Honorários sucumbenciais: natureza, titularidade e finalidade dúplice
Por Lúcio Delfino*
I.
Não faz mais sentido tentar compreender a verba honorária sucumbencial a partir do instituto da responsabilidade civil. Como se sabe, o papel da reparação civil é reintegrar o prejudicado àquela situação patrimonial anterior, pelo menos tanto quanto possível. Daí se afirmar que a responsabilidade civil corresponde ao dever que alguém adquire de reparar o prejuízo decorrente da violação de outro dever jurídico, ou seja, trata-se de um dever jurídico sucessivo que surge para recompor o dano decorrente da violação de um dever jurídico originário (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 22).
É feliz a definição acima por compreender as duas feições que lastreiam o instituto. Qualquer que seja a fundamentação imposta pela lei para a análise de um caso concreto – culpa ou risco –, a verdade é que, ao se configurar a responsabilidade civil do agente, necessariamente terá havido a transgressão de um dever jurídico. A culpa e o risco são fundamentos que, conforme a circunstância, um ou outro será levado em consideração pelo intérprete no momento de se julgar a causa. Sendo a culpa indispensável, o juiz deverá examinar, antes de decidir, se há nos autos provas indicando a sua configuração; se a lei, contudo, exigir a “teoria do risco”, o magistrado irá desconsiderar a culpa, devendo julgar procedente o pedido independentemente de sua ocorrência, desde que presentes os demais requisitos.
De maneira geral – levando-se em conta tanto a responsabilidade subjetiva como a objetiva –, são três os pressupostos necessários à configuração da responsabilidade civil: i) conduta, comissiva ou omissiva, violadora de dever jurídico primário (com ou sem culpa, conforme o exigido em lei); ii) dano; e iii) nexo de causalidade entre os dois primeiros. Ora, os honorários advocatícios sucumbenciais, com o advento do EAOAB, perderam a sua originária natureza ressarcitória. Quer dizer, antes tinham por objetivo indenizar a parte vencedora por conta dos gastos que teve com a contratação de advogado, mas depois, porque não mais destinados à parte vencedora, e sim ao advogado dela, frente a essa mudança de titularidade, a sua feição trasmudou-se para remuneração (= recompensa, retribuição, rendimento). Em suma: não se indenizam danos a partir da verba honorária prevista no art. 85 do CPC/2015.
Esmiuçando: CPC/1939 e CPC/1973 (em sua redação inicial) destinavam à parte vencedora a verba honorária sucumbencial, que até então possuía natureza ressarcitória. Prestava-se ela, como dito, a indenizar (= compensar, reparar, reembolsar) o litigante vencedor por conta dos gastos que teve com a contratação de advogado. Tudo mudou com a publicação do EAOAB, que impingiu natureza diversa aos honorários sucumbenciais, de modo que, a partir dali, tornaram-se remuneratórios, não mais tendo por titular a parte vencedora, mas exclusivamente o seu advogado (EAOAB, arts. 22 e 23). O CPC/2015 seguiu idêntico caminho: a sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor (CPC/2015, art. 85, caput), sendo devidos, cumulativamente, na reconvenção, no cumprimento de sentença, provisório ou definitivo, na execução, resistida ou não, e nos recursos interpostos (CPC/2015, art. 85, §1º).[1] Mais: os honorários sucumbenciais (a exemplo dos contratuais), constituem direito autônomo do advogado, têm natureza alimentar, possuindo os mesmos privilégios dos créditos oriundos da legislação do trabalho, vedada a compensação em caso de sucumbência parcial (CPC/2015, art. 85, §14).[2]
II.
