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As Forças Armadas e a Constituição

                                                        Por José  Luiz  Delgado*

                  

A questão “As Forças Armadas e a Constituição” (ou “A presença e o papel das Forças Armadas, segundo a Constituição”, ou “O art. 142 da Constituição”) pode ser resumida nas sete seguintes afirmações capitais .

 

1. A Constituição não dá competência às Forças Armadas para intervir em nenhum dos 3 poderes.

A Constituição autoriza as FA a intervir nos poderes? O art. 142, com a “garantia da lei e da ordem”, lhes dá essa atribuição? Constituem  elas um “poder moderador”?

A resposta deve ser retumbantemente negativa.  O recurso ao artigo 142 da Constituição, que houve quem propusesse para rejeitar o resultado das últimas eleições, é ridículo e não tem qualquer fundamento. Este famoso artigo absolutamente não dá às Forças Armadas a atribuição de intervir na vida política brasileira. Não tem elas competência alguma para interferir em qualquer dos poderes. Não estão acima dos poderes, não os supervisionam nem os tutelam: apenas integram o Poder Executivo e estão subordinadas ao Presidente da República. A terceira de suas atribuições, “garantir a lei e a ordem”, não significa agir segundo seu próprio juízo, para investir contra qualquer dos poderes constituídos. Nem são elas Poder Moderador – que é poder que já existiu na nossa história, no Império, aliás poder do próprio Imperador, mas que desapareceu em toda a história da República e continua não existindo.

Basta considerar que, se, de fato, o 142 desse esse poder às Forças Armadas, seria tão fácil simplesmente revogá-lo, ou modificá-lo…

Seria isso suficiente para garantir que nenhuma intervenção mais as Forças Armadas fariam na história brasileira? Claro que não.

Toda ruptura da ordem democrática, toda intervenção militar na ordem institucional brasileira, será sempre inconstitucional. Nenhuma se pode dizer amparada ou autorizada pela Constituição. Toda ela significa uma ruptura da ordem constitucional e toda ruptura da ordem constitucional é, por definição, anticonstitucional e não pode ser protegida ou regulada pela Constituição. É o óbvio dos óbvios.

 

2. Não adianta incluir na Constituição dispositivo vedando as intervenções militares.

Adiantaria incluir na Constituição dispositivo expresso proibindo terminantemente os militares de dar golpe? Obviamente também não.

Consta que, nos debates constituintes de 1987/88, houve quem propusesse incluir, na Constituição que estava sendo elaborada, dispositivo vedando às Forças Armadas atentarem contra a ordem constitucional. Seria dispositivo obviamente, além de ridículo, inútil e contraproducente.

Inútil, porque, se um pedaço de papel tivesse o condão de mudar o mundo, seria magnífico. É evidente que uma determinação dessas, constante do documento escrito constitucional, não tem o condão, por si só, de impedir qualquer investida das Forças Armadas contra a Constituição.  Papel suporta tudo mas, evidentemente, por si só, não resolve nada.

E contraproducente, porque, se uma norma dessas, incluída na Constituição, fosse eficaz, isso só levaria à conclusão de que, inexistindo nos textos constitucionais pretéritos dispositivo igual, os golpes anteriores dados pelos militares teriam sido… constitucionais!

Em vão alguns pretenderão basear em algum fundamento constitucional ação para rasgar a ordem constitucional. Em vão se procurará dar alguma base constitucional para eventuais rupturas da ordem democrática.  Simplesmente não há nem pode haver fundamento na Constituição para uma ação que é, na essência, contra a Constituição. Não pode haver fundamento constitucional para a ruptura da Constituição – seja golpe, seja revolução. Toda ação nesse sentido é substancialmente inconstitucional, é anticonstitucional.

 

3. Nada obstante, as Forças Armadas intervieram várias vezes (9 vezes) na vida política republicana brasileira.

Do que foi dito nos tópicos anteriores se segue que, não tendo para isso autorização constitucional,  as Forças Armadas nunca intervieram na vida política brasileira? Ou que jamais intervirão? E que, por serem inconstitucionais, está assegurado que jamais atividades, golpes, movimentos antidemocráticos serão desencadeados no país? Ou que, se desencadeados, jamais terão êxito?  Quem pode garantir sonhos semelhantes?

Então, não lhes dando esse poder o art. 142, ou, vindo ele a deixar de existir, ou sendo modificado, para dele ser retirada a referência à manutenção da lei e da ordem internas, estaria garantido que

as Forças Armadas jamais dariam, ou darão, golpe, jamais interviriam, ou intervirão, na vida política brasileira?  Ora, pode alguém imaginar que, com essa revogação ou essa modificação, o risco de intervenções militares estaria completa e definitivamente eliminado? Obviamente não…

Quem quiser, se iluda com essas fantasias.

