Mais dez senões do Processo Estrutural
Por Eduardo José da Fonseca Costa*
Ao Professor Donaldo Armelin,
In memoriam
Em 16 de junho de 2021, publiquei um artigo singelo no qual refleti sobre dez problemas metodológico-conceituais que me parecem axiais na doutrina do chamado «processo estrutural»» (<https://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-181-dez-senoes-do-processo-estrutural>). É óbvio não são os únicos que diviso, nada obstante hajam sido naquele instante os primeiros sobre os quais consegui meditar com vagar. Daí por que os intitulei de Dez senões do processo estrutural, não «Os» dez senões do processo estrutural. A bem da verdade, não se trata só de dez problemas, mas de dez blocos ou conjuntos temáticos. Dentro de cada bloco se emaranham vários problemas afins entre si. Por isso, qualquer resposta às minhas provocações que se cinja a dez contracríticas pontuais começará, já na largada, incompleta e desleal. Sem embargo, dado o perfil autorreferente da comunidade dos estruturalistas, acho bastante improvável que qualquer contracrítica completa e leal se me endereçará. Na melhor das hipóteses se verá, aqui e ali, resposta ligeira e circunstancial sobre dois ou três problemas perdidos nos dez conjuntos temáticos. Em suma, descreio que se iniciará o debate longo, profícuo, intenso e sóbrio de que o tema tanto necessita. Como soe acontecer no Brasil, a doutrina do «processo estrutural» tem sido instalada sem discussão profunda. Tem sido abraçada menos como um modelo científico que como um conjunto de dogmas. Com efeito, os «debates» são realizados apenas pelos próprios estruturalistas, como se a (im)possibilidade jurídica da reestruturação judicial de instituições e políticas públicas fosse uma questão há décadas superada. Seja como for, após a publicação do primeiro artigo, passei a meditar com vagar a respeito de outros blocos temáticos. O resultado final dessa meditação está exposto neste segundo artigo. Nele, trago mais dez senões [rectius: dez conjuntos temáticos]. Ainda não sei a quantos chegarei. Em todo o caso, as portas não lhes estão fechadas. De qualquer forma, todos esses senões estão justapondo-se um a um, pedra a pedra, constituindo um edifício crítico que se apresenta como uma coletânea de tópicos, sem qualquer intento sistemático. São razões críticas que mais se acumulam do que se articulam.
Motivação para se publicar este segundo artigo não me falta. Desde o primeiro se tem visto uma explosão de produções acadêmico-universitários com sugestões de manejo do «processo estrutural» para a resolução de cada um dos problemas brasileiros: desastres naturais, saneamento básico, despoluição hídrica, acolhimento infanto-juvenil, pessoas em situação de rua, urbanização, Amazônia, educação escolar, previdência social, sistema carcerário, rede de saúde, hospícios, déficit habitacional etc. E é muito provável que essa produção bibliográfica tenha um crescimento vertiginoso. Tudo se passa como se cada autor sugerisse uma utilização customizada do «processo estrutural» para a chamar de sua. Basta que seja apontada a lupa do «processo estrutural» para um problema estrutural e um novo livro se publica. Como se nota, a doutrina do «processo estrutural» tem dado vazão a uma imensa demanda reprimida por justiça social e eficiência governamental. Mais: tem permitido que um certo romantismo social se converta em romantismo jurídico, apostando todas as suas fichas em uma atuação salvífico-messiânica do Poder Judiciário, como se os juízes pensassem e agissem aos moldes de uma aristocracia esclarecida progressista não eleita. É uma ala ideológica que abandonou a luta político-eleitoral e que, após sucessivas derrotas no debate democrático-parlamentar, houve por bem concretizar por via oblíqua as suas pautas por meio de canetadas de juízes. É previsível, por esse motivo, que a doutrina do «processo estrutural» encontrará campo fértil em um país de Terceiro Mundo marcado por fortes problemas estruturais e por um espírito macunaímico de desregramento intelectual. Como se não bastasse, uma comissão de juristas instituída pelo Senado Federal para a elaboração do anteprojeto de lei sobre o «processo estrutural» aprovou há pouco o seu relatório final e, em consequência, em breve um projeto de lei começará a tramitar no Congresso Nacional (<https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/10/31/comissao-de-juristas-aprova-anteprojeto-de-lei-sobre-processo-estrutural>). Logo, há um clima propício para se revolver um tema tão complexo e polêmico. Entretanto, no tempo e pelo meio oportunos, quando a tramitação estiver mais avançada e o teor dos dispositivos mais maduro, dedicarei comentários ao projeto. Por enquanto, cabe-me fazer o que fiz no artigo anterior: apontar algumas questões fundamentais que, na minha modesta opinião, os estruturalistas ainda não resolveram, ainda não enfrentaram ou, simplesmente, ainda não formularam. Noutras palavras, cabe-me prosseguir nas críticas à doutrina do «processo estrutural» que se autoproclama dogmática processual. Afinal de contas, como se verá melhor adiante, essa doutrina não é uma dogmática em geral, nem uma processualística em particular. É muito mais uma bandeira.
Em primeiro lugar, os estruturalistas precisam justificar melhor por que o controle externo de políticas públicas deve competir ao Poder Judiciário. Sem muito esforço se percebe que os juízes e tribunais comuns não possuem a formação adequada e suficiente para processar o emaranhado dos conhecimentos extrajurídicos que, em geral, se entremeiam no ciclo de uma determinada política pública (identificação do problema, constituição da agenda, formulação de alternativas, tomada de decisão, execução, avaliação e extinção). Trata-se de uma incapacidade institucional crônica, a qual não se supera tão somente com a afluência de terceiros e auxiliares da justiça (peritos, administradores judiciais, amici curiæ etc.), tal como regulados pelo Código de Processo Civil. Na verdade, é imprescindível que o mesmo agente decisor domine uma combinação interdisciplinar de conhecimentos práticos e teóricos, jurídicos e extrajurídicos, que não se enquadram no perfil típico de um magistrado de carreira aprovado em concurso público de provas e títulos, ou mesmo nomeado politicamente por chefe de poder executivo. Em situações como essa, o legislador nacional sempre teve por bem criar órgãos colegiados judicialiformes com alta especialização técnica no tema examinado.
Veja-se o exemplo do Tribunal Marítimo, que – para julgar os acidentes e fatos da navegação marítima, fluvial e lacustre, bem como manter o registro geral de embarcações e armadores – se compõe de 7 (sete) juízes, nos termos da Lei 2.180, de 5 de fevereiro de 1954: 1 (um) juiz militar oficial-general do Corpo da Armada; 2 (dois) juízes militares oficiais de Marinha, capitão-de-mar-e-guerra ou capitão-de-fragata, sendo um deles do Corpo da Armada e outro do Corpo de Engenheiros e Técnicos Navais, subespecializado em máquinas ou casco; 2 (dois) juízes civis bacharéis em Direito, especializado um deles em Direito Marítimo e o outro em Direito Internacional Público; 1 (um) juiz civil especialista em armação de navios e navegação comercial, com experiência em cargo de direção em empresa de navegação marítima; 1 (um) juiz civil; 1 (um) juiz civil capitão-de-longo-curso da Marinha Mercante, com efetivo comando em navios brasileiros de longo curso. Tome-se outrossim o exemplo emblemático do Tribunal Administrativo de Defesa Econômica, que – para julgar as infrações à ordem econômica, impor as respectivas sanções e apreciar os processos administrativos de atos de concentração econômica – se compõe de cidadãos com notório saber jurídico ou econômico, nos termos Lei 12.529, de 30 de novembro de 2011, posto que muitas vezes funcione como um autêntico escabinato de juristas, economistas e expertos com dupla formação, todos especializados em matéria concorrencial. A propósito, o escabinato é a forma de julgamento por excelência de outro ramo julgador superespecializado: a Justiça Militar, cujos conselhos de justiça – os órgãos de primeira instância – se constituem de 1 (um) juiz federal (que é um togado, aprovado em concurso de provas e títulos, no exercício permanente de função judicante) e 4 (quatro) militares (que são oficiais de carreira no exercício temporário de função judicante) [Lei 8.457/1992, artigos 16 e ss.], amalgamando-se a formação técnico-jurídica do juiz com a destreza prático-militar do leigo. Por fim, é importante destacar os tribunais de contas, que se compõem de cidadãos com notória experiência profissional em conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos e financeiros ou de administração pública, e que julgam as contas dos administradores e dos demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da Administração Pública, julgam as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao Erário, e aplicam as sanções legais aos responsáveis em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas [CF/1988, art. 71].
