O Código Civil na defesa do ambiente: direito privado à serviço da sustentabilidade
Por Carlos Sérgio Gurgel[1]
O Código Civil de 2002, instituído pela Lei nº 10.406, marcou uma profunda mudança na forma como o ordenamento jurídico brasileiro aborda questões civis, incorporando novos paradigmas de responsabilidade e sustentabilidade. Entre os avanços, destaca-se a inclusão de dispositivos que ampliam a proteção ambiental, alinhando o Código às diretrizes constitucionais estabelecidas no artigo 225 da Constituição Federal de 1988.
Este artigo analisa como o Código Civil vigente interage com a proteção ambiental, atualizando reflexões feitas à época de sua implementação, em 2003, e discutindo suas implicações para a responsabilidade civil, a função social da propriedade, os direitos de vizinhança, a gestão de recursos hídricos e a responsabilização de atores específicos. A evolução das demandas socioambientais, como o combate às mudanças climáticas e a promoção do desenvolvimento sustentável, exige que a legislação civil desempenhe um papel ativo na proteção do meio ambiente e na prevenção de danos ambientais.
O Código Civil vigente solidificou o regime de responsabilidade objetiva em relação a danos ambientais. O artigo 927, parágrafo único, dispõe que a responsabilidade independe de culpa quando a atividade, por sua natureza, representar risco aos direitos de terceiros. Isso reflete o alinhamento com a legislação ambiental, como a Lei nº 6.938/1981 (Política Nacional do Meio Ambiente) e a Lei nº 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais), que priorizam a reparação do dano ambiental.
A responsabilidade objetiva busca garantir que o poluidor ou degradador seja responsabilizado pela reparação do dano, independentemente de intenção ou negligência. No artigo 931, por exemplo, empresários e empresas respondem por danos causados pelos produtos que colocam no mercado, o que se aplica àqueles que exploram recursos naturais de maneira irresponsável, como no caso de produtos contaminados que afetam a saúde pública.
Ademais, o artigo 929, atualizado com interpretações doutrinárias, esclarece que mesmo incapazes podem ser responsabilizados pelos danos causados ao meio ambiente, desde que não se comprometa sua sobrevivência ou a de seus dependentes. Essa visão assegura que todos os agentes envolvidos em danos ambientais sejam adequadamente responsabilizados.
A responsabilidade civil é uma das bases da proteção ambiental no Código Civil. O artigo 927, parágrafo único, consolidou a responsabilidade objetiva, dispensando a necessidade de comprovar culpa em casos em que a atividade do agente representou risco para terceiros. Essa previsão é essencial para a tutela ambiental, pois simplifica a reparação de danos ambientais, que frequentemente envolvem múltiplos agentes e cadeias de impactos indiretos.
Outro ponto relevante é o artigo 929, que estende a responsabilidade a incapazes quando os responsáveis legais não puderem responder pelos danos. Essa inovação reflete um esforço legislativo para evitar a impunidade e garantir que o dano ambiental seja reparado, preservando o princípio do poluidor-pagador.
A solidariedade prevista nos artigos 942 e 934 amplia a eficácia das reparações, permitindo que qualquer responsável, direto ou indireto, seja compelido a responder pelo dano. Essa regra é particularmente relevante em empreendimentos complexos, como obras de grande impacto ambiental, em que vários atores podem ser responsabilizados por atos omissivos ou comissivos.
A consolidação da responsabilidade objetiva no Código Civil reflete a preocupação com a eficácia da proteção ambiental, afastando a discussão subjetiva sobre dolo ou culpa e concentrando-se na reparação do dano e no nexo causal entre a atividade e o prejuízo. Isso facilita a aplicação do princípio da precaução, que exige ações preventivas mesmo diante de incertezas científicas.
O artigo 1.228 do Código Civil transformou o entendimento sobre o direito de propriedade no Brasil ao incorporar a função social da propriedade como condição essencial para o exercício desse direito. Além de atender a finalidades econômicas e sociais, a propriedade deve cumprir exigências ambientais, preservando flora, fauna, equilíbrio ecológico e patrimônio histórico e cultural.
Essa abordagem é reforçada pelo artigo 225 da Constituição Federal, que declara que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é um bem de uso comum do povo e essencial à qualidade de vida. O Código Civil se alinha a esse preceito, impondo restrições ao uso da propriedade que prejudiquem o interesse coletivo ou causem degradação ambiental.