O fato é que as Forças Amadas intervieram com êxito, nada menos de 9 vezes na história do Brasil republicano.

A começar pela própria proclamação da República. Evidente golpe de estado. Obviamente inconstitucional, de nenhum modo autorizado pela Constituição então vigente, a imperial, de 1824. Deve-se dizer ilegítima essa intervenção? Deve ser condenada, como todas as intervenções deveriam ser, segundo alguns?  É ponto de vista que só podem defender os que querem voltar à monarquia… Era isso exatamente o que proclamavam os monarquistas, indignados com a proclamação da República: denunciavam-na como golpe ilegítimo e inconstitucional.

 

4. Inconstitucionais diante da Constituição vigente, as intervenções militares são manifestações do poder constituinte originário revolucionário.

O que acontece, então, do ponto de vista jurídico, quando se dá uma ruptura da ordem constitucional? Quando as Forças Armadas  intervém (porque nenhuma ruptura acontece sem manifestação de força armada, seja contra o governo, seja promovida pelo próprio governo)?

Simplesmente um fenômeno que a doutrina constitucional conhece há muito tempo: uma nova manifestação do poder constituinte originário. Especificamente, do poder constituinte originário revolucionário (por contraposição ao poder constituinte originário histórico).

Porque os famosos três poderes da concepção imortal de Montesquieu – Legislativo, Executivo, Judiciário – são, todos, poderes constituídos. Poderes criados, definidos e regulados pela Constituição. Onde ficaria, porém, o poder de fazer uma Constituição? De organizar um governo e distribuir competências? Este é o que a doutrina chama de “poder constituinte” e o qualifica adicionalmente de “originário”, para distinguir de um “poder constituinte derivado”, que, a rigor, não é poder constituinte, mas poder constituído: o poder de reformar a Constituição, poder que somente se exerce, evidentemente, nos termos da Constituição. Em comum com o verdadeiro poder constituinte (o originário), este, “derivado”, só tem o fato de que se refere à Constituição. Mas tanto ele, quanto um outro ainda, o chamado “poder constituinte decorrente”, são poderes constituídos.

Poder constituinte propriamente dito só é o originário: o poder de criar uma Constituição, de definir uma ordem jurídica nova, de inaugurar um ordenamento, o qual vai ser construído, todo, a partir dela, da nova Constituição. E se diz que o poder constituinte originário tem duas modalidades: o histórico e o revolucionário – aquele, o poder que fez a primeira constituição de um Estado; e este, o que faz, dentro do Estado, novas Constituições, isto é, rasga a Constituição vigente e cria outra, faz uma ruptura e dita um ordenamento novo.

 

5. O poder constituinte originário é permanente, irregulamentável e fundante: inaugura um ordenamento jurídico novo.

O poder constituinte originário, cujo titular é o povo, é permanente, latente, virtual, irregulamentável e pode eclodir a qualquer momento. E é inaugural e fundante: ele inaugura uma nova ordem jurídica. É o ponto de partida de um novo ordenamento jurídico.

Exterior, superior e anterior ao ordenamento jurídico, a qualquer ordenamento jurídico, ele é necessária e intrinsecamente irregulamentável. E é permanente, sempre existente, embora rarissimamente se manifeste, e não adianta o ordenamento querer proibi-lo e pouco importando o fato de o ordenamento obviamente o ignorar.

Não adianta pretender regulamentá-lo, restringi-lo ou evitá-lo.

Seu titular é o povo, é sempre o povo, embora o exercício possa ser de pequena parcela. É sempre o povo porque se o povo aceita a nova ordem, (mesmo se não tiver tido a iniciativa da ruptura), se se conforma com ela, se convive com ela e passa a acatar as novas determinações, e não se levanta contra ela, significa que o povo na prática a confirmou, a ratificou.

Exemplo notável foi a proclamação da República. Embora, nas primeiras décadas republicanas, continuassem fortes e ativos diversos movimentos monarquistas restauracionistas, nenhum logrou derrubar o novo regime, e a República por toda parte se impôs, e portanto foi consagrada pela população.

Se o movimento (que só se faz com armas e em sigilo)  pela ruptura, pela derrubada da ordem constitucional, for derrotado, seus protagonistas certamente serão presos porque sua ação constituiria crime de atentado contra a ordem democrática. Se tiverem êxito, porém, ditarão uma nova ordem jurídica.

Em resumo, o poder constituinte originário revolucionário, que a qualquer momento pode eclodir, derruba a ordem existente e instaura uma nova ordem constitucional. Ele se realiza contra e sobre o ordenamento jurídico vigente e antes do ordenamento que vai ter vigência por conta de sua atuação.