Assim sendo, não é de se esperar que o controle externo de políticas públicas seja protagonizado por juízes de primeira instância, desembargadores e ministros de tribunais superiores, permitindo-se-lhes a intromissão em escolhas político-discricionárias sem um único voto popular e não raro desprovidos de expertises teórico e prático em disciplinas imprescindíveis como economia, estatística, teorias da administração, elaboração de projetos, análise organizacional, técnicas de monitoramento e avaliação, contabilidade pública, análise quantitativas e quantitativas de dados, gestão orçamentária, orçamento público, gestão de recursos humanos, gestão de custos e auditoria pública. Por isso, propus no artigo anterior a necessidade de emenda constitucional para criação de um colegiado multidisciplinar, permanente ou ad hoc, competente para a solução adjudicada de controvérsias estruturais, composto de representantes da sociedade civil, bem como dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, com poder de intervenção mediante cogestão especial temporária e coadjuvado por um staff técnico concursado para o monitoramento das etapas de implementação, complementação ou correção de políticas públicas declaradas inexistentes, insuficientes ou deficientes. Poder-se-ia talvez cogitar o Poder Judiciário como um órgão reestruturante instituindo-se dentro dele uma colegialidade heterogênea formada de magistrados de carreira e assessores em gestão de políticas públicas: os assessores profeririam meros votos consultivos, avizinhando-se da figura do perito, ou, sem poder de voto, aconselhariam e instruíram com os seus conhecimentos específicos os juízes no exercício da função (sobre o assessorado: MARQUES, José Frederico. O júri no direito brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1955, p. 64). Nada impediria, porém, um escabinato de juízes togados e especialistas em gestão governamental, todos tendo igual poder de voto deliberativo. Uma coisa é certa: tal como são, juízes de carreira são agentes públicos inadequados para sozinhos empreenderem o complexo trabalho de reformulação estrutural de políticas públicas.
Em segundo lugar, é indeclinável que a doutrina brasileira do «processo estrutural» refine mais o seu objeto de preocupações, esclarecendo se o controle jurisdicional por ela entrevisto deve incidir sobre toda e qualquer política pública [= controle genérico], ou tão somente sobre algumas políticas públicas preestabelecidas [= controle específico]. Convém lembrar que, embora as structural injunctions não tenham previsão legal, a jurisprudência federal norte-americana priorizou a resolução de problemas relativos a segregação racial e sistema prisional (obs.: priorizar significa preferir, privilegiar, antepor, dar primazia, colocar em primeiro plano, sem que isso implique denegar cuidado a políticas públicas de segundo plano). Perceba-se, ante o exposto, que a experiência dos EUA sobre o tema sempre se inspirou em um salutar princípio de seletividade, isto é, na ideia de que é preferível concentrar esforços qualificados em algumas poucas políticas públicas cuja desfuncionalidade atormenta a vida social, abandonando-se a postura imatura de se tentar reparar toda e qualquer inoperância governamental. Além disso, o princípio evita que o proponente da ação escolha a sua política subjetivamente preferida em lugar da política objetivamente preferencial. Enfim, o princípio impede, e. g., que um promotor de justiça aficionado por temática ambiental pretira o aforamento de ações relativas a política educacional, nada obstante a localidade em que lotado padeça de insuficiência severa de vagas escolares e de problemas ambientais insignificantes.
No Brasil, a própria Constituição Federal de 1988 sugere critérios implícitos usáveis na escolha objetiva de políticas públicas que se devem privilegiar para a propositura das ações estruturais. Se bem que o sistema de direito constitucional positivo brasileiro vigente tutele diferentes linhas de programa governamental [ex.: meio ambiente; transferência de renda; construção de moradias; melhoria das condições habitacionais; saneamento básico; desenvolvimentos nacional, regionais e setoriais; estímulo ao setor produtivo das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste; integração social do adolescente e do jovem com deficiência; amparo ao idoso; habitação popular; infraestrutura de transportes; reforma agrária; cultura], nenhuma delas tem regulação constitucional tão rica e pormenorizada como as ações e os serviços públicos de saúde, bem como a manutenção e o desenvolvimento do ensino. Em prol de ambas as políticas públicas a Constituição Federal obriga a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios a aplicarem percentuais mínimos de suas receitas [artigos 212 e 198, § 2º, I a III]. Tamanha é a importância dessas aplicações mínimas que, se elas não forem realizadas, os Estados e o Distrito Federal podem sofrer a intervenção da União [art. 34, VII, e] e os Municípios podem sofrer a intervenção do Estado [art. 35, III]. Tudo isso vai ao encontro das pesquisas de opinião pública, cujas sucessivas edições mostram sempre a saúde e a educação no epicentro das preocupações nacionais, nada obstante o caráter dinâmico das percepções da população brasileira sobre os desafios e as dificuldades do País. Noutros termos, embora pesquisas desse tipo captem subjetivismos e volubilidades cambiáveis de contexto a contexto, saúde e educação são amiúde as duas maiores aflições do cidadão, malgrado a crescente preocupação com segurança pública. Veja-se, por exemplo, a pesquisa nacional de opinião, realizada em setembro de 2023 pelo Instituto Datafolha, para avaliar a gestão do Governo Federal (<https://encurtador.com.br/ZjBBT>). Logo, é provável que o Congresso Nacional se sinta cada vez mais pressionado a editar emendas constitucionais de asseguração orçamentária e financeira mínima para a manutenção e o incremento de políticas de segurança pública.
De qualquer forma, se a saúde e a educação são políticas preferenciais para os governos federal, distrital, estaduais e municipais, por que não deveriam ser também preferenciais para o Ministério Público quando da abertura de inquéritos civis e do ajuizamento de ações civis públicas? A autonomia funcional e administrativa do MP faz dele uma «ilha de sentido» desalinhada dos propósitos constitucionais que orientam o concerto das demais instituições da República? Diante desse quadro, a lei do «processo estrutural», que surge no horizonte, tem a chance de promover um alinhamento. Para tanto, ela deve preferir uma definição extensional a uma definição intensional de políticas públicas reestruturáveis em juízo. Em lugar de especificar as condições necessárias e suficientes para o controle externo de toda e qualquer política considerada de modo geral e abstrato, é de bom alvitre que a lei traga um rol das políticas preferenciais que podem ser alvo de processos estruturais (p. ex., saúde, educação, segurança pública), tolerando-se em caráter excepcional a intervenção em políticas públicas não laureadas pela lei. Sem isso, em um país cuja cultura jurídica é caracterizada pela frouxidão metodológico-interpretativa, o Ministério Público e o Poder Judiciário se intrometerão em tudo e, como resultado, reduzirão a separação de poderes a pó.
