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Informações públicas podem ser protegidas por sigilo de 100 anos? Uma reflexão sobre a cultura do sigilo e seus nefastos efeitos sobre a Democracia

Tem-se observado, sobretudo nos últimos anos, um movimento global de cobrança, cada vez mais acentuado, em relação à necessidade de implementação de mecanismos que fomentem a transparência na gestão pública, com destaque para a utilização de recursos. O debate sobre transparência tem se tornado um tema central na agenda de quase todas as organizações (HOOD, 2001) [1].

Essa postura da sociedade é fundamental quando se almeja a consolidação de uma ordem democrática.

A demanda acentuada por transparência, segundo Zuccolotto e Teixeira (2019) [2], está baseada em alguns fatores:

1.transparência é uma das reivindicações morais fundamentais nas sociedades democráticas, em que o direito do povo de ter acesso às informações é amplamente aceito;

2.transparência é uma medida prática para reduzir a improbidade administrativa, sobretudo a corrupção, agindo como um elemento de dissuasão do comportamento corrupto, uma vez que promove a constante vigilância. Ademais, pode servir como uma estratégia para corrigir baixa performance (ineficiência);

3.transparência tem um efeito positivo na confiança e na accountability (controle, fiscalização, responsabilização, prestação de contas), permitindo ao cidadão monitorar a qualidade dos serviços públicos, dos gastos, dentre outras situações de interesse coletivo.

Quando falamos em transparência, costumamos associá-la ao princípio da publicidade, previsto no artigo 37, caput, da Constituição Federal de 1988. Mas, embora estejam fortemente relacionadas, publicidade e transparência não são expressões sinônimas.

O princípio da publicidade retrata um direito fundamental do cidadão, o dever estatal de promover amplo e livre acesso à informação pública, para que seja possível o controle social. A dispensa de publicidade é exceção, nas situações de sigilo expressamente contempladas na Constituição Federal de 1988, quando for imprescindível à segurança da sociedade e do Estado (art. 5º, XXXIII) ou indispensável à defesa da intimidade ou interesse social (art. 5º, LX).

A regra é a publicidade oficial das atividades estatais. Inclusive, publicidade oficial é condição de eficácia dos atos dos Poderes Públicos que tenham que produzir efeitos externos, como contratos administrativos, resultados de concursos públicos, dentre outros. Nessa mesma linha, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000), em seu art. 48, determina que deve ser conferida ampla divulgação ao planejamento e execução da gestão fiscal.

Nas palavras Rocha (1994, p.240) [3], publicidade:

[…]confere certeza às condutas estatais e segurança aos direitos individuais e políticos dos cidadãos. Sem ela, a ambiguidade diante das práticas administrativas conduz à insegurança jurídica e à ruptura do elemento de confiança que o cidadão tem que depositar no Estado.

 

Entretanto, é preciso distinguir publicidade e transparência. Para tanto, reproduzo os ensinamentos de Fabrício Mota (2018, s/p.) [4]:

Publicidade e transparência não são sinônimos. O princípio da publicidade, a propósito, não se confunde com a regra que impõe a publicidade oficial. Dessa forma, a publicidade na imprensa oficial é requisito de eficácia dos atos da administração pública, mas não cumpre as demais exigências jurídicas do princípio da publicidade. […]

A publicidade oficial, por si só, não é capaz de garantir a difusão e o conhecimento da informação. […] A difusão da informação deve ser feita da forma mais ampla possível e assegurada com a utilização dos meios adequados, dependendo de seu objetivo e de seus destinatários. […] para que uma informação possa ser efetivamente apreendida, é necessário que seja transmitida em linguagem adequada ao pleno entendimento por parte do receptor da informação

[…]As informações devem ser repassadas com clareza e objetividade para que se possa reforçar o controle e a participação democrática da administração. […]. Entende-se a publicidade como característica do que é público, conhecido, não mantido secreto. Transparência, ao seu turno, é atributo do que é transparente, límpido, cristalino, visível; é o que se deixa perpassar pela luz e ver nitidamente o que está por trás. A transparência exige não somente informação disponível, mas também informação compreensível (destaques nossos na última frase).

 

No Brasil, é perceptível a insuficiência desses mecanismos, mas temos um divisor de águas em nosso ordenamento jurídico, que determina a obrigatoriedade de divulgação das informações de interesse coletivo, de forma acessível, nos sites oficiais dos órgãos e entidades públicas: a Lei de Acesso à Informação (12527/2011).

O acesso à informação pública está inscrito, particularmente, no inciso XXXIII do artigo 5º da Carta Magna de 1988, regulamentado pela Lei de Acesso à Informação:

[…] todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.

 

O país está em um estágio transicional, em que algumas medidas já foram criadas, mas há ainda desafios a serem enfrentados. É necessário não só que as informações sejam publicizadas, mas que o sejam de forma efetiva e não tendenciosa, para que todos possam compreender o conteúdo apresentado. Essa clareza deve considerar a realidade socioeconômica do país, pois considerável parcela da população possui baixa escolaridade, o que dificulta o entendimento de termos técnicos.

Ainda que com dificuldades a serem superadas, percebemos avanços ao longo dos anos: podemos consultar o Portal da Transparência de órgãos e entidades públicas, acessar o orçamento, as licitações e contratos em curso, o contracheque dos agentes públicos. Por diversas vezes, utilizei a Plataforma Fala.Br e solicitei à Controladoria Geral da União (CGU) dados sobre processos administrativos, sendo prontamente atendida. O mesmo acontece quando solicito informações ao Tribunal de Contas de Pernambuco (TCE/PE). Em geral, órgãos e entidades têm disponibilizado as informações no prazo legal, sem criar dificuldades de acesso.