Na prática, a função social da propriedade tem sido utilizada para justificar a imposição de medidas como a recuperação de áreas degradadas, o cumprimento do Código Florestal (Lei nº 12.651/2012) e a preservação de Áreas de Preservação Permanente (APPs) e de Reserva Legal. A jurisprudência também tem reforçado esse entendimento, reconhecendo que o uso inadequado da propriedade, com consequências ambientais negativas, configura descumprimento de sua função social.
Os direitos de vizinhança, previstos no Capítulo V do Título III do Código Civil, regulam as relações entre proprietários e possuidores de imóveis, impondo limites ao uso da propriedade quando este interfere nos direitos alheios. O artigo 1.277 estabelece que o proprietário ou possuidor de prédio que sofre com interferências prejudiciais, como poluição sonora, visual, atmosférica ou hídrica, pode exigir a cessação dessas práticas.
Esse dispositivo é especialmente relevante em áreas urbanas e industriais, onde os conflitos ambientais são mais frequentes. A aplicação do artigo requer a análise de fatores como o zoneamento urbano, a destinação da área (residencial, comercial ou industrial) e os limites de tolerância da comunidade. Em muitos casos, planos diretores municipais servem como referência para balizar o direito de vizinhança e as obrigações ambientais dos proprietários.
Os direitos de vizinhança também são aplicados em contextos rurais, onde atividades agrícolas ou pecuárias podem impactar propriedades vizinhas. A legislação busca equilibrar o desenvolvimento econômico e a proteção ambiental, garantindo que a atividade produtiva respeite os direitos dos vizinhos à saúde e à qualidade de vida.
A gestão de recursos hídricos ganhou atenção especial no Código Civil, que incluiu uma seção específica para tratar do tema. O artigo 1.288 regula o fluxo natural das águas, proibindo o proprietário de prédio superior de realizar obras que prejudiquem o curso natural das águas em direção ao prédio inferior.
Essa norma dialoga com a Lei nº 9.433/1997, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos, reforçando a importância da gestão sustentável da água. O artigo 1.292, por sua vez, permite a construção de barragens e açudes, mas impõe a obrigação de indenizar terceiros em caso de prejuízos.
No cenário atual, em que a escassez hídrica e os conflitos pelo uso da água são crescentes, essas disposições são cruciais para garantir o equilíbrio entre o uso econômico dos recursos hídricos e a preservação ambiental. A jurisprudência tem utilizado essas normas para coibir práticas abusivas, como o desvio ilegal de cursos d’água e a contaminação de mananciais.
O Código Civil atribui responsabilidade ambiental a diversos agentes, incluindo consultores, auditores e instituições financeiras. No caso dos consultores ambientais, a responsabilidade é regida pelos artigos 186 e 927, que tratam da culpa e da obrigação de reparar danos. O empreendedor continua sendo o principal responsável pelos danos ambientais, mas pode buscar ressarcimento de consultores que tenham agido com negligência ou imprudência.
As instituições financeiras, por sua vez, também são responsabilizadas quando financiam projetos que causam danos ambientais. Essa interpretação, corroborada pela Lei nº 8.974/1995 (Lei de Engenharia Genética), impõe às instituições o dever de diligência ao avaliar os riscos ambientais dos empreendimentos que financiam.
Essa extensão da responsabilidade reforça a necessidade de um controle rigoroso sobre as práticas empresariais, incentivando o compliance ambiental e a adoção de critérios ESG (Environmental, Social and Governance) nas operações financeiras.
Conclui-se que o Código Civil vigente oferece um arcabouço jurídico robusto para a proteção ambiental, alinhando-se às diretrizes constitucionais e às legislações específicas. Por meio da responsabilidade objetiva, da função social da propriedade, dos direitos de vizinhança e da gestão sustentável dos recursos naturais, o Código integra a proteção ambiental ao direito privado, garantindo um equilíbrio entre desenvolvimento econômico e preservação ambiental.
A aplicação efetiva dessas normas depende de uma interpretação integrada, que leve em conta a interdependência entre os direitos civis e o meio ambiente. O fortalecimento da governança ambiental e a promoção de práticas sustentáveis são indispensáveis para assegurar que as disposições do Código Civil cumpram seu papel na proteção do meio ambiente para as gerações presentes e futuras.
[1] Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa (Portugal), Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Especialista em Direitos Fundamentais e Tutela Coletiva pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Norte, Professor Adjunto IV (efetivo) do Curso de Direito da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Campus de Natal, Advogado Ambiental, membro da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RN e Geógrafo. Possui diversos artigos e capítulos publicados em periódicos e livros nacionais e internacionais, Fundador do escritório Sérgio Gurgel Advocacia Ambiental, em Natal/RN.