Em terceiro lugar, é imperioso que a doutrina brasileira do «processo estrutural» aclare mais o seu conceito de «instituições e políticas públicas controláveis pelo juiz». A noção de «processo estrutural» tem sido vinculada «aos casos em que se discutem questões altamente complexas, relativas a direitos fundamentais e em que se busca interferir na estrutura de entes ou instituições ou em políticas públicas» (DIDIER JR., Fredie, ZANETI JR., Hermes e OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Elementos para uma teoria do processo estrutural aplicada ao processo civil brasileiro. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. n. 75, jan/mar 2020, p. 104) (d. n.). Como já dito acima, esse tipo de definição intensional traz vários inconvenientes para o contexto brasileiro. Um jeito de se evitarem esses inconvenientes, e. g., é a submissão do conceito a testes duros e contínuos de falseabilidade até quiçá se descobrirem situações constrangedoras e inaceitáveis de intromissão judicial. Uma vez que se detectem essas situações, o conceito deve ser revisto a fim de excluí-las. Contudo, é óbvio que esses testes nunca foram realizados por quem os deveria.
Imagine-se que, após um mandato presidencial de grave desequilíbrio fiscal, o seu sucessor se veja impelido a uma política contracionista de desaceleração do crescimento econômico e, em consequência, de aumento do desemprego. Nesse caso, é possível invocar-se o «direto constitucional social ao pleno emprego» [CF/1988, art. 170, VIII, c. c. art. 5º, § 2º] para que essa política contracionista seja reestruturada em juízo e, dessa maneira, se busque substituir o «estado real de desemprego» por um «estado ideal de empregabilidade ampla»? É possível um controle judicial de políticas econômicas em geral (política fiscal, cambial, comercial, de rendas, monetária etc.)? A situação descrita não parece improvável, máxime porque a malemolência metodológico-interpretativa é também característica da teoria dos direitos fundamentais praticada no Brasil. Para um Ministério Público e um Poder Judiciário ávidos por se fortalecerem, não será difícil encontrar cambalhotas hermenêuticas que impliquem direitos fundamentais em tudo e transmudem tudo em direitos fundamentais.
Uma idêntica malemolência tem permitido ao STF reconhecer a existência de um «direito fundamental implícito à felicidade» (ADPF 132/RJ e ADI 4277/DF), ficando a pergunta: com a finalidade de se aferir a necessidade de ajuizamento de uma ação estrutural, qual a criteriologia para se verificar o desacordo entre o «estado ideal de felicidade geral da nação» e o seu «estado real de infelicidade generalizada»? De mais a mais, «o direito à felicidade» compreende o «direito à felicidade química»? O «direito à felicidade química» significa ter acesso facilitado à «química da felicidade»? Para promover o «estado ideal de felicidade geral», pode o Poder Executivo ser compelido pelo Poder Judiciário a instituir ações e serviços de fornecimento gratuito de substâncias químicas «felicitantes» à população carente? Essas substâncias podem compreender drogas? Ora, já se ensaia como um movimento de direito civil a luta pela descriminalização e regulamentação das drogas com base justamente no «direito de buscar a própria felicidade» (sobre o tema, v., p. ex., HART, Carl. Drogas para adultos. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Zahar, Companhia das Letras, 2021). Portanto, a distopia não é tão distante quanto se supõe à primeira vista.
Como se tudo não bastasse, uma definição intensional de «processo estrutural» pode abrir portas para a intromissão judicial em políticas estratégicas de Estado como a defesa militar. Basta: 1) derivar-se do direito fundamental à segurança [CF/1988, art. 6º, caput] um direito fundamental à segurança externa, ou seja, um direito a que sejam realizadas sem interrupção «atividades de segurança externa, ou de segurança nacional», destinadas «à defesa do Estado, com a proteção da integridade territorial, da soberania nacional e das instituições políticas» (FERRER, Flávia. O direito à segurança. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. n. 26, jul/dez 2007, p. 112); 2) apontar-se um quadro de violação generalizada e sistêmica do direito à segurança externa causado pela inércia ou pela incapacidade reiterada e persistente das Forças Armadas de assegurar a integridade do território nacional nas regiões de fronteira. Nesse caso, pode juiz redefinir a distribuição de efetivo militar e armamento bélico para as unidades fronteiriças do Exército, da Marinha e da Aeronáutica com a intenção de tentar aumentar a eficiência alocativa desses recursos humanos e materiais em prol do melhoramento do nível de segurança externa?
É preocupante também que uma definição intensional muito vaga de instituições seja um «cheque em branco» para que juízes e tribunais possam intrometer-se na configuração estrutural de corpos intermediários (famílias, igrejas, sociedades iniciáticas, partidos políticos, empresas de comunicação, órgãos de imprensa etc.), que ocupam um espaço precioso entre os indivíduos e o Estado e cuja autonomia orgânico-funcional é indispensável para evitar a concentração de poder político nas mãos do soberano. Ora, é possível que a ala branda da doutrina estruturalista tenha um conceito mais restritivo de «instituições e políticas públicas controláveis pelo juiz». Todavia, sempre haverá insinceros. Já se pode vê-los no futuro dividindo a história do «processo estrutural» em «fases», desde a mais «primitiva» até a mais «evoluída»: 1ª fase: o controle judicial de instituições e políticas públicas como uma prática contida extra legem; 2ª fase: o controle judicial de instituições e políticas públicas como uma prática contida secundum legem; 3ª fase: o controle judicial de instituições e políticas públicas como uma prática irrefreada contra legem; 4ª fase: a ditadura judicial. Um progressivo aumento de quantum despótico se passou com a ADO, se passou com a ADPF e se passará com o «processo estrutural» caso regulado pela lei que se avizinha. Quem viver, verá.
Em quarto lugar, os estruturalistas precisam explicar de modo mais acurado a origem das structural injunctions para somente depois se desincumbirem do ônus (difícil) de justificarem a inserção delas no Brasil sem haver previsão na Constituição e na lei. Sob a compreensão de que o Rei da Inglaterra tinha o dever de dar justiça aos seus súditos e de que a aplicação estrita do direito comum nem sempre oferecia soluções justas, a Coroa passou a instituir os tribunais de equidade ou chancelaria [equity courts] ao lado dos tribunais de direito [law courts]: os primeiros aplicavam principles of fairness, não o strictum ius, exercendo uma equitable jurisdiction; os segundos, por sua vez, aplicavam o common law, exercendo o common law jurisdiction. Sob essa perspectiva, os tribunais de chancelaria desempenhavam um poder equitativo paralelo de contrabalançar e corrigir – de maneira casuística, discricionária e excepcional – as normas jurídicas inflexíveis do direito comum em diversos situações da vida prática (obs.: fala-se em «chancelaria» porquanto o rei, ao julgar com base na equidade, era assistido pelo King’s Concil, um grupo de clérigos-juristas, dentro do qual estava o Lord Chancellor, o principal funcionário do reino, guardião da consciência e do sinete reais, que selecionava as petitions para o monarca examiná-las; porém, a multiplicação de petições fez o Chanceler assumir posição autônoma dentro da burocracia judiciária, formando-se a Court of Chancery, perpassada pelo espírito do direito canônico – sobre o tema, v., por todos: TOMASETTI JR., Alcides. Execução de contrato preliminar. São Paulo: Universidade de São Paulo [tese de doutorado], 1982, p. 112-119). Como uma alternativa ao common law, que se fundava nos precedentes, as cortes de chancelaria desenvolveram os equitable remedies, cujo um dos principais exemplos são as injunctions, que não mais do que ordens mandamentais para que alguém faça ou deixe de fazer algo é que se dividem em permanent injunctions, temporary restraining orders e preliminary injunctions.
