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Agronegócio, Política Florestal e Sustentabilidade no Brasil: realidades incompatíveis?

Carlos Sérgio Gurgel da Silva[1]

            O agronegócio é um dos pilares mais fortes da economia brasileira na última década. Se o país se destaca no cenário geopolítico e econômico mundial, muito se deve ao seu ‘agro’, como se costuma chamar a atividade. Segundo José Maria Tomazela, a safra recorde de mais de 300 milhões de toneladas esperada para o Brasil neste ano evidencia a dimensão que o agronegócio tomou dentro da economia brasileira. Ele destaca que entre 2002 e 2022, o PIB agrícola do país saltou (em números deflacionados) de US$ 122 bilhões para US$ 500 bilhões – o equivalente a uma Argentina. Explicita ainda que segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), o Brasil deve romper este ano a barreira das 300 milhões de toneladas de grãos, firmando-se como o terceiro maior produtor mundial de cereais, atrás da China e dos Estados Unidos[2].

No entanto, como qualquer outra atividade econômica, o agronegócio, através da operação de suas estruturas produtivas, tais como: a) preparação da terra, b) adubação (uso de fertilizantes), c) plantio, d) controle de pragas (uso de pesticidas e defensivos agrícolas), d) colheita (uso de maquinários e técnicas que facilitem as colheitas – em relação às atividades agrícolas e e) preparação das propriedades para a criação de animais destinados ao consumo humano, além de toda a cadeia produtiva de processos industriais (agroindústria) causam impactos ambientais. E não há como se evitar totalmente tais impactos. Nenhum país do mundo detém tecnologia capaz de erradicar por completo esse risco. Nesse sentido, o esforço, sempre válido e necessário, deve ser pela minimização ou mitigação dos impactos no ambiente. O êxito de planos, programas e técnicas, enfim, de práticas sustentáveis destacam ainda mais a grande contribuição que o ‘agro’ traz ao desenvolvimento socioeconômico brasileiro, sendo essa a nossa (Estado e iniciativa privada) maior meta.

Diante desse contexto, convém que os agentes de tais atividades sejam zelosos em relação ao cumprimento da legislação aplicável, especialmente a legislação ambiental pátria que recai sobre tais empreendimentos. Quando assim agem ressaltam ainda mais o valor que a atividade fornece ao desenvolvimento social e econômico pátrio. O agronegócio é um negócio bilionário e que aproveita a vocação natural do Brasil como um ‘celeiro agrícola para o mundo’. A história da “agroeconomia” em nosso país não vem de hoje. Desde o regime das capitanias hereditárias em nosso país, extensas áreas foram confiadas nas mãos de donatários, especialmente fidalgos portugueses, que instalaram no país um sistema de cultivo de cana-de-açúcar na região nordeste, por meio do qual se operou a exportação de diversos produtos, em especial o açúcar e a aguardente. Em momento posterior, especificamente no século XIX a história do Brasil relata o desenvolvimento da cafeicultura, praticada em estados da região sudeste. E não para por aí. Não se pode esquecer os ciclos econômicos gerados pelo cultivo do algodão na região semiárida brasileira, do cacau no Estado da Bahia, da soja em toda região do centro-oeste (o que se mantém até hoje), entre outros, sem falar da pecuária, extensamente desenvolvida no nordeste semiárido (mais desenvolvida no passado) e nos Estados do Pará, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rondônia e Goiás.

Convenhamos que a equação do desenvolvimento sustentável é um ‘desafio e tanto’, como se diz no senso comum. Conciliar interesses de preservação do ambiente com a exploração econômica do ambiente nunca foi e nunca será tarefa fácil. Desta forma, a solução passa pelo equilíbrio de aspectos ambientais e econômicos, onde se impõe que cada um ceda parte de seus interesses em prol de uma sustentabilidade ambiental, social e econômica. Não podemos ter a leitura do desenvolvimento sustentável apenas na perspectiva ambiental, mas também nas perspectivas sociais e econômicas, até porque vivemos em um país de economia de mercado inserido em um plexo de negócios e relações globalizadas.

O artigo 170 de nossa Constituição[3] vigente se insere neste contexto, que já vinha sendo alertado através da teoria do ecodesenvolvimento, propalada por Ignacy Sachs e por outros economistas na década de 1970. Destacam seu caput e inciso VI que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos, existência digna, conforme os ditames da justiça social, observado, entre outros, o princípio da defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação. Neste sentido, as atividades econômicas lícitas não devem receber cerceamentos ou restrições por parte do Estado desde que atendam, na integralidade, todas as exigências impostas pela legislação, especialmente a legislação ambiental incidente sobre o seu desenvolvimento. Tal fato destaca a importância do licenciamento ambiental como instrumento de controle e de exercício do poder de polícia ambiental.

