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O STJ, o respeito aos precedentes e a integridade do direito tributário

*imagem utilizada nesta Coluna: “O cobrador de impostos”, Pieter Brueghel.

 

Em 2017, no julgamento dos embargos de divergência em recurso especial n° 1.517.492/PR, o STJ decidiu que a União não pode tributar, pelo IRPJ e CSLL, os créditos presumidos de ICMS concedidos pelos Estados aos contribuintes localizados em seu território. No voto vencedor da Ministra Regina Helena Costa, o ponto fundamental da decisão foi a proteção ao pacto federativo.

 

Nesse julgamento, a natureza do crédito presumido (se é receita ou não) não foi objeto de significativa controvérsia. Essa questão sequer era relevante. Afinal, como bem colocado pelo posicionamento majoritário, a competência da União para tributar a renda não estava em dúvida. O objetivo era impedir que a União, ao exercer a sua competência, reduzisse a eficácia das políticas fiscais implementadas pelos Estados da Federação.

 

Inclusive, apesar de o caso analisado pela Primeira Seção tratar do crédito presumido, a fundamentação do acórdão pouco levou em consideração a forma como essa redução tributária era concedida. O argumento contrário à incidência do IRPJ e CSLL consistiu na impossibilidade de onerar incentivos fiscais, gênero do qual o crédito presumido é apenas espécie. E não poderia ser diferente. A razão de decidir está baseada na vedação à União mitigar, por meio da tributação, as legítimas escolhas realizadas pelos Estados acerca do que irão incentivar. Para essa finalidade, é absolutamente irrelevante se o caso trata de isenção, redução de base de cálculo, diferimento ou crédito presumido.

 

Os fundamentos do precedente da Primeira Seção foram bem compreendidos pela Primeira Turma. Ao julgar o recurso especial n° 1.222.547/RS, esse colegiado impediu a incidência do IRPJ e da CSLL sobre o diferimento de ICMS outorgado a determinado contribuinte, a partir do entendimento de que o precedente obrigatório era integralmente aplicável. Como bem destacado pelo Ministro Gurgel de Faria em voto-vista, “embora a hipótese ora tratada não seja idêntica ao precedente citado, cumpre observar que ambos os julgados tratam de incentivo fiscal relativo ao ICMS, devendo, por isso, ser aplicado o mesmo entendimento”. Essa decisão representou correta aplicação do sistema de precedentes e privilegiou, por isso, a integridade e coerência da jurisprudência.

 

O mesmo caminho não foi percorrido pela Segunda Turma. Nos autos do recurso especial n° 1.968.755/PR, foi admitida, à unanimidade, a incidência do IRPJ e CSLL sobre isenção de ICMS concedida pelo Estado do Paraná. De acordo com o Ministro Mauro Campbell Marques, não seria possível generalizar o entendimento da Primeira Seção, ao ponto de impedir a tributação federal sobre todo e qualquer incentivo concedido pelos Estados da federação.

 

O Ministro defendeu a existência de distinções entre a isenção e o crédito presumido, que impediriam a aplicação do precedente obrigatório. A isenção representaria um incentivo fiscal negativo, que nunca teria sido contabilizado como receita. Por meio dela, o contribuinte apenas pagaria menos imposto. O crédito presumido, por sua vez, representaria uma grandeza positiva, que poderia, em tese, ser considerado receita. Assim, apenas com relação à essa última modalidade de incentivo, o entendimento da Primeira Seção seria aplicável.

 

A decisão da Segunda Turma, contudo, possui graves déficits argumentativos e o entendimento nela firmado dever ser definitivamente rejeitado. A superação de um precedente, ou a sua não aplicação em razão de distinção, exige que órgão judicial se desincumba de pesado ônus argumentativo. O precedente judicial possui o caráter de norma jurídica abstrata, construída após intensa dialeticidade entre as partes e o Poder Judiciário. Seu afastamento não pode ser casuístico e demanda a apresentação de razões robustas para sua realização.

 

Nesse contexto, surpreende o fato de a decisão da Segunda Turma não justificar o fundamento para institutos do mesmo gênero – incentivos fiscais – possuírem tratamento absolutamente díspares, apenas por serem de espécies distintas, isto é, crédito presumido e isenção.

 

A distinção entre isenção e crédito presumido, sob a alegação de que a primeira é um elemento negativo, jamais contabilizado, enquanto que a segunda é um ingresso positivo, é confusa e questionável.

 

Não está claro como esse fato é suficiente para infirmar as razões de decidir da Primeira Seção que, como visto, está baseada na proteção ao pacto federativo. Da análise do acórdão, é impossível compreender como a tributação da isenção, ainda que considerada um elemento negativo, não reduz, indiretamente, a eficácia da política fiscal dos Estados.