Esse modelo dualista entre a equity e o common law atravessou o Oceano Atlântico, sendo transplantado para as colônias norte-americanas. Em alguns Estados, preservou-se a divisão entre equity court e law court; em outros Estados, a divisão foi eliminada, fundindo-se na competência do tribunal tanto a equitable jurisdiction quanto o common law. No âmbito federal. optou-se pela fusão. Ora, exercitando a equitable jurisdiction, as cortes federais dos Estados Unidos desenvolveram nos anos 1960 e 1970 a ideia de structural injunctions como provimentos jurisdicionais de natureza mandamental que determinam a governo ou organização que modifique as suas ações e políticas a fim de que seja corrigida a violação generalizada e sistêmica a direitos civis (o que não raro provoca reformas institucionais na estrutura e no conseguinte funcionamento internos dessas entidades) (sobre a origem da equity e as suas notas características, v., p. ex.: BLACK, Henry Campbell. Black’s Law Dictionary. 4. ed. St. Paul, Minn.: West Publishing, 1968, p. 634 e ss.; STONEKING, James B. Injuctions and equitable remedies. The Oxford Companion to the Supreme Court foi the United States. Org. Kermith L. Hall. Nova Iorque: Oxford University Press, 1992, p. 430-432. Para uma demonstração de que as medidas estruturantes têm origem na equity e de que sempre se sonegou essa informação ao leitor brasileiro, sugiro o melhor trabalho crítico já escrito no Brasil sobre o «processo estrutural»: FERNANDES, Geovana Faza da Silveira. Impacto dos «transplantáveis» do direito norte-americano na jurisdição estrutural brasileira. Niterói: Universidade Federal Fluminense [tese de doutorado], 2024).
Frise-se que as structural injunctions se desenvolveram no âmbito da equity, não do common law, pois não vige no sistema de direito federal dos EUA qualquer norma constitucional ou legal que as preveja. Isso mostra o problema de se transplantá-las sem filtros para ambientes de Civil Law, como é o caso brasileiro, onde não há lugar para a jurisdição de equidade. No Brasil, só existe a jurisdição de direito. Mesmo assim, nenhum texto escrito de direito positivo atual vigente prescreve a reestruturação judicial de instituições e políticas públicas desfuncionais em relação a direitos fundamentais. Logo, qualquer modelo de lege lata sobre «processo estrutural» no Brasil é um esforço intelectual desonesto. No máximo se asseverar que o «processo estrutural» já existe no quotidiano do foro [law in action], conquanto sem respaldo em norma jurídico-positiva [law in books]: é mais respeitável o sociologismo que a transformação mágica de modelos de lege lata em modelos de lege ferenda. Mas mesmo esse tipo sociologismo jurídico, que deveria obedecer à base metodológica que lhe é característica, foge dela. Decididamente, uma experiência jurisprudencial sobre structural injunctions no Brasil depende de previsão em regra constitucional expressa e regulação por lei específica.
Em quinto lugar, alguns juristas têm invocado a crescente «commonlawlização» do direito nacional para justificar o «processo estrutural». Deve-se lembrar, porém, que essa gradativa fusão entre o Civil Law e o Common Law, se tanto, é feita dentro da Constituição e da lei, não a despeito delas. Ela não se opera ipso facto, mas ipso iure. É por intermédio da sua lógica interna – a edição de leis escritas – que o sistema de Civil Law se abre aos elementos do Common Law, não pela «força dos fatos». Em todo o caso, os estruturalistas precisam enfrentar o problema da (in)compatibilidade entre o sistema de Common Law e o modelo de democracia representativa. Mesmo nos Estados Unidos, a discussão é intensa. No Reino Unido, o problema não faz sentido, pois o Common law está bem acomodado a um ambiente político-institucional que é mais aristocrático que democrático: o chefe de Estado é um monarca hereditário; o chefe de Governo é o primeiro-ministro, que é escolhido pelo rei e que governa em seu nome (embora, na prática, seja escolhido pelos parlamentares do partido vencedor nas eleições gerais e nomeado pelo monarca em um ato protocolar); o Parlamento é bicameral, consistindo na Câmara dos Comuns (câmara baixa cujos membros são escolhidos pelo povo em eleições gerais) e na Câmara dos Lordes (câmara alta de não eleitos composta de lordes espirituais e temporais: os primeiros, arcebispos e bispos da Igreja Anglicana; os segundos, membros da nobreza britânica).
O problema surge quando se traslada o sistema de Common Law para os EUA, cujo ambiente político-institucional é mais democrático que aristocrático: deputados e senadores são escolhidos mediante eleição popular direta; presidente e vice-presidente, mediante eleição popular indireta, visto que são escolhidos pelo Colégio Eleitoral, cujos delegados são eleitos pelo povo. Ora, na democracia representativa, em que todo poder emana do povo e em seu nome é exercido, os juízes não são autores legítimos de escolhas político-discricionárias. Não produzem normas gerais e abstratas («leis judiciais»), nem interferem na gestão governamental («políticas judiciais»). Não sem razão, as doutrinas brasileiras dos precedentes obrigatórios e das medidas estruturantes estão sendo utilizadas para corroer as bases do Estado democrático parlamentar instituído pela Constituição Federal de 1988, permitindo que juízes se valham desses precedentes para usurpar função legislativa e dessas medidas para usurpar função governamental. Por isso, vários autores norte-americanos entendem que o Common Law confere um excesso de poder aos juízes e que esse excesso pode não somente contagiar um ambiente de leis democráticas como colocar em risco a própria soberania legislativa. Entretanto, há autores que, embora divisem incompatibilidade entre Common Law e democracia representativa, entendem que o sistema de stare decisis deve vigorar por força da tradição. Pudera: os colonos que cruzaram o Oceano Atlântico fugindo da Coroa inglesa conheciam só o Common Law. Esse modo de produção e operacionalização do direito se enfronhou de tal maneira na cultura dos EUA que até hoje ela tem dificuldade de lidar com problemas de interpretação e aplicação do direito legislado [statutory law]. Daí por que faculdades de direito norte-americanas se concentram na metodologia tradicional ao redor de precedentes judiciais. Apesar disso, há também autores que defendem a persistência do Common Law sustentando, e. g., que: a) ele funciona como um sistema de freios e contrapesos, ajudando a proteger direitos fundamentais porventura ignorados pela maioria legislativa; b) ele permite adaptações mais rápidas às mudanças sociais do que os processos legislativos morosos; c) ele permite ao juiz refletir e proteger valores compartilhados pela própria sociedade, estabelecendo uma relação de confiança entre juízes e jurisdicionados; d) a interpretação judicial pode mitigar excessos legislativos que estejam acaso em desacordo com a Constituição. Tenho para mim que, em um regime democrático, poderes judiciais discricionários não podem fundar-se só em razões pragmáticas como «tradição», «captação de valores sociais» e «relação de confiança», pois poderes assujeitam pessoas e, exercidos com abuso, as instrumentaliza. Em certa medida, basear a legitimidade democrática do Common Law nesses lugares-comuns consiste em estratégia retórica para justificá-lo a fórceps em um ambiente que lhe é refratário.
Seja como for, o Brasil é uma democracia representativa. Por isso, os estruturalistas devem: 1) apresentar ao público leitor brasileiro o debate norte-americano sobre a legitimidade democrática do sistema do Common Law; 2) enfrentar de modo analítico esse debate, demonstrando por que a introdução desse sistema no Brasil não corrói o modelo brasileiro de democracia representativa. Inaceitável é cantar em prosa e verso a «commonlawlização» do direito nacional varrendo esse debate para debaixo do tapete.
