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Breve análise sobre a Nova Lei Geral dos Esportes

 

 

Henrique T. M. Misawa[1]

Luiza W. Weber[2]

Pedro de Menezes Carvalho[3]

 

A atividade esportiva no Brasil sempre contou, em maior medida, com a regulamentação da Lei nº 9.615/98, a famosa Lei Pelé, que atualizou a legislação nacional, seguindo os parâmetros internacionais, bem como outros instrumentos normativos, como o Estatuto do Torcedor e a Lei do PROFUT. Por outro lado, neste momento, o universo futebolístico ganha ainda mais destaque, quando da publicação da badalada Lei da SAF e, como será tratado a seguir, da Lei Geral do Esporte.

No último dia 6 de julho foi aprovado na Câmara dos Deputados o texto da Lei Geral do Esporte (PL 1.153/19) (“LGE”) com o objetivo de atualizar o texto da Lei Pelé e concentrar em um único instrumento normativo a regulamentação da prática desportiva no Brasil.

A proposta consiste na junção de vários projetos de Lei que tramitavam no Congresso Nacional envolvendo a temática desportiva. É importante frisar que devido às alterações promovidas na Câmara dos Deputados, o texto deverá passar por novo crivo do Senado.

O PL 1.153/19 tem dividido opiniões e acarretado acalorados debates. De um lado, pode ser classificado como um grande avanço, pois cria critérios mais objetivos para a aplicação de recursos públicos ao esporte, exigindo transparência e determinando o investimento em formação de novos atletas e no apoio a atletas aposentados, além de tratar de assuntos de cunho trabalhista e tributário. Por outro lado, o sentimento geral dos atletas é que o projeto em debate retira direitos e não atende às necessidades dos profissionais do setor. Certamente é um projeto necessário para o país e que precisará de um amadurecimento no seu conteúdo.

Alguns pontos chamam atenção, os quais nos propusemos a tecer breves comentários.

Sobre a questão da assistência a atletas, o PL 1.153/19 estipula os critérios de contribuição dos clubes à FAAP[4] – 0,25% sobre os salários mensais dos atletas e 0,5% sobre as transferências nacionais e internacionais de atletas – lembrando que a FAAP deve prestar contas ao Poder Executivo a cada 2 anos. O intuito é o de apoiar a transição de carreira de ex-atletas profissionais, visando a realocação desses no ambiente de trabalho, especialmente para que detenham a possibilidade de se dedicar ao esporte de outra maneira, por exemplo, como treinadores (art. 95).  Ademais, estipula os direitos dos atletas em formação (art. 98):

  • Participação em programas de treinamento nas categorias de base;
  • Treinamento com corpo de profissionais especializados em formação técnico-desportiva;
  • Segurança nos locais de treinamento;
  • Assistência educacional, complementação educacional e auxílio com material didático-escolar;
  • Tempo, não superior a quatro horas diárias, para a efetiva atividade de formação do atleta;
  • Matrícula escolar;
  • Assistência psicológica, médica, odontológica, farmacêutica e fisioterapêutica;
  • Alimentação suficiente, saudável e adequada à faixa etária; e
  • Garantia de transporte adequado para o deslocamento de ida e volta entre sua residência e o local de treinamento.[5]

Outro ponto interessante é a questão das loterias. Buscando transparência na gestão de recursos, os repasses recebidos pela Secretaria Especial do Esporte, provenientes da arrecadação de loterias, deverão ser periodicamente auditados pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Além disso, houve a designação de porcentagens do valor para as secretarias Estaduais de Esporte, Comitê Brasileiro do Esporte Master (CBEM), Confederação Brasileira do Desporto Universitário (CBDU), União dos Esportes Brasileiros Comitê Olímpico Brasileiro (COB) e Comitê Paraolímpico Brasileiro (CPB).

Tal recurso assume grande importância para o setor pois, a título de exemplo, somente em 2021 foi arrecado pelas loterias o valor de R$ 18,5 bilhões, uma alta de 8,2% em comparação à 2020. Projeta-se para o ano de 2022 uma arrecadação ainda maior, quando observa-se que apenas no mês de janeiro o valor total foi de R$ 1,28 bilhão.

