GONÇALVES, Aroldo Plínio, p. 191.

[14] A partir e para além dela, desenvolvemos várias críticas ao instrumentalismo processual em: PEREIRA, Mateus Costa. Introdução ao Estudo do Processo: fundamentos do garantismo processual brasileiro. Belo Horizonte: Letramento / Casa do Direito, 2020.

[15] GONÇALVES, Aroldo Plínio, op. cit., p. 15.

[16] No ponto, ver as críticas de Antonio Carvalho Filho em: “Rigidez procedimental” e “orientação solar”. Coluna Garantismo Processual. Empório do Direito. Disponível em: <https://bit.ly/3qrMXsA>. Acesso em: 04 dez. 2020.

 

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Mateus Pereira
Doutor e Mestre em Direito Processual. Professor de Direito Processual Civil na Graduação, no Programa de Pós-Graduação em Direito e Coordenador da Especialização em Processo Civil da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Advogado (sócio do Da Fonte, Advogados). . Autor do Podcast e do canal de Telegram "Processo & Prosa"(https://t.me/processoeprosa).

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