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ICMS-importação, as entidades beneficentes de assistência social e a resistência da administração tributária

Boa parte dos ordenamentos jurídicos contemporâneos privilegiam o princípio da igualdade tributária. De acordo com esse postulado, não se admite privilégios fiscais relacionados à classe, religião ou raça. Sua concretização ocorre mediante o corolário da generalidade, segundo o qual todos devem contribuir para o financiamento do Estado[1].

Nesse sentido, as imunidades tributárias representam exceções à regra, pois dispensam determinadas pessoas do dever de suportar os custos da coletividade. Essa diferenciação exige justificação. Deve haver fundamento jurídico para o afastamento da incidência dos impostos sobre essas pessoas.

Há um senso comum de que a justificativa seria a necessidade de proteger algum valor caro à sociedade. Esses valores estariam relacionados às liberdades e garantias fundamentais, o que autorizaria o tratamento desigual. Contudo, conforme esclarece Schoueri, essa fundamentação não é suficiente. Ela não explica por que outros valores também fundamentais não foram abarcados pelas regras imunizantes. Além disso, o autor argumenta que a tributação não é, necessariamente, um óbice ao exercício desses direitos. Basta que ela seja módica.

Então o autor apresenta outra justificativa, que não exclui a anterior, mas a complementa: a ausência de capacidade contributiva. As pessoas mencionadas no art. 150, inciso VI, alínea “c” da Constituição Federal aplicam todos os ganhos financeiros na consecução dos seus objetivos sociais. Os ingressos positivos dessas entidades estão, desde o seu recebimento, comprometidos para atender a finalidades previamente estabelecidas. Não há qualquer disponibilidade dos recursos por parte das pessoas previstas no referido dispositivo. No caso das entidades beneficentes de assistência social essa justificativa é ainda mais clara. Elas realizam funções que são responsabilidade do Estado e, por atuarem no setor público, não há que se falar em capacidade contributiva[2].

Essa situação não se altera quando uma entidade beneficente de assistência social importa determinado bem para execução de sua atividade fim. Ela continua sem denotar qualquer capacidade contributiva apta a ser tributada pelo imposto. Além disso, o produto importado servirá para atender funções públicas, protegidas pelo ordenamento jurídico.

Esse entendimento é compartilhado pelo Supremo Tribunal Federal – STF. A jurisprudência consolidada dessa Corte não admite a incidência do ICMS-importação sobre bens adquiridos por entidade beneficente de assistência social, aplicados na execução de sua atividade fim. É o que prevê a ementa parcialmente transcrita abaixo, relativa a acórdão publicado em 10/2/2022[3]:

DIREITO TRIBUTÁRIO. AGRAVO INTERNO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. ICMS-IMPORTAÇÃO. INSTITUIÇÕES DE EDUCAÇÃO E DE ASSISTÊNCIA SOCIAL SEM FINS LUCRATIVOS. IMUNIDADE. REQUISITOS. CONTROVÉRSIA DE ÍNDOLE INFRACONSTITUCIONAL.

1. O acórdão recorrido está alinhado ao entendimento do Supremo Tribunal Federal no sentido de reconhecer a imunidade a que alude o art. 150, VI, c, da Constituição Federal quanto ao ICMS incidente na importação de bens destinados à execução de atividade fim das entidades mencionadas pelo dispositivo constitucional.

Apesar do posicionamento reiterado do STF, alguns Estados mantém o entendimento de que a imunidade não alcança o ICMS-importação. É o caso do Estado de São Paulo, que interpreta literalmente o § 4° do art. 150 da Constituição Federal[4] e defende que a imunidade alcança exclusivamente o patrimônio, a renda e os serviços dessas entidades.

Como o ICMS onera a circulação de mercadorias, não seria possível a extensão da imunidade constitucional, que se limitaria aos signos presuntivos de riqueza mencionados imediatamente acima. Esse posicionamento consta na resposta à consulta n° 24255, de 3/9/2021:

ICMS – Instituição de educação e assistência social – Imunidade prevista no artigo 150, inciso VI, alínea “c” da Constituição Federal de 1988 – Incidência.

I A imunidade constitucional estabelecida pelo artigo 150, inciso VI, alínea “c”, da Constituição Federal é prevista apenas para as hipóteses em que os impostos recaem diretamente sobre o patrimônio, a renda e os serviços das instituições sem fins lucrativos.

II O ICMS, afora as prestações de serviços de transporte intermunicipal e interestadual e de comunicação, tem como objeto as operações relativas à circulação de mercadorias, não se enquadrando, assim, no conceito de impostos sobre patrimônio, renda e serviços.