Em sexto lugar, os estruturalistas precisam prevenir o público leitor brasileiro de que a doutrina do «processo estrutural» parte de um modelo dogmático de direitos fundamentais que não é «o» modelo, mas somente um dos tantos que concorrem entre si no mercado das ideias. Nesse sentido, os estruturalistas devem apresentar ao menos os modelos principais e demonstrar que o modelo subjacente à teoria que propagam é o correto. Como cediço, a ideia de «processo estrutural» carrega consigo a ideia de direitos fundamentais como «estados ideais de coisas» a serem atingidos pelo Estado. Grosso modo, isso significa que o Estado deve municiar-se de um aparato organizacional e de um complexo de meios técnicos para aproximar o «estado real» do «estado ideal». Desse jeito, quando uma instituição que integra esse aparato ou uma política pública que integra esse complexo sofrem de um vício estrutural que conduza à violação sistêmica e generalizada de um direito fundamental, produzindo um fosso relevante entre o «estado real» e o «estado ideal», cabe ao Poder Judiciário proceder à reestruturação dessa instituição ou dessa política com o intuito de revocacioná-las à concretização da idealidade prescrita pela norma de direito fundamental.
No entanto, essa construção teórica sobre os direitos fundamentais traz problemas. Pois que ela atribui ao Estado a concretização dos direitos fundamentais como uma meta a ser atingida, ela legitima o próprio Estado a prover-se de poderes instrumentais para esse atingimento. Afinal, quem dá os fins dá implicitamente os meios. Ora, isso vai de encontro ao sentido histórico dos direitos fundamentais, que é limitar os poderes do Estado, não lhes engrossar a lista. A bem da verdade, a doutrina do «processo estrutural» tem por trás de si uma visão por demais objetivista dos direitos fundamentais, que apaga a noção liberal de direitos fundamentais como direitos subjetivos de liberdade do cidadão contra o Estado, ou seja, de pretensões, faculdades, poderes e imunidades cujos conteúdos são oponíveis ao Estado como uma forma de se garantir aos seus titulares uma esfera impenetrável de espontaneidade ou autonomia individual. Na visão subjetivista dos direitos fundamentais, portanto, não faz sentido impor ao Estado o poder-dever funcional de otimizar a estrutura de instituições e de políticas públicas [= dever-meio] para que seja melhor cumprido por ele o poder-dever funcional de concretização de direitos fundamentais [= dever-fim]. Enfim, não faz sentido enxergar na norma jurídica de direito fundamental a fonte constitucional dessa dúplice função pública. Com isso, o grau de otimização dessas estruturas institucionais e políticas se reserva a escolhas discricionário-governamentais insindicáveis pelo Poder Judiciário. Para uma teoria liberal, por exemplo, no âmbito de uma relação de direito fundamental o Estado só tem a capacidade de assumir as posições jurídicas subjetivas passivas que sejam correlatas às posições jurídicas subjetivas ativas titularizados pelo cidadão; logo, se o cidadão for titular de pretensão, faculdade, poder e imunidade, então o Estado será titular, respectivamente, de dever, falta-de-pretensão, sujeição e falta-de-poder. Não há margem para que o Estado titularize qualquer poder-dever funcional com base em norma de direito fundamental.
Nada obstante, a doutrina do «processo estrutural» se mostra indiferente à teoria liberal e, dessa maneira, à ideia dos direitos fundamentais como «direitos de resistência» ou «direitos de defesa», sentindo-se isenta de diálogo crítico com qualquer corrente teórica que desminta os seus postulados. E não se pode asseverar que a teoria liberal dos direitos fundamentais seja uma doutrina underground professada por meia dúzia de insurrectos: na Alemanha, a dogmática dos Grundrechte als Abwehrrechte é «a» grã-adversária da teoria de ROBERT ALEXY e as suas bases têm sido desenvolvidas por eméritos juristas como RALF POSCHER (Professor da Universidade de Freiburg), ERNST-WOLFGANG BÖCKENFÖRDE (Professor da Universidade de Freiburg e Juiz do Tribunal Constitucional Federal alemão) e BODO PIEROTH (Professor da Universidade de Münster) e BERNHARD SCHLINK (Professor da Universidade Humboldt de Berlim) (obs.: dos dois últimos autores, sugiro em língua portuguesa Direitos fundamentais. 2. ed. Trad. António Francisco de Sousa e António Franco. São Paulo: Saraiva, 2019). No Brasil, a teoria liberal tem sido disseminada por autores como LEONARDO MARTINS, DIMITRI DIMOULIS e RAFAEL GIORGIO DALLA BARBA (obs.: dos dois primeiros dois autores, sugiro Teoria geral dos direitos fundamentais. 7. ed. São Paulo: RT, 2022; do terceiro, Direitos fundamentais e teoria discursiva. Salvador: Juspodivm, 2018). Daí por que os estruturalistas devem fazer ciência, não apologia, imiscuindo-se na larga produção científica encabeçada por esses autores e provando por que a visão liberal sobre os direitos fundamentais é inconsistente ou incapaz de infirmar a reestruturabilidade judicial de políticas públicas e instituições. Aliás, convém aos estruturalistas ler o debate entre RALF POSCHER, teórico dos direitos fundamentais como «direitos de defesa», e ROBERT ALEXY, teórico dos direitos fundamentais como «estados ideais de coisas» (a coletânea dos textos que compõem o debate se encontra em Princípios jurídicos: o debate metodológico entre Robert Alexy e Ralf Poscher. Org. Rafael Giorgio Dalla Barba. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2002). Sem tudo isso, a «teoria do processo estrutural» continuará sendo autorreferente, fechada em si própria, resistente a influências externas, criando um ambiente estéril, onde seus autores citam não mais que a si mesmos, a autocrítica inexiste, a interação com as críticas é nenhuma e a ortodoxia teórica enrijece-se.
Em sétimo lugar, tem ocorrido a publicação de monografias e obras coletivas sobre «processo estrutural» comparado. Dado que não existe em qualquer país do mundo legislação vigente sobre o tema, uma parte das produções bibliográficas têm se cingido a analisar precedentes estrangeiros sobre a prática de medidas estruturantes por tribunais de diferentes nações. Via de regra, a seleção dos julgados tem se utilizado de um critério espacial, razão pela qual os livros têm girado ao redor de experiências jurisprudenciais nos subcontinental, continental e mundial, como se houvesse, respectivamente, um tratamento subcontinental, continental e mundial acerca de conflitos estruturais. Sugere-se que o «processo estrutural» seja uma tendência supranacional, não um disparate que só se adota no Brasil. Por esse ângulo, o Brasil estaria alinhado àquilo que se passa de melhor fora de suas fronteiras. A obra mais importante sobre isso foi escrita no Brasil pelo Professor MARCO FELIX JOBIM (Cortes e o tratamento mundial de conflitos estruturais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2025. Ver também Processos estruturais no Sul Global. Org. Matheus Casimiro e Eduardo Cunha. Londrina: Toth, 2022).
