O réu foragido pode ter seu interrogatório negado em videoconferência?
Após o surgimento da Pandemia da COVID-19 a sociedade e as relações interpessoais sofreram grande modificação, adaptando a rotina ao mundo virtual. O Poder Judiciário, por sua vez, adaptou-se à nova realidade e passou a permitir não só o tele trabalho, mas também a realização de atos processuais, que antes eram presenciais, de forma virtual.
No processo penal as alterações foram significativas, especialmente quando relacionadas aos denunciados. O artigo 185 do Código de Processo Penal prevê que o acusado será interrogado pessoalmente no estabelecimento em que estiver recolhido, se preso, ou na presença física do Juiz, se solto estiver. Excepcionalmente, conforme referido no §2° do mesmo artigo, o Juiz, por decisão fundamentada, poderá realizar o interrogatório por videoconferência, desde que a medida seja necessária para atender uma das seguintes finalidades: prevenir risco à segurança pública, viabilizar a participação do réu quando por enfermidade ou circunstância pessoal não puder comparecer ao ato, impedir a influência do réu no ânimo das testemunhas ou vítima, ou ainda, por gravíssima questão de ordem pública.
Sob o pretexto de evitar a paralização da justiça, especialmente aos casos que exigem mais celeridade, passou-se a admitir a audiência, seja ela de custódia ou de instrução, na modalidade virtual, se assim concordar a defesa.
Contudo, na tentativa de burlar a Justiça, sob o manto da má-fé, os réus foragidos e com mandado de prisão por cumprir, passaram a comparecer nas audiências virtuais, sob o pretexto de exercício da autodefesa. Ora, muito conveniente aos réus, pois que na modalidade virtual podem permanecer foragidos sem deixar de defender-se.
Para compreensão das decisões abaixo citadas é necessário fazer uma breve análise acerca do interrogatório. Vigora no Processo Penal brasileiro o princípio da ampla defesa, que se consubstancia no direito de o acusado defender-se pessoalmente e através da defesa técnica de um advogado. O interrogatório, como meio de defesa, insere-se no direito à autodefesa. Também é direito do acusado manter-se em silêncio e não estar presente no ato, quando devidamente intimado.
Ocorre que, em sua maioria, quando o acusado está foragido, sua intimação também não foi realizada, quedando-se em lugar incerto e não sabido. Por vezes, o acusado escusa-se ao comparecimento perante à Justiça, porém, tem pleno conhecimento do processo através de seu patrono que, em sua maioria, conhecem o paradeiro do réu, mas não o apresenta para que permaneçam livres.
Dessa forma, o acusado que decide comparecer ao interrogatório para exercer seu direito à autodefesa, mesmo estando com mandado de prisão aberto não passa de uma manobra de má-fé perante os Poderes Públicos. Em outras palavras, o acusado quer exercer o seu direito, mas não sua obrigação perante à Justiça.
Em decisão recente, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que o réu foragido não poderia ser ouvido em audiência virtual, já que se estaria premiando a má-fé deste, veja-se: “[…] além disso, é evidente que o paciente se furtar à aplicação da lei penal já que, desde a decretação de sua prisão preventiva (junto com o recebimento da denúncia), não foi mais localizado pelo Poder Público, constando como procurado em consulta ao sistema VEC. Assim, não é caso de aplicação do artigo 220 do Código de Processo Penal, ainda que realizada uma interpretação in bonam partem, sob pena de premiar a astúcia do acusado em escapar da decisão que decretou sua prisão preventive. […]”[1].
No mesmo sentido é o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, que dispõe:
– APELAÇÃO CRIME – RECURSO INTERPOSTO PELA DEFESA – CRIME DE ROUBO IMPRÓPRIO – ARTIGO 157, §1º, DO CÓDIGO PENAL – PLEITO DE CONCESSÃO DOS BENEFÍCIOS DA JUSTIÇA GRATUITA – NÃO CONHECIMENTO – MATÉRIA AFETA AO JUÍZO DA EXECUÇÃO – PLEITO DE NULIDADE DO FEITO A PARTIR DA AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO – NÃO OCORRÊNCIA – ACUSADO QUE SE ENCONTRAVA FORAGIDO DO SISTEMA PENAL – ACUSADO QUE COMPARECEU À AUDIÊNCIA TÃO SOMENTE PORQUE ESSA FOI REALIZADA POR MEIO DE VIDEOCONFERÊNCIA, PERMANECENDO EM LOCAL INCERTO E NÃO SABIDO – IMPOSSIBILIDADE DE INTERROGATÓRIO DE RÉU QUE SE ENCONTRA FORAGIDO – PRECEDENTE DO STJ […]
(TJPR – 3ª Câmara Criminal – 0062568-62.2018.8.16.0014 – Londrina – Rel.: DESEMBARGADOR JOÃO DOMINGOS KÜSTER PUPPI – J. 04.05.2023).
A referida decisão se deu em virtude de o acusado encontrar-se foragido, com mandado de prisão aberto e não ter sido localizado e, portanto, mesmo que a audiência tivesse ocorrido de forma presencial no fórum o réu não compareceria ao ato, do contrário, haveria a possibilidade de cumprimento do seu mandado de prisão. Ou seja, diante da evidente tentativa de furtar-se ao cumprimento da lei mediante má-fé, não há que se falar em ilegalidade ou nulidade processual.
Aliás, ao nosso ver, não há outra alternativa senão a de proibir-se a presença do réu em audiência virtual estando foragido e com mandado de prisão aberto em seu desfavor. Isso porque, se de um lado temos o direito à autodefesa, do outro, temos o dever de cumprimento da lei. Não há porque pensar na boa-fé de acusado que se furta durante todo o processo do acesso da Justiça, mas que, diante da impossibilidade de ser capturado, comparece ao seu interrogatório com a finalidade única de defender-se, em momento conveniente para si.
Por conseguinte, mover a máquina Judiciária, com as inúmeras tentativas infrutíferas de intimações, citações, buscas e apreensões por encontrar-se o denunciado foragido, não parece razoável ou proporcional. Isso porque, deve-se evitar o incentivo às atitudes dotadas de má-fé perante o Poder Público, que tem como preceito fundante o interesse da coletividade em detrimento do interesse do particular, primando pela segurança jurídica e pela moralidade da Justiça.
Referências:
[1] STJ – HC: 640770 SP 2021/0017225-6, Relator: Ministro JORGE MUSSI, Data de Publicação: DJ 25/01/2021