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Devo, não pago, mas posso fazer concurso público? Uma análise da recente decisão do STF sobre a adoção de medidas executivas atípicas

 

Nos últimos dias, muito se tem falado sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que proibiria cidadãos endividados de participarem de concurso público. Como esperado, toda notícia que envolve o universo dos concursos tem grande repercussão, e nem sempre é divulgada/analisada da forma devida.

Nesta coluna, trataremos da questão com o intuito de esclarecer qual o alcance da recente decisão do STF sobre os concurseiros.

 

  1. ADI n. 5941: contextualizando

Em maio de 2018, o Partido dos Trabalhadores (PT) ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), que recebeu o número 5941, por meio da qual questionou a constitucionalidade do artigo 139, inciso IV, do Código de Processo Civil (CPC). O referido artigo autoriza o Judiciário a determinar medidas coercitivas necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária, como o pagamento de uma dívida (STF, 2023 a) [1].

A fundamentação da propositura da ADI n. 5941 estava na alegação de que o cumprimento das decisões judiciais, não obstante seja legítima, não pode desrespeitar direitos fundamentais e o devido processo constitucional.

Dentre as medidas atípicas para o cumprimento de ordem judicial, podem ser elencadas como exemplos, a apreensão de Passaporte, da Carteira Nacional de Habilitação (CNH), a suspensão do direito de dirigir, o impedimento de participar de licitações públicas e celebrar contratos administrativos e, particularmente, a que nos interessa mais de perto:  a proibição de participar de concursos públicos.

Como explica Mollica (2023) [2], em recente artigo, a maior fragilidade do Processo Civil é a satisfação do credor diante de uma dívida que não foi paga. Há um considerável volume de processos de execução com o cumprimento de sentença em aberto, o que evidencia a dificuldade em localizar os devedores e bens aptos a satisfazerem a dívida cobrada. Nesse caso, acredito que vale o exercício de imaginação (ou de realismo) de sagrar-se vencedor de uma demanda judicial e não receber o bem/valor buscado, materializando a famosa expressão popular: “ganhou, mas não levou”.

O que tem gerado a frustação das execuções judiciais? Os motivos são variados, mas há dois que merecem destaque: o devedor não possui recursos/bens para efetuar o pagamento, ou está ocultando patrimônio para não honrar as dívidas que possui. Diante da efetiva inexistência de patrimônio, não há o que ser feito. Porém, é notória a existência de uma “cultura do calote”, em que os chamados devedores profissionais ocultam patrimônio, ostentam um padrão de vida elevado, sem pudores, mas se furtam a pagar o que devem.

Para os casos que se enquadram no último exemplo, o CPC prevê, no artigo 139, inciso IV, a possibilidade de aplicar medidas executivas atípicas, com o intuito de obter o pagamento. É justamente sobre o dispositivo mencionado que o debate recai.

Para analisar a questão, são necessários dois passos: conhecer o disposto no CPC sobre o tema e questionar se o artigo que trata das medidas executivas atípicas está respaldado na Constituição Federal de 1988, o que será feito na próxima seção.

 

  1. O que determina o CPC e o respeito à Carta Magna de 1988

No julgamento realizado pelo STF, encerrado no dia 09 de fevereiro de 2023, cujo relator foi o Ministro Luiz Fux, foram enfatizadas quatro passagens extraídas do CPC, que são fundamentais para entender o debate (STF, 2023 b) [3]:

Art. 1º O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código;

[…]

Art. 8º Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.

[…]

Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: […] IV- determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária; (destaque nosso).

[…]

 

Art. 805. Quando por vários meios o exequente puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o executado.

Parágrafo único. Ao executado que alegar ser a medida executiva mais gravosa incumbe indicar outros meios mais eficazes e menos onerosos, sob pena de manutenção dos atos executivos já determinados. (destaque nosso).

 

Nos debates ocorridos, há o destaque dos dispositivos supracitados e a explicação de pontos fundamentais para que se tenha uma visão sistêmica da discussão (STF, 2023 b) [4]:

  1. Inicialmente, é preciso ressaltar que o direito fundamental à razoável duração do processo, que inclui, sem sombra de dúvidas, a atividade satisfativa, está fulcrado no artigo 5º, inciso LXXVIII, da Carta Federal de 1988 e no artigo 4º do CPC. Diante dessa constatação, como sustentar a inconstitucionalidade de medidas coercitivas que permitem ao magistrado conferir efetividade ao provimento jurisdicional ?;
  2. O dispositivo atacado pela ADI n. 5941 contém uma autorização genérica, diante da impossibilidade de o CPC prever todas as hipóteses possíveis e estabelecer um rol taxativo.