Ou seja: toda ruptura da ordem constitucional é, em si mesma, sempre e necessariamente, inconstitucional – bem entendido: inconstitucional diante da Constituição vigente (a Constituição anterior, que  justamente ela quer derrubar e substituir). Mas é inauguradora de uma nova ordem constitucional. É simplesmente o fundamento, a base, o ponto de partida de uma nova Constituição.

 

6. Embora inconstitucionais, algumas intervenções podem ser democráticas (em favor da democracia): para restaurá-la ou para preservá-la.

Intrinsecamente inconstitucional, a ruptura (ou o golpe de estado)  não é, no entanto,  necessariamente antidemocrática.

Há intervenções que, inconstitucionais todas, são também antidemocráticas, é claro. Foi o caso óbvio, na história brasileira, da decretação do Estado Novo, em 1937. Mas, outras vezes, essas intervenções são feitas para restaurar a democracia, ou para manter a democracia.

Intervenção para restaurar a democracia. Exemplo evidente, ainda na nossa história, é a intervenção feita em 1945, exatamente para derrubar o Estado Novo. Intervenção não para suprimir a democracia mas para restaurar a democracia. Intervenção inconstitucional, obviamente (diante da Constituição vigente, que era a chamada “polaca”, de 1937), mas francamente democrática.

E intervenção para manter a democracia, para evitar que ela perecesse. Portanto, intervenção preventiva, para evitar um golpe iminente, para impedir uma ruptura antidemocrática. Foi, claramente, no Brasil, o caso dos famosos “golpes do General Lott”, em novembro de 1955.

Juscelino havia sido eleito e tomaria posse dois meses depois, mas a eleição estava sendo contestada porque ele não havia obtido maioria absoluta –  embora a Constituição não contivesse essa exigência. Aconteceu que o presidente Café Filho (vice que se tornara presidente, com o suicídio de Getúlio) sofreu um problema cardíaco e precisou licenciar-se do governo. Assumiu o presidente da Câmara, o deputado Carlos Luz. Quando Lott pediu que o presidente devolvesse ao Exército (para ser punido) o coronel Jurandir Mamede, por conta do discurso que este fizera no enterro do general Canrobert (discurso vedado aos militares, por ter sido de natureza política), o presidente em exercício negou. Lott apresentou sua demissão, imediatamente aceita, e acertaram para o dia seguinte a transmissão do cargo. Voltando para sua residência, porém, o ex-ministro Lott se convenceu (consta que por seu vizinho e amigo, o general Odylo Denys) de que, afastando-o, Carlos Luz estava de fato era preparando o golpe. E então Lott resolveu agir antes: deu um golpe e afastou Carlos Luz, assumindo então o governo, também interinamente, o presidente do Senado, Nereu Ramos.

No final do mesmo mês de novembro, restabelecida sua saúde, Café Filho anunciou que reassumiria a presidência. Mas, convencido de que seria novamente tentado um golpe para impedir a posse do presidente eleito, agora por iniciativa do próprio presidente Café Filho, Lott deu, então, um segundo golpe, impedindo a volta do presidente licenciado à presidência.

Foram os golpes, ou os “contragolpes” de novembro de 1955. Golpes pela democracia. Tanto que Lott os chamou de “movimento de retorno à legalidade”. Golpes dados em defesa da Constituição e da democracia, para assegurar o respeito ao resultado das eleições.

 

7. Quando ocorrem em favor da democracia, as intervenções militares são necessárias e boas.

A maioria das intervenções no Brasil foi em favor da democracia. (Antidemocráticas foram claramente apenas 1937, 1965 e 1968)

Em favor da democracia, para restaurá-la (como 1945) ou para assegurá-la, prevenindo tentativas de suprimi-la (como 1955), isso significa que foram, portanto, boas e necessárias.

Se estamos diante de uma Constituição ditatorial, como era a Carta de 1937, ou diante de uma situação de grave ameaça à ordem democrática (como ocorreu em 1955), impõe-se agir: para derrubar a opressão ou para afastar a ameaça.

Ou não foram necessárias e boas as intervenções de 1946 (para restaurar a democracia) ou de 1955 (para prevenir ações contra a democracia)?

E quem pretender que, para isso, não é lícito recorrer às Forças Armadas, porque toda intervenção das Forças Armadas na política brasileira seria intrinsecamente ilegítima, deve declarar-se monarquista e lutar pela restauração da monarquia. Será, talvez, no fundo, candidato a barão, ou a marquês, ou a duque, ou a conde.

 

* Professor aposentado de Direito Constitucional e de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco/UFPE.

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