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Isenção heterônoma da Lei nº 14.199/2021: compatibilidade com o princípio da capacidade contributiva ou inconstitucionalidade?

Nos nossos primeiros dois textos para esta coluna, o princípio da capacidade contributiva foi tema sempre lembrado, porquanto inerente a um Estado de Bem-Estar Social que preza por um sistema tributário condizente com o ideal de justiça fiscal.

Mas, como todo princípio constitucional – considerados como mandados de otimização por Robert Alexy[1] -, não tem aplicabilidade absoluta, devendo verificar se colide com outro princípio constitucional no caso concreto.

O tema central deste breve artigo é a análise do art. 2º, da Lei nº 14.199/2021, especificamente na parte em que acrescenta o art. 68-A à Lei 8.212/1991, buscando analisar a regularidade da inserção deste texto normativo no ordenamento jurídico pátrio, à luz do princípio da capacidade contributiva e de outros princípios tributários previstos na Constituição Federal.

A Lei nº 14.199/2021 previu em seu art. 2º:

 

Art. 2º A Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, passa a vigorar com as seguintes alterações, numerado o parágrafo único do art. 76 como § 1º:

 

‘Art. 68-A. A lavratura de procuração pública e a emissão de sua primeira via para fins exclusivos de recebimento de benefícios previdenciários ou assistenciais administrados pelo INSS são isentas do pagamento das custas e dos emolumentos.’ (…)”

 

Em uma primeira leitura, poder-se-ia acreditar que o texto legal acima, acrescentado à Lei nº 8.212/91, estaria em perfeita harmonia com o ordenamento jurídico brasileiro. Isto porque, no momento em que a lei prevê que a lavratura e emissão da primeira via de procuração pública para fins exclusivos de recebimento de benefícios previdenciários e assistenciais pelo INSS é isenta de pagamento de emolumentos e custas, estar-se-ia trazendo um benefício para pessoas carentes.

Geralmente quem requere benefícios assistenciais[2], pela própria natureza deste, são pessoas com pouquíssima capacidade contributiva, necessitando destes benefícios para sua própria sobrevivência. O mesmo pode ser entendido em relação à boa parte das pessoas que recebem benefícios previdenciários.

Considerando este fato, numa primeira análise, poder-se-ia afirmar que o art. 68-A, da Lei 8.212/91, estaria em conformidade com o princípio da capacidade contributiva, de modo que dispensou a obrigação legal de pagar tributo em relação a pessoas de baixa renda.

Mas será que esta análise é suficiente para afirmarmos que esta norma é constitucional? Nos parece que não. E para explicar melhor este ponto de vista, iremos aprofundar um pouco mais nos institutos de direito tributário.

Sigamos.

Para que nasça a obrigação de pagar tributo, devemos passar por algumas etapas: primeiro deve haver uma regra-matriz de incidência tributária, onde existirá uma hipótese de incidência (no antecedente normativo tributário)[3], que preverá abstratamente um fato hábil a gerar a obrigação de pagar determinado tributo; acontecido o fato no mundo real, diz-se que houve a subsunção do fato à norma, nascendo a obrigação tributária principal [obrigação de pagar tributo]. Após isto, para que o Fisco possa efetivamente cobrar o tributo, faz-se necessário constituir o crédito tributário com o lançamento, mas isso é assunto para outro texto.

Seguindo nessa perspectiva relacionada ao pagamento de tributo e ao nascimento da obrigação tributária, no Direito Tributário estuda-se também as hipóteses de não-incidência tributária, que podem ser classificadas em não-incidência pura e simples [quando algo não é objeto de regra-matriz de incidência tributária; não há interesse do Estado em tributar determinado fato]; imunidade tributária [considerada como uma não-incidência constitucionalmente qualificada, de modo que toda previsão constitucional de que não pode incidir um tributo sobre determinada pessoa ou situação, é uma imunidade tributária]; e isenção.

A isenção é conhecida como uma dispensa legal de pagar tributo, devendo sempre ser decorrente de lei em sentido formal[4], pois, caracteriza-se como uma renúncia de receita [em linguagem de direito financeiro].