Com o crescimento dos valores arrecadados junto às loterias e com a nova sistemática de distribuição, se acredita que as entidades desportivas terão acesso a mais recursos. A grande questão será a gestão de tais valores: com o aumento da fiscalização na utilização dos recursos públicos, o caminho a ser seguido será o da profissionalização do setor, especialmente com a contratação de equipes para consultoria jurídica e financeira, bem como o desenvolvimento do compliance interno.

Indo além, o PL 1.153/19 avança em iniciativas inclusivas, as quais devem ajudar na diversidade de gênero no esporte. Por exemplo, o recebimento de recursos públicos e de loterias estaria condicionado à presença de, no mínimo, 30% de mulheres em cargos de direção das entidades esportivas a partir de 2028 (art. 35, IX)[6]. Não obstante a quota estar longe da paridade ideal, espera-se que tal medida sirva de incentivo para que as entidades esportivas incluam mais mulheres do que o percentual mínimo.

Este movimento estaria em linha com o crescimento da participação feminina a cada olimpíada. No Rio de Janeiro em 2016, a participação feminina foi de 45% dos atletas; já nos jogos de Tóquio, em 2020, tal percentual subiu para 48,8%. A elevação no número de atletas envolvidos nos eventos esportivos, acrescido das novas disposições aplicáveis ao setor, tende a incentivar uma elevação no número de mulheres nos cargos de gestão das entidades.

Em sintonia com o aspecto supramencionado, outro importante passo social da LGE consubstancia-se em trazer a isonomia de gênero com relação às premiações de competições promovidas ou disputadas por entidades esportivas que recebam recursos públicos (art. 35, IX). Apesar de não dispor sobre a real paridade salarial, caso esta regra seja respeitada, espera-se que ocorra a equiparação entre as remunerações de atletas homens e mulheres. Essa é uma externalidade positiva, pois tem o potencial de, na prática, inspirar mais meninas à prática de esportes, o que pode resultar em maior interesse da sociedade no assunto e, portanto, o direcionamento de mais investimentos.[7]

A LGE também introduz a tipificação do crime de corrupção privada no ambiente esportivo.[8] A medida deve ajudar a desincentivar a prática de atos de corrupção observados no meio esportivo. No entanto, é preciso haver um aparato de fiscalização efetiva, bem como um processo legal sério e célere no tratamento destes casos.

Por envolver a utilização de recursos públicos, a tipificação da conduta de corromper ou ser corrompido já tinha reflexo no Código Penal. A LGE fortalece a tipificação, na medida em que cria um tipo penal específico aplicado ao setor. A tipificação por si só não é suficiente, novas ferramentas para fiscalização e punição também deverão ser estruturadas, a fim de que as condutas ilícitas sejam devidamente apuradas. Além de trazer moralidade ao setor, a tendência será uma elevação nos investimentos privados, pois a melhoria na gestão somada com a punição de condutas ilícitas trará mais credibilidade para o esporte nacional.

Outro ponto importante é que o texto atual da lei permite que empresas e pessoas físicas descontem do Imposto de Renda eventuais valores aportados em projetos desportivos e paradesportivos (art. 127), respectivamente no limite de 7% e 4%. As empresas passam a poder deduzir os valores doados como despesa operacional e, portanto, diminuir a base de cálculo não apenas do Imposto de Renda, mas também da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido.

Esta é mais uma tentativa de estímulo ao setor, trazendo a iniciativa privada para uma posição não apenas de patrocinadora, mas também de apoiadora ao esporte nacional. O desafio do setor é se tornar atrativo para que as pessoas jurídicas destinem recursos ao esporte nacional; mais uma vez, não basta apenas a existência da Lei é preciso que outras ferramentas sejam utilizadas a fim de incentivar as doações.

Do outro lado da moeda, desde a aprovação do PL 1.153/19 pela Câmara dos Deputados, os jogadores de futebol, por meio da União dos Atletas de Futebol Séries ABCD, têm protestado alguns de seus dispositivos que tratam de questões trabalhistas.