Os honorários sucumbenciais são devidos, em rigor, pelo simples fato objetivo da derrota (CPC/2015, art. 85 – “a sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor”). Logo, pouco importa a ocorrência ou não de um ilícito para que os honorários sucumbenciais sejam devidos, o que só reforça o equívoco de se insistir em tentar compreendê-los a partir de parâmetros emprestados do instituto da responsabilidade civil. Afinal de contas, é direito de todos o acesso à jurisdição, bem assim o exercício da ampla defesa e do contraditório, sendo absurdo enxergar ilicitude por parte de quem ingressou em juízo ou se defendeu contra uma demanda que lhe foi endereçada – excetuado, por óbvio, eventual abuso das garantias acesso à justiça e ampla defesa.
A regra geral é simples: quem perde deve pagar a verba honorária ao advogado da parte vencedora (= fato objetivo da derrota). E ela se justifica, prioritariamente, no ideal de remunerar o profissional da advocacia, que é, segundo o constituinte, indispensável à administração da justiça – aliás, é precisamente essa relevância da atividade advocatícia, reconhecida pela lei e Constituição, o fundamento normativo-constitucional das regras que atribuem a titularidade dos honorários sucumbenciais ao advogado da parte vencedora, com vistas a remunerá-lo de maneira honrada e adequada.
Prevalece, porém, posicionamento em linha diversa. Carrilho Lopes, por exemplo, advoga que a atribuição legislativa da titularidade dos honorários ao advogado (CPC/2015, art. 85, caput), que fez deles “um item de sua remuneração”, não chega a superar a construção teórica que fundamenta o direito à verba honorária sucumbencial na responsabilidade civil objetiva e na ideia de causalidade (CARRILHO LOPES, Bruno Vasconcelos. Comentários ao Código de Processo Civil. Das partes e dos procuradores. v. II. São Paulo: Saraiva, 2017. pp. 121-122). Com o devido respeito, trata-se de entendimento desapegado daquilo que impõe a ordem jurídica, sem justificativa dogmática, mas que permanece vivo em razão do ambiente amplamente favorável ao ativismo judicial que pulula no Brasil.[3]
III.
Para além disso, os honorários sucumbenciais, malgrado se prestem prioritariamente a remunerar o advogado da parte vencedora, têm outrossim o escopo secundário de incitar o exercício da litigância responsável. E o legislador bem conhece essa realidade, ele e o próprio advogado, ambos que realizam os cálculos que lhes cabem e interessam, isto é, o primeiro com o intuito de enxugar a máquina judiciária de demandas chicaneiras ou dotadas de frágil base legal, o último para medir os riscos de seus clientes. Trata-se, portanto, de um mecanismo inteligente que ajuda a conter abusos oriundos do perfil (benevolente e altruísta) que o ordenamento jurídico brasileiro conferiu ao direito fundamental de acesso à justiça (CF/1988, art. 5º, XXXV).
Regras que exemplificam essa finalidade secundária da verba honorária sucumbencial: i) o juiz deve condenar o litigante de má-fé a pagar multa, a indenizar a parte contrária e a arcar com os honorários advocatícios e com todas as despesas efetuadas (CPC/2015, art. 81); ii) os chamados honorários recursais (CPC/2015, art. 85, §11) – nesse sentido: STJ, Edcl no REsp nº 1.714.952, 2ª Turma, rel. Min. Herman Benjamin, julgamento: 07.02.2019, disponível em: www.stj.jus.br; iii) a redução pela metade dos honorários sucumbenciais quando o réu reconhecer a procedência do pedido e, simultaneamente, cumprir por inteiro a prestação a que se obrigou (CPC/2015, art. 90, §4º); iv) a fixação de honorários advocatícios sempre que o executado, em cumprimento de sentença, não efetuar tempestivamente o pagamento da quantia devida (CPC/2015, art. 523, §3º) – em reforço, consultar: ASSIS, Araken. Processo Civil Brasileiro. v. II. Tomo I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. pp. 404-409.
IV.