Ora, é inquestionável a existência de experiências jurisprudenciais a respeito de medidas estruturantes em países como Costa Rica, Argentina, Peru, Colômbia, Equador, Bolívia, Venezuela, África do Sul, Canadá, Índia, Bangladesh, Paquistão, Filipinas, Austrália e Estados Unidos (embora aqui essa experiência esteja concentrada nos anos 1960 e 1970); ademais, medidas desse tipo já foram concedidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos. No entanto, várias perguntas ficam no ar e precisam ser respondidas de imediato pelos juristas do «processo estrutural»: em cada um desses países, a reestruturação judicial de instituições e políticas públicas se pratica de maneira habitual, ocasional ou rara? Neles, a separação de poderes é uma bolha já estourada, ou as medidas estruturantes são furos discretos e infrequentes que não conseguem explodi-la? Como a separação de poderes é positivada e interpretado nesses países? Existe em cada um deles uma doutrina geral de «processo estrutural» aos moldes brasileiros, que lhe seja própria, alimentada por uma quantidade copiosa e específica de simpósios, seminários, encontros, congressos, mesas-redondas, workshops, grupos de pesquisa, eventos organizados por tribunais, trabalhos de conclusão de curso, livros comerciais, teses de doutorado, dissertações de mestrado etc.? A excepcionalidade eventual da pragmática estruturante não explica por que motivo esses países jamais as previram em suas respectivas constituições e jamais as regularam em suas respectivas leis internas? Vale a pena legislar sobre intervenções judiciais que devem ser, quando muito, extraordinárias, eventuais, insólitas, inusitadas, tendo em vista que podem abalar a separação de poderes? Não é exatamente por isso que se prefere que as políticas públicas sejam controladas ab extra pelo Poder Judiciário, não por um órgão parajudicial inédito? Por que apenas o Brasil, no concerto das nações, ensaia a edição de uma lei específica sobre o «processo estrutural»? No final das contas, uma doutrina funcionalizada à concessão usual de medidas judiciais estruturantes não é uma «jabuticaba»? Esse arrojo brasileiro no tratamento do assunto é sinal exteriorizante de um pioneirismo que deveria inspirar os demais países, de um pioneirismo que faz sentido apenas para as especificidades do contexto nacional, ou de um açodamento temerário que só tem grassado porque tem encontrado um Poder Judiciário ávido por poder e uma academia em engajamento ideológico?
Decididamente, uma soma de exceções não faz delas uma praxe ampla e irrestrita. Quando uma produção jurídico-científica se dirige a um público desinformado para analisar precedentes estrangeiros sobre medidas estruturantes, cabe-lhe explicar como cada um deles se insere no contexto dos discursos normativo, doutrinário e jurisprudencial de cada país. Ou seja, cabe-lhe inserir o texto de cada um desses precedentes em seus respectivos contextos. Caso contrário, a produção estará incutindo nos leitores um viés ou heurística de representatividade, i. e., estará despertando neles um atalho mental que os fará acreditar que aquela pequena amostragem de precedentes estrangeiros sobre medidas estruturantes é representativa de uma prática jurisprudencial generalizada em âmbito internacional. Estará incutindo a crença de que a concessão judicial de medidas estruturantes é uma experiência consagrada em todos os países e que os precedentes estudados são apenas uma mostra disso. Em síntese, estará induzindo a um grave erro de inferência estatística.
Em oitavo lugar, já é hora de os estruturalistas submeterem o epíteto «processo estrutural» a um exame semântico muito mais detalhado e talvez a um julgamento crítico. Não porque problemas nominais sejam relevantes, mas porque o nome tem servido de «cortina de fumaça» para ocultar a realidade por trás de si. Ora, o adjetivo «estrutural» não é o mais apropriado para qualificar o processo voltado à reestruturação judiciária de instituições e políticas públicas. O jargão estruturalista teria mais precisão técnica se reservasse: 1) o sufixo –dor para formar adjetivo que indique o agente da ação [ex.: juiz reestruturador]; 2) o sufixo –ante para formar adjetivo que indique o meio empregado para a ação – ex.: medidas reestruturantes]; 3) o sufixo –ada para formar adjetivo que indique o resultado da ação [ex.: instituição ou política pública reestruturada]; 4) o sufixo –al para formar adjetivo que indique o objeto da ação [ex.: problema estrutural]. Por conseguinte, em lugar de «processo estrutural», seria preferível a expressão processo reestruturante.
Sem embargo, é sobre o substantivo que as principais atenções devem recair. Afinal de contas, a «teoria do processo estrutural» é deveras uma teoria sobre processo? Ora, quando se procura reestruturar em juízo uma instituição ou uma política pública com o fim de se interromper a violação generalizada e sistemática de um direito, o processo em si não tem qualquer característica especial: de ordinário, todos os esforços iniciais do juiz se concentram na tentativa de uma solução consensual para a implementação de um cronograma de reestruturação negociado multilateralmente; se a tentativa malograr, a fase de conhecimento não obedecerá a um formato procedimental autônomo, distante do procedimento comum; a eventual fase de execução seguirá o procedimento do «cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de fazer ou de não fazer». Ora, a única coisa «especial» nisso tudo é a possibilidade de o juiz mobilizar um conjunto interdisciplinar de saberes que lhe permita obter das partes uma solução de consenso e, destarte, um cronograma de reestruturação multilateralmente negociado.
Contudo, como já dito no artigo anterior, se esse é o quid específico da teoria que os estruturalistas defendem, então essa teoria é menos uma dogmática de processo do que uma pragmática de conciliação e mediação. Não sendo uma teoria sobre processo, pode-se imaginar que se trate de uma teoria sobre jurisdição. Assim, a doutrina do «processo estrutural» seria, na verdade, uma teoria da jurisdição reestruturadora. Mas aqui é imperiosa uma filtragem conceitual para se saber se a noção de reestruturação se compreende na noção de jurisdição. Em linhas grosseiras, pode-se afirmar que as atividades estatais se dividem em três espécies: i) criação do direito [= jurislação]; ii) aplicação interessada do direito [= administração]; iii) aplicação desinteressada do direito [= jurisdição]. Ora, na reestruturação judicial de instituições e políticas públicas, a resolução da controvérsia estrutural não se resolve mediante a aplicação desinteressada de uma regra preexistente de direito. O juiz não aplica de maneira objetiva a regra jurídica «doa a quem doer», «custe o que custar» [= atividade vinculativa técnico-burocrática]. De fato, por intermédio de um cálculo estratégico entre meios e fins, o juiz esquematiza um conjunto de regras casuísticas que lhe pareçam hábeis para se diminuir o abismo entre o «estado ideal» e o «estado real de coisas» e aplica-as na engajada expectativa de que o abismo será reduzido ou mesmo eliminado [= atividade discricionária político-deliberativa]. Por esse lado, o magistrado exerce um composto de atividades jurislariva e administrativa. Trata-se de desempenho reestruturante legislativo-governamental.
Por isso, o Poder Judiciário não é a instância adequada para a resolução de problemas estruturais. Não são votados para legislar e governar, nem têm expertise técnico-cientifico para gerir esse tipo de conflito. Tudo isso explica por que é impossível acorrentar a atividade judiciária reestruturante às grades do due process of law. O «processo estrutural» é impermeável às garantias contrajurisdicionais primárias da imparcialidade e da não criatividade e, por conseguinte, a garantias contrajurisdicionais secundárias como legalidade, congruência, adstrição, coisa julgada, dispositividade e distribuição estática dos ônus probatórios (sobre o assunto, v. nosso As garantias arquifundamentais contrajurisdicionais: não-criatividade e imparcialidade. <https://encurtador.com.br/MD50Z>). Ele sofre de uma privação intrínseca, que o impede de cumprir a função constitucional de todo e qualquer processo em juízo, que é servir ao cidadão de mecanismo de proteção e defesa contra os eventuais arbítrios do Estado-juiz [CF/1998, art. 5º, LIV]. Em essência, a sequência dos atos praticada pelo juiz reestruturador tem a mesma natureza dos atos que integram os ciclos de gestão e implementação de toda e qualquer política pública, conquanto sejam eles processualiformes. Fica patente, assim, que «processo estrutural» é sinônimo perfeito de exercício judiciário anômalo de atividade legislativo-governamental. Logo, depende de previsão em emenda constitucional e, após, regulação em lei de âmbito nacional. Por ora, à míngua de uma coisa e outra, a doutrina do «processo estrutural» é um modelo mais político que teórico, mais propositivo que descritivo, mais material que processual, se bem que desenvolvido por processualistas e dirigido a processualistas em palavreado processualístico.