Contudo, a Câmara Superior do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo – TIT afasta as autuações realizadas com base nesse fundamento. Inclusive, no julgamento do AIIM 4060786-0, esse tribunal administrativo consignou que os termos patrimônio, renda e serviços devem ser interpretados de forma ampla. Essa disposição deve abranger todos os impostos relacionados a situações econômicas que possam, de alguma forma, resultar em exigências tributárias.

Se os impostos visam alcançar capacidade contributiva, não é possível exigi-los daqueles que não a possuem. E isto independe de o imposto incidir sobre a renda, o patrimônio ou os serviços. Na verdade, não há propriamente tributação sobre o patrimônio e sobre serviços. O que há é apenas tributação sobre a renda. O patrimônio nada mais é do que a renda poupada; e a contratação de serviços a renda consumida[5]. Ocorre que renda pressupõe a existência de alguma riqueza, o que, como visto, não está presente nas entidades beneficentes de assistência social. Por isso a impossibilidade de exigência de qualquer imposto e não apenas aqueles mencionados expressamente pelo dispositivo constitucional.

Inclusive, a Câmara Superior do TIT possui precedentes favoráveis aos contribuintes posteriores à resposta à consulta 24255, de 3/9/2021. É o que se verifica no julgamento dos AIIM 4060788-4, 4060794-0 e 4060879-7, todos publicados entre 24/11/2021 e 26/11/2021.

Essa reação do tribunal administrativo é fundamental. Ela permite que o órgão atenda à sua missão institucional, pois garante a segurança jurídica e permite a pacificação dos conflitos entre fisco e contribuintes, na medida em que acata os posicionamentos da mais alta Corte do país. Com isso, aumenta a previsibilidade dos particulares e encerra contencioso infrutífero e prejudicial para todas as partes.

Por fim, é importante afastar argumento recorrente de que o reconhecimento da imunidade do ICMS-importação implicaria discriminação em relação às entidades beneficentes que optam por adquirir bens no mercado interno e, por isso, arcam com o custo do imposto no preço da mercadoria. Na aquisição do produto nacional, a entidade beneficente é contribuinte de fato, não de direito. Ela não compõe a relação jurídica e não possui legitimidade para questionar a tributação.

Além disso, não é possível afirmar que a entidade necessariamente arcará com o ICMS incidente na aquisição do produto nacional. O fenômeno da “translação” do imposto depende da elasticidade da oferta e demanda de determinado mercado. Apenas no caso concreto é possível verificar se o consumidor suportou, ou não, o ônus tributário. A definição de quem arcará com o custo fiscal é dada pela Economia, e não pelo Direito. Daí a necessidade, para fins de imunidade, de considerar apenas o sujeito previsto constitucionalmente como contribuinte e beneficiário da imunidade. Inclusive, esse é o entendimento do STF, firmado em sede de repercussão geral (RE n° 08.872-MG, Tribunal Pleno, Min. Rel. Dias Toffoli, DJe do dia 27/9/2017).

Com esse exemplo, espera-se que a resistência da administração tributária em aplicar entendimentos consolidados das Cortes superiores do país seja posta de lado. A manutenção de posições fiscalistas em temas sabidamente improcedentes não atende ao dever de moralidade, que deve nortear a atuação do Estado. O interesse público é o interesse da coletividade, e não do erário. E a sociedade somente será privilegiada no Direito Tributário se os agentes de arrecadação assumirem uma postura de cooperação, e não de beligerância.

 

Referências e notas:

Obs: a imagem utilizada nesta publicação é “O cobrador de impostos”, Pieter Brueghel.

[1] Sobre a análise do princípio da igualdade tributária em diversos ordenamentos jurídicos: UCKMAR, Victor. Principi comuni do diritto costituzionale tributario. CEDAM. Casa Editrice dott. Antonio Milani. Padova. 1959. p. 45 e ss.

[2] SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário / Luís Eduardo Schoueri. – 9. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

[3] STF, Ag. REG. no recurso extraordinário com agravo 1.332.581/RS. Min. Rel. Roberto Barroso. Primeira Turma. Acórdão publicado em 10/2/2022.

[4] Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: […]

VI – instituir impostos sobre: […]

c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei; […]

§ 4º – As vedações expressas no inciso VI, alíneas “b” e “c”, compreendem somente o patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas.

[5] TIPKE, Klaus. Sobre a Unidade da Ordem Jurídica Tributária. Tradução de Luís Eduardo Schoueri. In Direito Tributário – Estudos em homenagem a Brandão Machado. Coordenadores: Luís Eduardo Schoueri e Fernando Aurélio Zilveti. Dialética. São Paulo – 1998. p. 63.

Colunista

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Gabriel Moreira
Graduado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e Pós-graduando em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Advogado.

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