Vale também destacar o teor do artigo 186 da Constituição vigente[4], quando afirma que a função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, entre outros, aos requisitos do aproveitamento racional e adequado (inciso I) e da utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente (inciso II). Este dispositivo ressalta o compromisso que o proprietário de imóvel rural com a defesa ambiental e exploração sustentável de sua terra.

Convém ainda recordar que o artigo 187 do Texto Magno[5] aduz que a política agrícola será planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercialização, de armazenamento e de transportes, levando em conta, entre outros aspectos, o incentivo à pesquisa e à tecnologia (inciso III), o que não só pode como deve ser utilizado em prol do desenvolvimento de tecnologias que viabilizem a sustentabilidade no plano concreto. Para não restar dúvidas, o §1º desse mesmo artigo 187 explicita que se incluem no planejamento agrícola as atividades agro-industriais, agropecuárias, pesqueiras e florestais.

No plano da legislação infraconstitucional, o Código Florestal (Lei nº 12.651/2012) destaca a necessidade de se demarcar e fiscalizar as denominadas Áreas de Preservação Permanente (APP), conferindo-lhes a disciplina normativa dos artigos 4º a 9º do supra referido diploma. Estas ocorrem em quaisquer tipos de propriedades, sejam imóveis rurais ou urbanos, públicos ou privados. Trata-se de áreas protegidas, cobertas ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas (art. 3º, inciso II)[6].

Ainda na sombra das disposições do código florestal convém destacar o instituto da Reserva Legal (RL), mecanismo estratégico para a efetivação da lógica do desenvolvimento sustentável na propriedade rural com potencial para exploração econômica. Encontra sua disciplina nos artigos 12 a 25 do código florestal vigente. Tal disposição legal reza, em seu art. 12, que todo imóvel rural deve manter área com cobertura de vegetação nativa, a título de Reserva Legal, sem prejuízo da aplicação das normas sobre as Áreas de Preservação Permanente, observados os seguintes percentuais mínimos em relação à área do imóvel, excetuados os casos previstos no art. 68 desta Lei: I – localizado na Amazônia Legal: a) 80% (oitenta por cento), no imóvel situado em área de florestas; b) 35% (trinta e cinco por cento), no imóvel situado em área de cerrado; c) 20% (vinte por cento), no imóvel situado em área de campos gerais; II – localizado nas demais regiões do País: 20% (vinte por cento), com regulações específicas que podem, excepcionalmente, flexibilizar tais status de proteção, o que é tratado nos artigos seguintes (até o art. 25)[7].

A delimitação dessas parcelas florestas protegidas é viabilizada pela instituição e utilização do Cadastro Ambiental Rural, mais conhecido no ‘agro’ como CAR. Trata-se de cadastro obrigatório para todos os imóveis rurais e tem a finalidade de integrar as informações ambientais das propriedades e posses rurais, compondo base de dados para controle, monitoramento, planejamento ambiental e econômico e combate ao desmatamento (art. 29)[8].

A inscrição do imóvel rural no CAR deverá ser feita, preferencialmente, no órgão ambiental municipal ou estadual, que, nos termos do regulamento, exigirá do proprietário ou possuidor rural: I – identificação do proprietário ou possuidor rural; II – comprovação da propriedade ou posse; III – identificação do imóvel por meio de planta e memorial descritivo, contendo a indicação das coordenadas geográficas com pelo menos um ponto de amarração do perímetro do imóvel, informando a localização dos remanescentes de vegetação nativa, das Áreas de Preservação Permanente, das Áreas de Uso Restrito, das áreas consolidadas e, caso existente, também da localização da Reserva Legal (§1º do art. 29)[9].

A disciplina infraconstitucional apontada acima revela que há um sistema inteligente capaz de compatibilizar interesses de preservação do meio ambiente com a exploração econômicas de propriedades rurais. Claro que a existência da norma não significa o seu cumprimento automático e, portanto, este é o grande desafio da gestão ambiental pública de nosso país: agir para que as disposições legais se tornem efetivas, ou seja, reais no mundo dos fatos.

Por fim, não podemos esquecer de citar um dos instrumentos mais importantes no que diz respeito à lógica da sustentabilidade ambiental, social e econômica: o zoneamento ambiental, mais especificamente, o zoneamento ecológico econômico. Este é, sem dúvidas, o grande vetor de um planejamento que pode ressaltar o valor do ‘agro’ brasileiro e ainda resguardar nosso patrimônio florestal, e por consequência, a nossa biodiversidade, mitigando interesses contrários e canalizando-os em direção à lógica da responsabilidade socioambiental.

