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Mãe Empregada Pública e Filha com Deficiência – Uma Abordagem à Luz das Normas Internacionais de Direitos Humanos

Sabia que é possível garantir a uma mãe o direito de reduzir sua jornada de trabalho em 50% sem diminuição de salário para acompanhar o tratamento de sua filha com síndrome de Down? Veja como tratados internacionais estão moldando o cenário dos direitos das pessoas com deficiência!

Em recente decisão proferida pela 11ª Turma do Tribunal Regional da Terceira Região, foi acolhido o pleito de redução da jornada para 50%, sem diminuição proporcional da remuneração e sem compensação de horários, por parte de uma empregada pública para acompanhamento do tratamento de sua filha menor, portadora de síndrome de Down.

Na inicial a autora relatou que foi admitida em 2018, para exercer o cargo de Auxiliar de Apoio ao Educando para cumprir jornada de 44 horas semanais e que a sua filha de apenas 1 ano e 9 anos possui síndrome de Down e cardiopatia, necessitando do acompanhamento da mãe para realizar as atividades a fim de propiciar o desenvolvimento da criança.

Postulou a concessão da tutela de urgência a fim de garantir a genitora a redução da carga horária em 50% sem diminuição proporcional da remuneração e sem compensação dos períodos não trabalhados.

O juízo da 22ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte deferiu parcialmente a tutela antecipada requerida pela parte autora, com fulcro nos arts. 98, §2º e §3º da Lei n. 8.112/90, determinando a redução da carga horária em 25%, sem diminuição da remuneração.

A tutela foi ratificada pelo juízo de origem que fundamentou que a ausência de norma infraconstitucional específica não seria capaz de obstar o direito da autora.

Ressaltou a previsão do art.2º do CDPD que estabelece que a recusa à adaptação razoável é considerada forma de discriminação, bem como a decisão do STF que reconheceu no caso do RE 1237867/SP, que a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência possui status equivalente a emenda constitucional e determinou que servidores públicos que sejam pais ou cuidadores legais de pessoas com deficiência têm o direito à redução de jornada sem redução de vencimentos, sendo legítima a aplicação de legislação federal quando a omissão estadual ou municipal viola determinação constitucional.

Interposto recurso ordinário pelas partes, foi dado provimento ao recurso da autora para majorar a redução da jornada para 50% sem prejuízo da remuneração e sem compensação.

Foi destacado no acórdão que a autora demonstrou de forma cabal que a menor necessita de cuidados especiais pela mãe, em razão de ser portadora do cromossomo 31, com consequente atraso no desenvolvimento neupsicomotor, cardiopatias congênitas, entre outros, exigindo tratamento multidisciplinar.

Dentre os fundamentos da decisão, consta a aplicação analógica do parágrafo único do artigo 1º do Decreto 8.368/14, que regula a Lei 12.764/12 referente aos direitos das pessoas com Transtorno do Espectro Autista. Esse decreto estabelece a aplicação da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, promulgado pelo Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009.

 

O referido Decreto n. 6.949/2009 foi promulgado segundo o rito do art. 5, §3º da CF, pelo qual tratados de direitos humanos aprovados por 3/5 de ambas as casas legislativas, em dois turnos, incorporam-se ao direito brasileiro como emendas constitucionais. Assim, o decreto possui status de emenda constitucional.

Na Convenção é reafirmado o superior interesse da criança, bem como versa sobre medidas efetivas para habilitação e reabilitação da pessoa com deficiência, no estágio mais precoce possível, conforme seu art. 26, que possui o seguinte teor:

“1. Os Estados Partes tomarão medidas efetivas e apropriadas, inclusive mediante apoio dos pares, para possibilitar que as pessoas com deficiência conquistem e conservem o máximo de autonomia e plena capacidade física, mental, social e profissional, bem como plena inclusão e participação em todos os aspectos da vida. Para tanto, os Estados Partes organizarão, fortalecerão e ampliarão serviços e programas completos de habilitação e reabilitação, particularmente nas áreas de saúde, emprego, educação e serviços sociais, de modo que esses serviços e programas:

a) Comecem no estagio mais precoce possível e sejam baseados em avaliação multidisciplinar das necessidades e pontos fortes de cada pessoa;”.