Antes da decisão do STF, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 2019, decidiu sobre o tema:

A adoção de meios executivos atípicos é cabível, desde que, verificando-se a existência de indícios de que o devedor possua patrimônio expropriável, tais medidas sejam adotadas de modo subsidiário, por meio de decisão que contenha fundamentação adequada às especificidades da hipótese concreta, com observância do contraditório substancial e do postulado da proporcionalidade. (destaques nossos) (BRASIL, STJ, 2019). [5].

 

A recente decisão do STF vai na mesma linha, exigindo que as medidas atípicas devem ser avaliadas de forma casuística, garantindo a interpretação da norma e a melhor adequação ao caso concreto, aplicando a medida menos gravosa, por meio da edição de uma decisão motivada.

Em resumo, STF e STJ decidiram que a adoção de meios executivos atípicos será cabível se:

  1. Houver indícios de que o devedor possui patrimônio expropriável;
  2. O uso da medida for subsidiário, depois de exauridas outras medidas menos gravosas ao devedor;
  3. A decisão for motivada de acordo com as peculiaridades do caso concreto;
  4. Houver o indispensável respeito aos direitos fundamentais;
  5. A medida atípica estiver relacionada à pretensão executiva, não sendo uma sanção pela insuficiência do patrimônio do devedor, pois seu intuito é evitar a prática de ocultação de patrimônio para se esquivar do pagamento;
  6. Os princípios do contraditório substancial – ou seja, a garantia de participação ativa dos sujeitos processuais no ato de decidir do julgador, com poder de influência no provimento jurisdicional –, e da proporcionalidade forem respeitados.

Diante de todo o exposto, o Plenário do STF, por maioria, julgou improcedente a ADI n. 5941, assentou constitucionalidade do art. 139, IV, do CPC e aprovou a seguinte tese, proposta pelo Ministro Luiz Fux:

Medidas atípicas previstas no Código de Processo Civil conducentes à efetivação dos julgados são constitucionais, respeitados os artigos 1º, 8º e 805 do ordenamento processual e os direitos fundamentais da pessoa humana (STF, 2023 b). [6]

É provável que essa decisão fomente a utilização das medidas executivas atípicas, desde que preenchidos os requisitos elencados.

 

Conclusão

E os concurseiros? Com base no exposto, acredito que a maioria pode se tranquilizar. A tensão promovida pela divulgação de notícias que afirmaram, sem o devido respaldo, que as pessoas endividadas seriam proibidas de fazer concurso público, não merece prosperar.

O concurso público é, sabidamente, um caminho que pode proporcionar estabilidade financeira, que em geral, muda a realidade vivenciada pelo candidato aprovado, nomeado e empossado.

Também é de amplo conhecimento que os brasileiros enfrentam a precarização de seus vínculos trabalhistas ou o desemprego, que têm perdido poder aquisitivo e que o endividamento da população tem se acentuado, ano após ano. Nesse contexto, o concurso é uma oportunidade considerável.

Diante do endividamento e da inadimplência, o candidato só poderá ser impedido de participar de concursos se preencher os requisitos elencados anteriormente, ou seja, é preciso que haja uma execução judicial e que o concurseiro esteja ocultando patrimônio, esquivando-se do dever de quitar seus débitos. Ademais, a adoção da medida atípica deve estar respaldada nos critérios apresentados na seção 2.

Se você é concurseiro, concentre suas forças no que realmente importa:  estude, dedique-se à conquista do cargo ou emprego público, e não acredite em tudo que lê, ou ouve, sobre uma decisão judicial. Procure uma fonte de informação segura, que no caso em tela, é a própria decisão, disponível no Portal do STF. E se houver dificuldade em compreendê-la, há muitas colunas jurídicas que analisam essas decisões com responsabilidade e qualidade.

 

Referências:

[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). ADI 5941. Relator: Ministro Luiz Fux, Plenário do STF, julgada em 09/2/2023. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5458217. Acesso em: 01 mar. 2023.

[2] MOLLICA, Rogério. A constitucionalidade das medidas executivas atípicas. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/cpc-na-pratica/381709/a-constitucionalidade-das-medidas-executivas-atipicas. Acesso em: 02 mar. 2023.

[3] [4] [6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Informativo 1082ADI 5941. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/textos/verTexto.asp?servico=informativoSTF. Acesso em: 03 mar. 2023.

[5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). REsp n. 1.788.950/MT, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 23/4/2019, DJe de 26/4/2019. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp. Acesso em: 01 mar. 2023.

 

 

 

Colunista

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Roberta Cruz da Silva
Doutora em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Mestre e Bacharela em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professora da Universidade Católica de Pernambuco (graduação e especialização); e da pós-graduação do Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS). Autora e coautora de diversos artigos científicos e livros jurídicos. Pesquisadora do Grupo GEDA/UNICAP/CNPQ. Advogada.

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