A primeira discussão refere-se à possibilidade de pactuação de cláusula compensatória devida pelos clubes aos atletas em caso de rescisão contratual antes do término do prazo original do contrato de trabalho já no momento da contratação (art. 85, § 3º). A Lei Pelé estabelece o pagamento de 100% do valor dos salários devidos até o fim do prazo original da contratação, sendo que, pela LGE, poderia ser pactuado um valor reduzido.

Outra discussão, ainda na seara das rescisões contratuais, refere-se à desobrigação de pagamento da compensação rescisória caso o atleta “celebre novo contrato de trabalho com distinta organização de prática esportiva (…) quando o salário do atleta com a nova organização esportiva for igual ou superior àquele que recebia anteriormente, ou, caso seja inferior, será devido pela organização de prática esportiva anterior somente a sua diferença (…)” (art. 85, § 6º).

Ainda, os jogadores protestam o teor do art. 84, que determina que as premiações e luvas não teriam natureza salarial, bem como o art. 164, § 2º, o que dispõe que a remuneração do jogador por direito de imagem não poderá́ ser superior a 50% da sua remuneração estabelecida em contrato de trabalho, i.e., há diminuição de valores de base de cálculo em casos de rescisões.

Por fim, os jogadores demonstram insatisfação no que se refere à hora noturna diferenciada aos atletas, a qual passaria a ser considerada apenas após as 23h59 de cada dia (art. 96, VIII, § 3º), sendo que a CLT estabelece, em seu art. 73, a regra geral de que a hora noturna passa a valer a partir das 22h. Sobre este ponto, deve-se atentar à natureza diferenciada da profissão de jogador de futebol que, por muitas vezes, deve jogar partidas em horários mais avançados do dia. O fato de isto ocorrer não significa, em regra, um abuso nos horários de trabalho, sendo necessária a análise da grade horária dos jogadores, na medida em que ela pode ser bastante flexível a depender da marcação dos jogos que, por sua, vez dependem de uma combinação de fatores, e.g., fuso horário em partidas internacionais, direitos de transmissão, disponibilidade de estádios etc.

Não obstante, tais mudanças estão em linha com a reforma do mercado na busca por um ambiente esportivo financeiramente sustentável. No caso do futebol, a preocupação com os clubes está alinhada aos dispositivos da Lei da SAF (Lei 14.193/21) e visa ao equilíbrio das contas.  Em um raciocínio de causa e consequência, caso os clubes continuem contraindo mais passivos, com receitas inferiores, eles deixarão de contratar jogadores ou passarão a ofertar quantias salariais cada vez menores, causando um impacto indesejável e, talvez ainda maior, aos salários. Em um caso ainda mais extremo, existe a possibilidade de falência dos clubes brasileiros, o que causaria o desemprego de atletas.

Outro ponto polêmico consiste na cobrança de direitos de transmissão às emissoras de rádio, que hoje estão autorizadas a transmitir eventos esportivos sem custo.

De um lado, os defensores da nova regra justificam a cobrança na medida em que as rádios auferem lucros ao transmitir os jogos. Do outro lado, os críticos denotam que, mercadologicamente, esta cobrança parece não fazer sentido. No universo do futebol, por exemplo, apesar de gerar uma pequena renda mais imediata aos clubes, no longo prazo, eles perderiam receita. Isto pois, o rádio é muitas vezes a única via de acesso de pessoas aos jogos na medida em que permite aos ouvintes acompanharem as partidas durante seu deslocamento no trânsito ou em áreas sem cobertura televisiva, além de transmitir partidas cuja transmissão televisiva estaria restrita à TV a cabo ou pay-per-view. Ao diminuir este contato, rádios menores podem falir e rádios maiores devem reduzir as transmissões, sendo que os clubes deixariam de alcançar e fidelizar milhões de pessoas que podem ser consumidoras de produtos dos clubes. Sem considerar a análise de que a população poderia perder uma alternativa de lazer e entretenimento.

Conclusão

A LGE vem em boa hora para organizar o ambiente esportivo brasileiro, cuja regulamentação está defasada e descentralizada. Naturalmente, há melhorias que podem ser implementadas pelo Senado, mas a aprovação do texto atual já poderia ser considerada um avanço ao segmento esportivo.