 

No mesmo sentido, o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Procotolo de São Salvador), promulgado pelo decreto n. 3.321/99, com caráter supralegal (RE 466.343-SP), garante o direito da pessoa com deficiência de recebimento de atenção especial, a fim de alcançar o máximo desenvolvimento de sua personalidade.

Isso inclui a formação especial dos familiares dos deficientes a fim de ajuda-los a resolver os problemas de convivência e a converte-los em elementos atuantes do desenvolvimento físico, mental e emocional dos deficientes, conforme art. 18.

Ainda, por via hermenêutica, entendeu os julgadores que se aplica por analogia a previsão contida no art. 98, §3º da Lei n. 8.112/90, que estabelece a possibilidade de concessão de horário especial ao servidor com deficiência quando comprovada a necessidade, independentemente de compensação de horário, bem como a aplicação da previsão extensiva ao cônjuge, filho ou dependente com deficiência.

Foi considerado que a falta de concessão do horário especial à autora viola direitos e garantias fundamentais reconhecidos em tratados internacionais, de caráter tanto supralegal quanto constitucional, o que impede o exercício desses direitos essenciais. Assim, o artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal e o princípio da interpretação pro persona justificam superar a omissão legislativa específica, permitindo a aplicação analógica da Lei 8.112/91.

Eis a ementa do referido julgado:

“EMPREGADA PÚBLICA. FILHA COM DEFICIÊNCIA. APLICAÇÃO ANALÓGICA DO HORÁRIO ESPECIAL PREVISTO NA LEI 8.212/91. COMPATIBILIZAÇÃO DA LEGISLAÇÃO INTERNA COM AS NORMAS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS. Restou comprovado, no caso em apreço, que a participação direta da autora, como mãe, é imprescindível para eficácia do tratamento de sua filha menor, portadora de síndrome de down. A Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, promulgada com o rito do artigo 5º, §3º, da Constituição Federal, possuindo, portanto, hierarquia de emenda constitucional, estabelece que o superior interesse da criança com deficiência receberá consideração principal (artigo 7º), versando ainda sobre as medidas efetivas para habilitação e reabilitação da pessoa com deficiência, no estágio mais precoce possível (artigo 26). Por sua vez, o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de São Salvador), promulgado pelo Decreto n. 3.321/99, com caráter supralegal (RE 466.343-SP), traz, em seu artigo 18, o direito da pessoa com deficiência de recebimento de atenção especial, a fim de alcançar o máximo desenvolvimento de sua personalidade, por meio, dentre outros, da formação especial dos familiares, de modo a convertê-los em elementos atuantes do desenvolvimento físico, mental e emocional da pessoa deficiente. Impõe-se, assim, por meio da via hermenêutica, na compatibilização da legislação interna com as normas internacionais de direitos humanos, a aplicação analógica à reclamante, empregada pública, do disposto no artigo 98, §3º, da Lei n. 8.112/90, vez que a omissão de concessão à autora do horário especial ali previsto viola direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, reconhecidos em diplomas internacionais, tanto de caráter supralegal como constitucional, impedindo o exercício desses direitos básicos. Inteligência do artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal, e do princípio da interpretação pro persona. Ementa extraída e adaptada do Voto de Relatoria da Desembargadora Juliana Vignoli Cordeiro, nos autos 0011138-49.2020.5.03.0035, em precedente análogo desta 11ª Turma.” (TRT da 3.ª Região; PJe: 0010100-36.2023.5.03.0022 (ROT); Disponibilização: 17/08/2023, DEJT/TRT3/Cad.Jud, Página 3360; Órgão Julgador: Décima Primeira Turma; Relator(a)/Redator(a): Des.Antonio Gomes de Vasconcelos).

 

Dessa forma, a decisão em questão oferece um exemplo concreto de como as normas internacionais de direitos humanos estão exercendo uma influência significativa sobre o sistema jurídico nacional.

Além disso, ela ilustra como a interpretação proativa e alinhada aos princípios fundamentais está direcionando o desenvolvimento das garantias essenciais. Isso não apenas protege os direitos das pessoas com deficiência, mas também proporciona um suporte legal para os familiares que buscam garantir a preservação da dignidade desses indivíduos.

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Stefany Moraes
Bacharelado em Direito pela Escola Superior Dom Helder Câmara (2021). Exerceu a advocacia na área trabalhista (2021-2022). Assessora de Desembargador no TRT/3ª Região.

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