Nas profundezas da mediação I
Nas profundezas da mediação há demandas outras além das discutidas
Nas profundezas da mediação há necessidades humanas não atendidas
Nas profundezas da mediação há o que ainda não sabe sabe
Mas que com espaço acrescido
é possível saber
e então dizer
e assim
se entender.
Existe aquela representação clássica, bem conhecida, elaborada por Sigmund Freud, da psique humana como um iceberg. Uma pequena parte consciente, visível, e uma vasta e profunda parte inconsciente, invisível, regendo nossas escolhas, vontades e sendo alvo de resistências. Essa imagem do iceberg é interessante para nos lembrar que, muitas vezes – ainda que nem sempre -, algo que nos aparece em pensamento, algo que achamos que queremos, os motivos pelos quais queremos, são apenas representações secundárias, transfiguradas uma por cima da outra, e de outra, e de outra. E assim sendo, secundárias, não nos satisfazem.
E o que isso tem a ver com a mediação de conflitos? Por que essa lembrança, das profundezas e da complexidade da mente humana, é importante para a prática jurídica consensual, pautada na autonomia da vontade, no diálogo e na autocomposição?
Porque nós, humanos, demasiadamente humanos, precisamos de tempo para enxergar um pouco mais dessa profundeza que nos habita, para saber o que realmente queremos e fazemos questão em nossos caminhos. E no processo de solução de um conflito isso não é diferente.
Porque para tanto é preciso abrir um certo espaço na dinâmica do conflito para que a névoa emocional envolvida possa ser ouvida, elaborada, assentada e transformada, para que assim possa ser possível enxergar além dela.
Porque, ainda que com o tempo consigamos ver com mais nitidez nossas reais necessidades e interesses, e os expressar, existe algo que é deixado de fora quando nos utilizamos da linguagem para nos comunicar.
Porque esta, a linguagem, não consegue abarcar com precisão toda a extensão da imensidão da nossa experiência, em suas múltiplas camadas.
Porque, além de não conseguirmos expressar precisamente tudo aquilo que sentimos e o que realmente queremos (que, muitas vezes, são objetos imateriais e fundamentais, como um pedido de desculpas, o reconhecimento de um esforço, a verdade sobre um fato, etc.), quando o fazemos, quando nos arriscamos em uma tentativa de comunicação, caímos naquele outro abismo, também já bem conhecido, das diferenças entre o que se pensa, o que se quer dizer, o que se diz, o que o outro escuta e o que ele entende, quase sempre em função do que ele quer entender.
Ou seja, a linguagem tem seus limites, a comunicação tem seus limites, e o conhecimento que temos sobre o que realmente necessitamos e queremos, tem seus limites.
Por isso que, quanto maior for a camada emocional envolvida no conflito, como geralmente ocorre em conflitos familiares, societários, mas também em conflitos escolares, condominiais, etc., é importante que a dinâmica da mediação dê espaço para que o existe de mais sentimental nas necessidades das partes tenha a oportunidade de ser trazido à tona e simbolizado. Essa prática é fundamental para que a nossa necessidade humana de escuta e espaço de elaboração e compreensão não retorne transfigurada em agressões ou em exigências negociais rígidas e, no fundo, vazias, inviabilizando a autocomposição.
Foi a partir da observação dessa necessidade, de trazer uma maior humanidade à solução dos conflitos jurídicos, especialmente os de família, que os advogados Stuart G. Webb e Ron D. Ousky desenvolveram o chamado “Direito Colaborativo”. Autores do livro “O caminho colaborativo para o divórcio”[1], eles arquitetaram um procedimento colaborativo que envolve a união de forças de um time composto por advogados, mediadores, psicólogos e consultores financeiros, para que junto com as partes possam trabalhar em prol de um entendimento, com todo o acolhimento e expertise que a demanda necessite.
Tive a feliz oportunidade de participar de uma palestra-conversa que os referidos autores concederam em 22 de abril de 2021 à IACP – International Academy of Collaborative Professionals[2], e me marcou bastante o único conselho que Stuart deu aos advogados, mediadores e demais profissionais colaborativos presentes, que foi:
- Trust Silence
(Confie no silêncio)
- Let go of control
(Largue o controle)
- Trust the team
(Confie no time)
- Hold as much space as you can
(Sustente o máximo de espaço que conseguir)
- Keep innovating creatively
(Continue inovando criativamente)
Certamente voltarei aqui em outra oportunidade para comentar mais sobre o Divórcio Colaborativo e cada um desses preciosos conselhos, mas podemos desde já notar a ênfase no silêncio, no espaço e no largar o controle que esses pioneiros dão, justamente em razão das profundezas do que está envolvido em uma mediação. Claro que decisões mais urgentes podem ser necessárias durante esse processo, sobretudo em seu início, e para essas existem os acordos provisórios, oportunizando que o restante das negociações mediadas possam tomar o seu tempo.
A mediação de conflitos é, sobretudo, uma aposta no potencial dialógico do ser humano. Nesse sentido, uma consequência última de um tal procedimento colaborativo, que de tão humano acaba sendo terapêutico, é a restauração da dignidade das partes que eventualmente possa ter sido perdida na dinâmica conflitual. Isso se dá tanto pela possibilidade da restauração da relação, ainda que de outras formas, ou no mínimo do respeito um dia havido, quanto pela recuperação do poder pessoal que se consegue ao se decidir sobre a sua própria vida e seus emaranhamentos. A mediação de conflitos é, por fim, em suas profundezas, uma prática de autonomia, de coragem, e de tomada de responsabilidade.
Referências:
[1] Webb, Stuart G. Ousky Ron D. The Collaborative Way to Divorce: The Revolutionary Method that Results in Less Stress, Lower Costs, and Happier Kids — without Going to Court, Plume Books, 2007.
[2] Para participar dos eventos da IACP, acesse: <www.collaborativepractice.com>.