No caso da isenção, há a regra-matriz de incidência tributária, prevendo determinado fato como suficiente e capaz de ser um fato gerador da obrigação tributária principal, mas vem uma lei posterior que dispensa determinada pessoa ou situação do pagamento do tributo. Nasce a obrigação tributária, mas não há a obrigatoriedade do pagamento do tributo.

Mas por que eu estou falando tudo isso sobre direito tributário, quando o art. 2º Lei nº 14.199/2021, que acrescentou o art. 68-A à Lei nº 8.212/91, fala em isenção emolumentos e custas cartorárias?

Porque referidos emolumentos e custas cartorárias enquadram-se no conceito de taxas, espécie tributária prevista na classificação pentapartite adotada pelo Supremo Tribunal Federal – já abordada no nosso segundo texto desta coluna.

E qual seria o problema em uma lei federal prever uma isenção em relação a taxas cobradas pelos cartórios?

O grande problema é que os cartórios são serventias extrajudiciais vinculadas ao Poder Judiciário Estadual e, portanto, são tributos de competência dos Estados-Membros.

A Constituição Federal traz uma série de limitações ao poder de tributar, e uma delas é a vedação às isenções heterônomas, prevista no art. 151, III:

 

Art. 151. É vedado à União:

(…)

III – instituir isenções de tributos da competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios.

 

Esta vedação está intimamente atrelada ao princípio constitucional do Pacto Federativo, de modo que busca evitar que a União interfira na organização orçamentária dos demais entes federados, o que acarretaria, consequentemente, numa interferência na autonomia do ente tributante [com menos poder financeiro, o ente federado fica cada vez mais dependente de repasse de receitas da União, a qual concentra a maior parte da arrecadação tributária do país].

Deste modo, considerando que a União apresentou uma isenção heterônoma no bojo da Lei nº 14.199/2021, interferindo na organização orçamentária dos Estados-Membros, e em clara afronta ao texto constitucional (ferindo frontalmente a previsão do art. 151, III, CF/88), esta autora posiciona-se no sentido de considerar a norma federal como inconstitucional.

Não obstante ter a consciência de que a isenção em referência seria um benefício para pessoas carentes, de modo a atender aos ideais da capacidade contributiva, existente no art. 145, § 1º, do texto constitucional; a postura mais acertada, no meu ponto de vista, é entender que cabe a cada Estado-Membro analisar a possibilidade de realizar essa renúncia de receita tributária, evitando a interferência de outro ente federado, bem como evitando consequências financeiras prejudiciais à organização orçamentária do ente tributante.

 

Referências:

[1] ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2002.

[2] De acordo com a Constituição Federal, a Seguridade Social abrange os serviços de: Saúde, Previdência Social e Assistência Social (art. 194, CF/88). Os benefícios previdenciários são aqueles pagos a pessoas que contribuíram com o sistema de previdência, com exceção dos segurados especiais rurais, cujo período de carência é contado considerando o tempo trabalhado e não o tempo de contribuição. Diferentemente, os benefícios assistenciais são aqueles pagos para quem não tem condições de contribuir e não tem como prover sua própria subsistência por meio do trabalho. Estes benefícios são pagos de acordo com a comprovação dos requisitos previstos na Lei Orgânica de Assistência Social (Lei nº 8.742/1993).

[3] Estas conceituações sobre regra-matriz de incidência tributária, decorrem de doutrina desenvolvida por Paulo de Barros Carvalho sobre o tema. In.: CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: linguagem e método. 5. ed. São Paulo: Noeses. 2013.

[4] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 41. ed. ver. e atual. São Paulo: Malheiros, 2020. pp.233-235.

Colunista

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Larissa Pinheiro
Mestra em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Especialista em Direito Tributário pelo IBET. Graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Professora na Faculdade do Sertão do Pajeú (AEDAI-FASP), lecionando as disciplinas de Direito Tributário e Direito Processual Civil. Participante do grupo de estudo Moinho Jurídico / UFPE. Membra da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). Advogada no Escritório Larissa Pinheiro Advocacia, onde atua nas áreas de Tributação, Sucessão e Regularização Imobiliária.

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