No caso do futebol, a LGE parece estar em linha com a Lei da SAF, no intuito de proporcionar uma alternativa de fôlego ao esporte que é tão querido pelos brasileiros. É a partir de avanços como a LGE que será possível criar um mercado esportivo financeiramente sustentável e preocupado também com questões sociais e de governança.

Mais uma vez reforçamos que não basta a criação da norma é preciso que medidas para implementação sejam criadas e que incentivos sejam estruturados. Cada vez mais o esporte nacional caminha para a profissionalização.

 

Notas e Referências:

[1]  Sócio de CMT Advogados, Henrique Misawa atua nas áreas de M&A, private equity e direito societário e de contratos comerciais. Possui extensa experiência em reestruturações societárias, operações de M&A nacionais e internacionais envolvendo companhias de diversos setores (e.g., commodities, indústria do aço, dentre outros), bem como em processos envolvendo a CVM. Trabalhou como associado internacional no escritório Yulchon, LLC, em Seul (Coreia do Sul) de 2019 a 2020, onde assessorou clientes coreanos e internacionais em operações de M&A. Possui LL.M. em Direito Societário pelo Insper, LL.M. pela Universidade de Chicago e é especialista em Análise Econômica do Direito pela Universidade de Lisboa.

[2] Atua com Direito Societário e M&A, com sua prática voltada especialmente a operações societárias visando investimentos em empresas, atuando desde a coordenação de processos de Due Diligence até a elaboração dos contratos relativos aos investimentos, além de prestar assistência para empresas nacionais no segmento de reorganização societária, seja para a perpetuação dos negócios entre famílias seja à regulação dos interesses entre sócios/acionistas. É advogada associada do CMT Advogados, possui LL.M em Direito Societário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e cursa Mestrado em Direito Civil e Empresarial pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

[3] Mestre em Direito pela UFPE. Certificado em contratos por Harvard. Professor universitário. Sócio do Carvalho, Machado e Timm advogados.

[4] É a Federação das Associações de Atletas Profissionais cujo objetivo é, de acordo com seu site (http://faapatletas.com.br/), “apoiar atletas em formação, ex-atletas e atletas profissionais, visando sua qualificação ao exercício de uma nova profissão antes, durante e após encerramento de sua atividade”.

[5] Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/07/07/volta-ao-senado-projeto-que-estabelece-nova-lei-geral-do-esporte/>. Acesso em: 11 jul. 2022.

[6] Destaca-se que em 2021, dos 40 clubes das séries A e B do Campeonato Brasileiro, constata-se que entre 433 nomes distribuídos entre diretorias e executivos, apenas 10 são mulheres.” Disponível em: <https://www.uol.com.br/esporte/colunas/lei-em-campo/2022/07/11/o-pl-da-nova-lei-geral-do-esporte-e-o-combate-ao-preconceito.htm/>. Acesso em: 11 jul. 2022.

[7] A Copa do Mundo do Brasil, em 2014, premiou a seleção masculina alemã por ter conquistado o título com um prêmio  de U$ 34 milhões; já a seleção feminina dos Estados Unidos, recebeu como premiação o valor de U$ 15 milhões pela taça em 2015.

[8] Art. 165: “Exigir, solicitar, aceitar ou receber vantagem indevida, como representante de organização esportiva privada, para favorecer a si ou a terceiros, direta ou indiretamente, ou aceitar promessa de vantagem indevida, a fim de realizar ou omitir ato inerente às suas atribuições:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem oferece, promete, entrega ou paga, direta ou indiretamente, vantagem indevida ao representante da organização esportiva privada.”

 

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Pedro Carvalho
Advogado e Professor Universitário com mestrado em Direito pela UFPE. Especialista em Contratos pela Harvard University e em Negociação pela University of Michigan. Sócio do Carvalho, Machado e Timm Advogados, liderando a área de Regulação, Infraestrutura, Energia e Sustentabilidade. Experiência destacada na docência na UNICAP, IBMEC e PUCMinas.

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