Entretanto, como nem tudo são flores, temos assistido a alguns comportamentos de autoridades públicas que agem sem a devida transparência. Alegando “respeito à vida privada” (???) privam (a repetição foi proposital) o cidadão brasileiro de seu direito à informação, sonegam dados, decretam sigilo sobre reuniões em que se discute como serão gastos recursos públicos, aqueles que saem do nosso bolso e mantém a máquina administrativa em funcionamento.

É permitido decretar sigilo sobre atos administrativos/governamentais? Sim, mas conforme previsto na Lei de Acesso à informação, essas situações são excepcionais, não podem ser um comportamento padrão. Ademais, para classificar uma informação como reservada, secreta ou ultrassecreta, é preciso enquadrá-la em uma das hipóteses legais previstas adiante:

Art. 23. São consideradas imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado e, portanto, passíveis de classificação as informações cuja divulgação ou acesso irrestrito possam:

I – pôr em risco a defesa e a soberania nacionais ou a integridade do território nacional;

II – prejudicar ou pôr em risco a condução de negociações ou as relações internacionais do País, ou as que tenham sido fornecidas em caráter sigiloso por outros Estados e organismos internacionais;

III – pôr em risco a vida, a segurança ou a saúde da população;

IV – oferecer elevado risco à estabilidade financeira, econômica ou monetária do País;

V – prejudicar ou causar risco a planos ou operações estratégicos das Forças Armadas;

VI – prejudicar ou causar risco a projetos de pesquisa e desenvolvimento científico ou tecnológico, assim como a sistemas, bens, instalações ou áreas de interesse estratégico nacional;

VII – pôr em risco a segurança de instituições ou de altas autoridades nacionais ou estrangeiras e seus familiares; ou

VIII – comprometer atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações. (destaques nossos).

 

Ainda que a informação se encaixe em uma das hipóteses, o sigilo será decretado por um prazo determinado:

Art. 24. A informação em poder dos órgãos e entidades públicas, observado o seu teor e em razão de sua imprescindibilidade à segurança da sociedade ou do Estado, poderá ser classificada como ultrassecreta, secreta ou reservada.

§ 1º Os prazos máximos de restrição de acesso à informação, conforme a classificação prevista no caputvigoram a partir da data de sua produção e são os seguintes:

I – ultrassecreta: 25 (vinte e cinco) anos;

II – secreta: 15 (quinze) anos; e

III – reservada: 5 (cinco) anos.

§ 2º As informações que puderem colocar em risco a segurança do Presidente e Vice-Presidente da República e respectivos cônjuges e filhos(as) serão classificadas como reservadas e ficarão sob sigilo até o término do mandato em exercício ou do último mandato, em caso de reeleição. (destaques nossos)

Tem-se, ainda, o artigo 31, que se refere a informações de caráter pessoal, e que tem sido utilizado, indevidamente, para decretar sigilo sobre informações públicas:

Art. 31. O tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais.

§ 1º As informações pessoais, a que se refere este artigo, relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem:

I – terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de 100 (cem) anos a contar da sua data de produção, a agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a que elas se referirem; […]

 

Conhecendo o texto legal, cabe uma reflexão: reuniões que discutem como serão utilizados os recursos do Ministério da Educação são protegidas por sigilo? De 100 anos? Não quero ter acesso ao número do CPF, ao número do celular, aos dados bancários dos presentes, ao e-mail, mas faço questão de saber da pauta de reuniões que tratam da liberação de recursos públicos e os encaminhamentos após essas reuniões, sobretudo na área de educação.

Não podemos admitir que a resposta aos pedidos de informação seja “daqui a 100 anos você saberá?” A “piada” é um escárnio, não tem a menor graça, representa um retrocesso inaceitável, é um símbolo de desrespeito à sociedade.

Para que o povo possa exercer a interação com os seus representantes e controlá-los, a transparência de seus atos emerge como condição necessária. Bobbio (2000) [5] destaca que um dos eixos dos regimes democráticos é que todas as decisões e atos dos governantes devem ser conhecidos pelo povo.

Fica a reflexão: Por que temer a divulgação de informações públicas? A secular cultura popular afirma, sabiamente: “quem não deve, não teme”.

 

Notas e Referências:

[1]HOOD, C. Transparency. In P. B. Clarke & J. Foweraker (Eds.). Encyclopedia of Democratic Thought. Londres: Routledge, 2001.

[2]ZUCCOLOTTO, Robson. TEIXEIRA, Marco Antônio Carvalho. Transparência: aspectos conceituais e avanços no contexto brasileiro. Brasília: Enap, 2019.

[3]ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios Constitucionais da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994.

[4]MOTA, Fabrício. Publicidade e transparência são conceitos complementares. In: Consultor Jurídico (Conjur). Disponível em:  https://www.conjur.com.br/2018-fev-01/interesse-publico-publicidade-transparencia-sao-conceitos-complementares

[5]BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.

 

Colunista

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Roberta Cruz da Silva
Doutora em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Mestre e Bacharela em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professora da Universidade Católica de Pernambuco (graduação e especialização); e da pós-graduação do Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS). Autora e coautora de diversos artigos científicos e livros jurídicos. Pesquisadora do Grupo GEDA/UNICAP/CNPQ. Advogada.

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