Conclusões:
- Juízes e tribunais (e a própria doutrina) têm construído, não é de hoje, posicionamentos que ressalvam ou mitigam a regra prevista pelo art. 85, caput, do CPC/2015, em desconsideração à natureza, titularidade e finalidade bipartite dos honorários sucumbenciais.[4]
- Trata-se de equívoco que, em boa medida, situa-se no fato de se pensar e trabalhar a verba honorária sucumbencial com esteio na responsabilidade civil. É problema sério que, em perspectiva macro, recrudesce e exorta o fenômeno de desapreço à ordem jurídica por órgãos judiciais, cujo papel é (deveria ser) decidir casos concretos a partir das leis vigentes.
- No atual contexto, em que acomodações, remendos, relativizações e até o absoluto desdém à legalidade se tornou prática corrente, sobretudo por parte dos tribunais superiores, com a velha e excelsa humildade republicana apequenando-se miseravelmente diante do desejo desenfreado de fazer diferente ou de decidir segundo o que se entende por “justo”,[5] a separação de poderes perdeu pujança e naufragou, débil e escrachada, num mar de retóricas e boas intenções.
- É a morte trágica de uma garantia constitucional (= separação de poderes) forjada no aço da prudência e da liberdade, desenvolvida para constranger os representantes do poder e frear seus excessos. Manipulada e abandonada que foi, sem tréguas e de modo contundente, tornou-se uma cláusula plástica, vergável, dúctil, ausente qualquer resquício daquela sua essência nativa, tão bem refletiva pelo art. 60, § 4º, III, da Constituição.
- Já numa perspectiva micro, igualmente relevante, sobra a lamentável constatação de que os advogados permanecem, a despeito do esforço legislativo em sentido contrário, sendo vilipendiados por uma jurisprudência que teima em enxotar o seu direito de receber honorários sucumbenciais (= verba alimentar) consoante a métrica prevista em lei.
Notas e Referências:
*Advogado. Doutor em Direito pela PUC-SP. Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro. Presidente da Associação Brasileira de Direito Processual – ABDPro.
[1] Para o exame da evolução histórica dos honorários do advogado, sugere-se consultar: CAHALI, Yussef Said. Honorários advocatícios. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
[2] É fácil concluir que as condenações em honorários sucumbenciais (CPC/2015, art. 85) e ao reembolso de despesas processuais antecipadas (CPC/2015, art. 82, §2º) estão sitiadas em categorias distintas, a primeira traduzindo-se em verba remuneratória, ao passo que a última detém natureza ressarcitória.
[3] É papel do legislador, e unicamente dele, atento à rica casuística da praxe forense, trazer ressalvas à regra geral da condenação honorária pelo fato objetivo da derrota, de modo que situações que violem a razoabilidade sejam devidamente tuteladas pela ordem jurídica. É o que se vê, para ilustrar, em casos de perda do objeto (CPC/2015, art. 85, §10), quando os honorários serão devidos por quem deu causa ao processo (e não por aquele que perdeu a demanda).
[4] Merece destaque, aliás, o Superior Tribunal de Justiça, que insiste, por exemplo, em alargar o alcance normativo do critério da equidade para ajustar, a partir de juízos particulares, a fixação de verbas honorárias sucumbenciais.
[5] Confira-se a lição de Eduardo José da Fonseca Costa: “Os instrumentalistas sempre se utilizam de expressões como «processo justo», «acesso à ordem jurídica justa», «justiça equitativa» e «tutela jurisdicional justa»; contudo, como bem apontado por RAFAEL GIORGIO DALLA BARBA, eles jamais enfrentaram os desafios metafísico, epistemológico e semântico impostos pela Metaética às noções de justiça e de «processo justo»” (FONSECA COSTA, Eduardo José da. Os quinze inimigos da imparcialidade. Juridicamente, 09 de out. 2023. Disponível em: <www.juridicamente.info>. Acesso: 25/10/2023. Ver também: CARVALHO FILHO. Antônio. A desconstrução do processo justo. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2022; DELFINO, Lúcio. O processo é um instrumento de justiça? (desvelando o projeto instrumentalista de poder). Empório do Direito, 2019. Disponível em: www.emporiododireito.com.br. Acesso em: 18 dez. 2020.