Em nono lugar, os estruturalistas ainda não deram uma resposta teórica para o problema das reestruturações impossíveis. Não se trata de um problema de somenos importância, haja vista que no dia a dia forense se veem, em não raras vezes, ações estruturais ambiciosas contra «estados inconstitucionais de coisas» inalteráveis ou de dificílima alteração, que consomem anos a fio de energia processual inútil. A inalterabilidade parcial ou relativa não chega a ser o maior dos problemas, pois é sempre preferível alterar-se algo a alterar-se nada, mitigando-se a distância entre o ideal e o real, o perfeito e o imperfeito, o dever-ser e o ser. Tudo muda de figura quando já é possível antever uma inalterabilidade total ou absoluta, nada obstante o Ministério Público teime em ajuizar a ação e o Estado-jurisdição em receber a petição inicial. Para esses casos, é aconselhável o desenvolvimento de alguns mecanismos de controle in initio litis, que permitam ao juiz indeferir a petição inicial por inutilidade manifesta da tutela «jurisdicional» pretendida [CPC, art. 330, III] e, desse modo, extinguir ex ante o processo sem a resolução do mérito [CPC, art. 485, I]. Poder-se-ia exigir, por exemplo, um estudo prévio de viabilidade reestruturacional, o qual funcionaria como uma «condição liebmaniana da ação», ou seja, como uma condição de apreciabilidade do meritum causæ. Esse estudo seria fundido a outros dois já sugeridos no artigo anterior: os estudos prévios de impactos orçamentário e estrutural. Dessa maneira, conseguir-se-ia impedir prima facie que o Poder Judiciário se ocupe de reestruturações impossíveis, transformando-se a máxima ad impossibilia nemo tenetur em um filtro retentor de postulações manifestamente irrealizáveis e ocluindo-se simpliciter et de plano o prosseguimento processual.
É possível imaginar, por exemplo, que essa irrealizabilidade ocorra por força da 1) absoluta inalterabilidade da estrutura, ou por força da 2) absoluta inalterabilidade do «estado inconstitucional de coisas». Em (1), inalterabilidade é sinônimo de irrevogabilidade e, dessa forma, é uma noção jurídico-normativo. Nesse sentido, a estrutura de uma instituição ou de uma política pública é inalterável ipso iure quando prevista na Constituição e/ou em lei. Sob pena de afronta à separação dos Poderes [CF/1988, art. 2º c. c. art. 60, § 4º, III], o Poder Judiciário não pode interferir em ministérios, secretarias estaduais, secretarias municipais, entidades autárquicas e fundações públicas cuja estrutura organizacional e cujo modo de funcionamento, posto que regulados por ato do Poder Legislativo e regulamentados por ato do Poder Executivo, sejam ineficientes na concretização sistemática e generalizada de determinado direito fundamental, salvo se a ineficiência decorrer de regra legal que fira a Constituição ou de regra regulamentar que fira a lei. Logo, para se atender melhor aos direitos previdenciários e assistenciais, e. g., não é possível a reestruturação judicial do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), cuja organização funcional é pormenorizada numa caudalosa sequência normativa de atos legais e infralegais. Sequência igualmente caudalosa pormenoriza, e. g., a organização funcional do Ministério do Trabalho e Emprego, a qual não pode ser modificada pelo juiz reestruturador sob o pretexto de se promover um melhor atendimento aos beneficiários do seguro-desemprego. Tudo isso só seria possível se houvesse previsão constitucional.
Em (2), a inalterabilidade pode ter três sentidos: (2.1) empírico-sociológico; (2.2) técnico-científico; (2.3) econômico-financeiro. No primeiro sentido, o «estado inconstitucional de coisas» não pode ser modificado na medida em que os fios que tramam a realidade obstaculizam qualquer esforço de tentativa e, por isso, condenam esse estado de coisas ipso facto a uma rigidez, uma firmeza, uma inflexibilidade, uma dureza. No segundo sentido, o «estado inconstitucional de coisas» não pode ser modificado devido a não existir ainda no estado da arte técnico-científica um meio capaz de vencer a trama do real e realizar essa modificação. No terceiro sentido, o «estado inconstitucional de coisas» pode ser modificado no todo ou em parte, seja porque as suas características intrínsecas permitem, seja porque existe meio um técnico-científico capaz de realizar essa modificação; todavia, o custo do empreendimento é assaz elevado e, dessa maneira, impagável, não sendo sequer viável diluí-lo em uma pluralidade sucessiva e distendida de exercícios orçamentários, sob pena de se «perder o fio da meada» em consecutivas transições de mandato governamental. No terceiro sentido se enquadram, outrossim, as situações em que a relação custo-benefício desaconselha a reestruturação judicial de instituições e políticas públicas, porquanto economizar os recursos orçamentários se mostra muito mais vantajoso in concreto do que tentar uma modificação do «estado inconstitucional de coisas» à tout prix.
Em décimo lugar, os estruturalistas precisam entender de uma vez por todas que a teoria por eles professada não é um «marco zero» nos estudos sobre controle judicial de políticas públicas. Assim, devem estabelecer um diálogo crítico com os pré-estruturalistas, de ordinário constitucionalistas e administrativistas, que enfrentam o problema no Brasil pelo menos desde os anos 1990. Conquanto em essência o tema seja jurídico-material, não jurídico-processual, o dissenso entre as duas gerações não está na conveniência de uma abordagem mais ou menos processualística. É importante lembrar que a geração anterior ainda não era viciada em contorcer o ordenamento jurídico ao seu «gosto moral pessoal» mediante uso tresloucado de princípios. Era mais subserviente ao texto da Constituição e, por conseguinte, à separação dos Poderes. Daí por que quase nunca incorria na confusão diabólica, hoje tão comum, entre prescrição e descrição, entre normativo e positivo, entre modelos de iure condendo e modelos de iure condito. Por isso, os defensores do controle externo de políticas públicas sempre reconheceram a necessidade de uma profunda reforma constitucional com amplo debate no Congresso Nacional.
Lembre-se que, em uma monocracia liberal («governo das leis»), fundada na ideia de soberania popular, as funções do Estado se dividem em três: 1) edição das leis por representantes eleitos pelo povo [= função jurislativa, desempenhada capitalmente pelo Poder Legislativo]; 2) aplicação interessada, político-discricionária, das leis democráticas [= função administrativa, desempenhada capitalmente pelo Poder Executivo]; 3) aplicação desinteressada, técnico-vinculativa, das leis democráticas [= função jurisdicional, desempenhada capitalmente pelo Poder Judiciário]. Como se percebe, as funções do Estado se definem a partir da noção central de lei. Em contrapartida, em uma telocracia pós-liberal («governo das finalidades coletivas»), o centro gravitacional reside na noção de políticas públicas; sendo assim, é a partir dessa noção que as funções estatais e, em consequência, os Poderes Constituídos da República devem definir-se. Um modelo de Estado telocrático foi desenhado por FABIO KONDER COMPARATO, que entre 1985 e 1986 redigiu por solicitação da direção nacional do Partido dos Trabalhadores um anteprojeto de Constituição Federal para Brasil. O trabalho se encontra publicado com o título Muda Brasil – uma constituição para o desenvolvimento democrático (4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987). Com o objetivo de «livrar a grande política de desenvolvimento das pequenas injunções da rivalidade pessoal ou partidária e criar condições para que o interesse geral prevaleça sobre os interesses particulares», o autor propõe a inserção do planejamento na estrutura político-institucional do País. À vista disso, divide em quatro as funções do Estado: 1) a elaboração de planos de desenvolvimento, bem como a fiscalização de sua execução (desempenhadas pelo Conselho Nacional de Planejamento e pelo Superintendente Nacional de Planejamento); 2) a aprovação dos planos (desempenhada pelo Congresso Nacional); 3) a execução dos planos (desempenhada pelo Poder Executivo); 4) o julgamento da invalidade de leis e atos do Poder Executivo que contrariem os planos (desempenhado pelo Tribunal Constitucional). À luz desse arranjo, fazem todo o sentido o controle externo de políticas públicas e o exercício desse controle pelo Judiciário ou por qualquer outro órgão judicante autônomo instituído pelo sistema constitucional positivo por razões de conveniência, oportunidade e praticabilidade.