O nosso intuito neste artigo foi apenas chamar a atenção sobre a possibilidade de se desenvolver um ‘agro’ sustentável, evitando-se, portanto, o desmatamento ilegal, a contaminação do solo e dos recursos hídricos (poluição), a disseminação de doenças em trabalhadores e/ou nas comunidades afetadas direta ou indiretamente por agroindústrias ou áreas de cultivo/pecuária. Sabemos que a atividade é complexa e multifacetada, o que demandaria uma exposição mais alongada (o que não é nossa proposta, por ora). Sabe-se que muitas são as formas de tornar a atividade em tela cada vez mais sustentável, tais como a utilização de energias renováveis, a recuperação de áreas degradadas, o correto descarte de embalagens, o tratamento e disposição adequada de dejetos, investimentos em tecnologias sustentáveis, aperfeiçoamento da gestão do processo produtivo, utilização de recursos naturais de forma consciente, adoção de sistemas inteligentes de reuso da água, redução da emissão de gases do efeito estufa, entre outras práticas[10].

O que se percebe é que a regulação ambiental pátria, partindo do Texto Constitucional e passando por normativas infraconstitucionais apontam para um potencial de tutela efetiva do ambiente no plano da abstração. Resta lutarmos, Estado e sociedade, pela tutela efetiva do ambiente no plano concreto. Assim procedendo não consigo enxergar o agronegócio, a política florestal e a sustentabilidade como realidades incompatíveis.

 

Notas e Referências:

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em 31 de agosto de 2023;

BRASIL. Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/L12651compilado.htm>. Acesso em 31 de agosto de 2023;

INTELBRAS BLOG. Sustentabilidade no agronegócio: o que é e como alcançar? Disponível em: <https://blog.intelbras.com.br/sustentabilidade-no-agronegocio/>. Acesso em 31 de agosto de 2023;

TOMAZELA, José Maria. Agronegócio no Brasil dá salto em 20 anos e hoje equivale ao PIB da Argentina. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/economia/agronegocio-no-brasil-da-salto-em-20-anos-e-hoje-equivale-ao-pib-da-argentina/>. Acesso em 27 de agosto de 2023.

[1] Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa (Portugal); Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Especialista em Direitos Fundamentais e Tutela Coletiva pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Norte, Professor Adjunto (III-8) da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Campus de Natal, Advogado, Geógrafo, Presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RN (2022-2024), Conselheiro Seccional da OAB/RN (desde 2019), Conselheiro titular nos seguintes conselhos: Conselho Estadual do Meio Ambiente (CONEMA) e Conselho da Cidade de Natal (Concidade); Autor dos Livros: Direito Urbanístico Luso-Brasileiro, volumes I (2021) e volume II (2022) 1ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris; Manual teórico e prático de advocacia ambiental. 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora GZ, 2022; Aspectos Jurídicos do Licenciamento Ambiental da Revenda de Combustíveis. 1ª ed. Salvador, Motres, 2020; Processos administrativo e judicial na SPU – superintendência de patrimônio da união, Rio de Janeiro: Editora GZ, 2023.

[2] TOMAZELA, José Maria. Agronegócio no Brasil dá salto em 20 anos e hoje equivale ao PIB da Argentina. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/economia/agronegocio-no-brasil-da-salto-em-20-anos-e-hoje-equivale-ao-pib-da-argentina/>. Acesso em 27 de agosto de 2023.

[3] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em 31 de agosto de 2023.

[4] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em 31 de agosto de 2023.

[5] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em 31 de agosto de 2023.

[6] BRASIL. Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/L12651compilado.htm>. Acesso em 31 de agosto de 2023.

[7] BRASIL. Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/L12651compilado.htm>. Acesso em 31 de agosto de 2023.

[8] BRASIL. Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/L12651compilado.htm>. Acesso em 31 de agosto de 2023.

[9] BRASIL. Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/L12651compilado.htm>. Acesso em 31 de agosto de 2023.

[10] INTELBRAS BLOG. Sustentabilidade no agronegócio: o que é e como alcançar? Disponível em: <https://blog.intelbras.com.br/sustentabilidade-no-agronegocio/>. Acesso em 31 de agosto de 2023.

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Carlos Gurgel
Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa (Portugal), com título revalidado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Especialista em Direitos Fundamentais e Tutela Coletiva pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Norte. . Professor Adjunto (III-8) da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Campus de Natal. Advogado e Geógrafo. . Presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RN (2022-2024), Conselheiro Seccional da OAB/RN (desde 2019), Conselheiro titular nos seguintes conselhos: Conselho Estadual do Meio Ambiente (CONEMA) e Conselho da Cidade de Natal (Concidade); Primeiro Secretário do Instituto de Direito Administrativo Seabra Fagundes (IDASF); associado do Instituto Brasileiro de Direito e Sustentabilidade – IbradeS; associado da ABDEM - Associação Brasileira de Direito de Energia e do Meio Ambiente, da União Brasileira da Advocacia Ambiental (UBAA) e da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil (APRODAB); membro do Conselho Gestor da APA Bonfim-Guaraíras-RN; membro do Conselho Gestor do Parque Estadual das Dunas (Natal/RN). . Possui diversos livros, capítulos de livros e artigos, publicados em periódicos e livros nacionais e internacionais.

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