 

A ausência de clareza com relação à consistência da tese em contraposição ao precedente da Primeira Seção já deveria ser suficiente para impedir o seu acatamento. Mas sua rejeição se impõe também pelo fato de a própria distinção ser inadequada.

 

Superada a discussão sobre as subvenções fiscais serem, ou não, renda/receita do beneficiário (há significativa controvérsia sobre o tema, com relevantes correntes doutrinárias contrárias), não é possível separar o crédito presumido da isenção, como se o primeiro pudesse representar receita e a última não.

 

O Pronunciamento Técnico 07 (R1) – Subvenção e assistência governamentais inclui no seu âmbito de incidência a isenção tributária, assim entendida como “a dispensa legal do pagamento de tributo sob quaisquer formas jurídicas (isenção, imunidade, etc.)”. De acordo com parágrafo 12 desse pronunciamento, essas subvenções – o que inclui as dispensas de pagamento de qualquer espécie, inclusive isenções – devem ser reconhecidas como receitas, com expressa vedação a qualquer lançamento a crédito diretamente no patrimônio líquido.

 

Essa mesma norma, em seu parágrafo 15, (c), determina que “assim como os tributos são despesas reconhecidas na demonstração do resultado, é lógico registrar a subvenção governamental que é, em essência, uma extensão da política fiscal, como receita na demonstração do resultado”. Para o pronunciamento, se os tributos são despesas, as subvenções que os reduzem devem ser contabilizadas como receitas. Para aplicação desse raciocínio, é irrelevante se isto ocorre por meio da isenção, crédito presumido, redução de base de cálculo ou diferimento.

 

Inclusive, o art. 195-A da Lei n° 6.404/76 autoriza a assembleia geral destinar para reserva de incentivos fiscais, espécie de reserva de lucros, a parcela do lucro líquido decorrente das subvenções, sem fazer qualquer distinção acerca da modalidade em que esta foi concedida. Antes da Lei n° 11.638/07, que alterou a Lei n° 6.404/76, esses valores eram creditados em reserva de capital. O Pronunciamento Técnico 07 (R1) e essas alterações legislativas esclarecem que, ao menos sob a perspectiva societária e contábil, os incentivos fiscais concedidos a título de subvenção – quaisquer que sejam – são receitas.

 

Essas observações servem para evidenciar que o argumento apresentado pela Segunda Turma não pode ser sustentado pela própria base que tentou utilizar para ser construído.

 

Contudo, esse impasse entre as turmas na aplicação do precedente será resolvido pelo STJ. Por meio da sistemática dos recursos repetitivos, com início de julgamento previsto para o dia 26/4/2023, o STJ definirá se o entendimento da Primeira Seção é aplicável a todas as modalidades de incentivos fiscais, ou se a Segunda Turma está correta em restringir, ainda que mediante fundamentação deficitária, a interpretação conferida anteriormente.

 

Há notícias de que o Ministério da Fazenda acompanha o caso de perto, ao ponto, inclusive, de realizar “despachos” com ministros da Corte. As informações relatam que a autorização da tributação dos demais incentivos será fundamental para o cumprimento do arcabouço fiscal apresentado pelo Governo Federal.

 

Esse contexto é preocupante, mas apresenta oportunidade singular para o STJ, que poderá, por meio desse novo julgamento, conferir efetividade ao sistema de precedentes e manter a integridade do direito tributário.

 

A cultura dos precedentes exige respeito aos entendimentos já consolidados, que devem ser aplicados aos casos análogos, salvo razões suficientes para o seu afastamento. Pois bem. Ao rejeitar a tese da Segunda Turma, a Corte garantirá que argumentos frágeis e incoerentes não sejam capazes de revisar todo toda uma jurisprudência, o que é fundamental para a preservação da segurança jurídica.

 

Por fim, ao não sucumbir aos apelos orçamentários, o STJ garantirá a autonomia do Direito Tributário em relação às necessidades financeiras sempre urgentes do Estado. Reafirmará que a tributação é uma relação de direito, e não apenas de poder.

 

A pressão do Governo sobre o STJ, para que a Corte viole suas próprias normas para proteger as receitas do Estado, revive as lições de Alfredo Augusto Becker. O jurista gaúcho, ao criticar os que buscavam utilizar o direito tributário como ferramenta de arrecadação, afirmava que esses autores matavam o direito, ficando apenas com o tributário. Espera-se que a Corte responsável pela guarda da legislação federal cumpra o seu papel e proteja o que há de jurídico na tributação.

 

Colunista

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Gabriel Moreira
Graduado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e Pós-graduando em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Advogado.

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