É interessante sublinhar que, em artigo clássico, escrito já sob a égide da Constituição de 1988, COMPARATO defende o controle judicial de inconstitucionalidade de políticas públicas, por ação ou omissão, desde que seja realizada uma reforma constitucional (Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. Revista de informação legislativa, v. 35, n. 138, abr./jun. 1998, p. 47: «Tendo em vista a estrutura tradicional das Constituições brasileiras, a introdução do juízo de constitucionalidade de políticas públicas em nosso direito exige, indubitavelmente, uma reforma constitucional que precise a forma processual da demanda, a legitimidade das partes e a competência judiciária»). No texto, propõe-se que: i) a ação seja direta e não incidental; ii) o juízo seja concentrado e não difuso; iii) o órgão judiciário de cúpula da estrutura federativa seja competente para a causa (em caso de política municipal, a competência seria do TJ do Estado em que se encontra o Município em questão; no plano federal, a competência seria do STF); iv) a legitimidade para propor a ação seja do MP, das Mesas Diretoras das Câmaras Legislativas, dos partidos políticos, de sindicatos ou entidades de classe, da OAB e de outras organizações não governamentais constituídas e em funcionamento há pelo menos um ano (obs.: é provável que, hoje, o artigo faria menção à Defensoria Pública); iv) a legitimidade passiva seja do Chefe do Poder Executivo. Como se vê, trata-se de um modelo de constitutione ferenda bem ordenado. Difere muito da «teoria do processo estrutural», que confunde regras de direito fundamental com princípios e princípios com planos de governo. Pior: envolve uma multidão de promotores e juízes de todas as instâncias em um controle de políticas públicas difuso, caótico e errático.
Com isso, trago à apreciação os meus novos senões a uma doutrina que, malgrado cultivada por algumas das cabeças mais brilhantes da intelligentsia jurídica nacional, tem recebido delas um comprometimento idealizado e utópico. Isso os tem cegado para certas experiências malogradas de medidas reestruturantes e para alguns defeitos metodológico-conceituais da teoria que propugnam. Dessa forma, perdem a chance de esquematizar os seus próprios modelos teóricos de modo mais cauteloso, fincando-os no chão da realidade. Nesse sentido, a adesão a essa doutrina vai assemelhando-se a um ato de fé, que bloqueia qualquer tipo de debate racional. É preciso deixar claro, mais uma vez e sempre: ser contra o «processo estrutural» não significa ser contra a consecução dos elevados objetivos almejados pelos seus adeptos. É evidente que problema não são os fins, mas os meios. São os atropelos e, portanto, a falta de maturação a respeito de uma proposta com forte potencial para deformar pro malo a engenharia política-institucional concebida pela Constituição Federal de 1988. Sob o pretexto de erradicar «estados inconstitucionais de coisas», uma lei sobre o «processo estrutural» poderá infundir o seu próprio «estado inconstitucional de coisas»: uma violação generalizada e sistêmica da separação dos Poderes marcada por um «governo de juízes».
Em artigo anterior, levantei dez blocos de problemas (alguns deles graves) que inquinam a «teoria do processo estrutural»; no presente artigo, levanto outros dez. É provável que em artigo futuro chegue eu a outros tantos. Dessa maneira, até lá serão mais ou menos trinta conjuntos de vícios teóricos irresolutos, por se resolver ou ainda mal resolvidos. A despeito disso, existe uma euforia carnavalesca para se aprovar a toque de caixa uma lei ordinária federal sobre a reestruturação judicial de instituições e políticas públicas. Como não poderia deixar de ser, é preocupante essa combinação púbere entre euforia e falta de maturação. Afinal, não se trata de uma lei qualquer. Sua repercussão sobre a vida dos brasileiros será imensurável. Daí por que a lei se juntaria a diplomas como o Código Civil, o Código de Processo Civil, o Código de Defesa do Consumidor, o Código Penal, o Código de Processo Penal e a Consolidação das Leis do Trabalho. Sem embargo, o Código Civil de 1916 demorou 17 anos para ser aprovado; o Código Civil de 2022, 27 anos. Decerto, é indesejável tanto tempo para se debate o projeto de lei. Mas é indesejável, outrossim, aprovar-se de afogadilho. Ainda é necessário escreverem-se muitos textos científicos sobre o assunto (não somente apologias). Ainda é necessário travarem-se muitos debates acadêmicos (debates autênticos, que contraponham entre si os partidários e os adversários do «processo estrutural», não debates inautênticos, que reúnam apenas os partidários ao redor de questões laterais que só para eles fazem algum sentido). Ainda é necessário imprimir a toda essa discussão uma maior interdisciplinaridade, a qual transcenda o universo quadrado e pequeno dos processualistas (trazendo-se também aportes de juristas dos direitos constitucional, administrativo e financeiro, bem como de cientistas e técnicos em gestão de políticas públicas). É cedo demais para que apologistas e contra-apologistas se enfrentem no âmbito diminuto das sessões de comissões parlamentares sem que os argumentos de parte a parte estejam mais amadurecidos. Os dois lados devem desgastar-se no grand débat (o debate inoficial, amplo, real, solto, autorregulado, escrito, longo, profundo e acalorado, que deve caracterizar a literatura científica séria). Só após deve ter lugar o petit débat (o debate oficial, restrito, nominal, cronometrado, curto, oral, heterorregulado, superficial e morno das audiências públicas).
O «processo estrutural» já vigora na prática dentro de um certo «equilibro fino», posto que contrarie o modelo de separação dos Poderes adotado pela Carta Magna. Trata-se de um costume jurisprudencial contra constitutionem, o qual se tem alojado pouco a pouco entre as urdiduras do cenário jurídico nacional. Em outras palavras, apesar de não ser um dado do sistema brasileiro de normas jurídicas, a reestruturação judicial de políticas públicas é um dado da experiência brasileira de práxis jurisprudencial (verdade seja dita, apenas a reestruturação judicial de instituições é um exercício de fato inédito). Por que então tamanha pressa? Se nos países que o adotam o controle judiciário de instituições e políticas públicas se faz sem lei e em regime excepcionalíssimo, cingindo-se a uma experiência jurisprudencial stricto sensu, não seria mais prudente o Brasil imitar a experiência alheia? Editar uma lei não implica generalizar uma práxis cuja generalização é temerária? A lei permitirá «avanços progressistas e progressivos» aos quais o costume jurisprudencial ainda resiste com algum escrúpulo? Antes de embarcarmos [rectius: sermos embarcados] nessa aventura estruturalista, muitas perguntas precisam ser feitas e muitas respostas precisam ser dadas.
*Juiz Federal em Ribeirão Preto/SP. Bacharel pela USP. Especialista, Mestre e Doutor pela PUC-SP. Ex-Presidente da Associação Brasileira de Direito Processual (triênio 2016-2018). Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual. Membro do Instituto Pan-Americano de Direito Processual