Reflexões sobre a retrovenda (pactum redimendi) por ocasião da Páscoa na tradição judaico-cristã.
Os Católicos vivenciamos nestes dias a Festa da Páscoa, que celebra a passagem de Cristo da Morte para a Vida. A Tradição Cristã afirma que a Paixão e Morte de Cristo foi o preço pago pela nossa redenção. Recentemente, aprendi a partir de uma homilia do Padre Danilo Stradioto, da Congregação dos Legionários de Cristo, que a palavra redenção vem de redemptio, ou seja, comprar de volta ou resgatar, pressupondo a compra (emptio). Neste sentido, o uso da palavra redenção no contexto do Novo Testamento pode fazer parecer que os escritores sagrados conceberam a obra salvífica de Cristo “como um preço pago a alguém pelo resgate do homem, escravo do pecado? A pergunta justifica-se tanto mais quanto a linguagem profana da libertação de escravos e prisioneiros supõe a paga de um preço ao detentor destes”.[1]
O pactum redimendi (ou pactum reemendi) é um dos vários nomes atribuídos ao pacto de retrovenda no Direito Romano. Trata-se de peculiar instituto que não teve um nomen iuris no Direito Romano e que apresenta “elevado número de denominações, em diferentes épocas e em diferentes idiomas”.[2] No Código Civil brasileiro, nos termos do art. 505, o pacto de retrovenda tem origem negocial: “O vendedor de coisa imóvel pode reservar-se o direito de recobrá-la no prazo máximo de decadência de três anos, restituindo o preço recebido e reembolsando as despesas do comprador, inclusive as que, durante o período de resgate, se efetuaram com a sua autorização escrita, ou para a realização de benfeitorias necessárias”.
Já no antigo Direito Hebreu, a retrovenda sobre bens imóveis era imposta em virtude de Lei, conforme se pode constatar do Livro do Levítico 25, 23-27: “A terra não se venderá para sempre, porque a terra é minha, e vós estais me minha casa como estrangeiros ou hóspedes. Portanto, em todo o território de vossa propriedade, concedereis o direito de resgatar a terra” (terra quoque non veniet in perpetuum quia mea est vos advenæ et coloni mei estis. unde cuncta regio possessionis vestræ sub redemptionis condicione vendetur)”. Vê-se, pois, na tradução da Vulgata a utilização da expressão redemptionis no sentido de resgatar a terra no contexto da retrovenda.
Nas comunidades judaicas, a retrovenda está ligada diretamente a época da Páscoa Judaica (ou Pessach), que celebra a libertação dos judeus da escravidão no antigo Egito. Os Judeus conservam a tradição de não consumirem pães (ou quaisquer alimentos) fermentados, o que se estende também para as bebidas fermentadas. Aos alimentos e bebidas fermentados dá-se o nome de chamêtz, que deve ser consumido antes da páscoa. O que sobra, deve ser vendido a um não judeu: “Schlomo Bistritzky lembra-se de quando seu pai era rabino-mor em Israel: ‘O chamêtz era vendido a conhecidos, no caso, a um advogado árabe. Logo depois do Pessach, ele voltava e meu pai comprava o chamêtz de volta”.[3] Por se tratar da compra e venda de bens consumíveis, para além da questão da confiança entre as partes, há que se considerar também o fato de que a parte não-judia deve se comprometer a não consumir especialmente as bebidas e devolvê-las após a época do Pessach. Não se pode olvidar que uma garrafa de vinho (que é uma bebida fermentada) pode alcançar preço na casa dos milhares de reais, e que há notícia de golpes dados em Israel por pessoas que adquiriram o chamêtz a preço simbólico e depois alegaram que consumiram tais bens a fim de se recusar ao cumprimento da retrovenda. A fim de evitar tais problemas, alguns judeus guardam o chamêtz em um quarto na própria residência durante o período do resgate. Por outro lado, a tradição rabínica considera que a venda por si só já transfere a propriedade do bem (não obstante não ser seguida da tradição), de modo que o não-judeu deve ser considerado verdadeiro proprietário do bem, impondo-se a necessidade do pagamento do preço para o exercício do direito de resgate da coisa: “O contrato de venda de Chametz permite a guarda, na casa da pessoa, de Chametz do qual o proprietário não queira se desfazer, pois esses alimentos deixam de pertencer a ele, passando a ser propriedade do não judeu que os adquiriu. Esse contrato não é, como muitos pensam, apenas um estratagema ridículo para burlar as leis da Torá – porque aquele que adquire o Chametz pode, se assim o quiser, ficar de posse daquilo pelo que comprou. Isso raramente ocorre; mas, quem vende seu Chametz tem que estar ciente de que não se trata de uma venda de ‘faz-de-conta’”.[4]
Pode-se objetar, contudo, que o nosso Código Civil apenas prevê (ou permite) a compra e venda de bens imóveis justamente por este motivo. A nosso sentir, a menção apenas aos bens imóveis no art. 505 do Código Civil brasileiro não significa que o nosso direito vedou a estipulação da cláusula de retrovenda na compra e venda de bens móveis. É conhecida a lição de que tais normas sobre direito contratual no Código Civil são de caráter dispositivo, admitindo-se sempre a possibilidade dos contratantes disporem em sentido diverso, com fundamento no autorregramento da vontade e observando os limites impostos pelo ordenamento jurídico Para Pontes de Miranda, a menção unicamente a bens imóveis “não quer dizer que o sistema jurídico brasileiro sòmente admite o pacto de retrovenda de bem imóvel”.[5] É também neste sentido o entendimento do Superior Tribunal de Justiça: “Consoante o entendimento pretoriano, não há incompatibilidade entre a cláusula de retrovenda e o contrato de compra e venda de bens móveis, funcionando aquele puramente como garantia, sem força suficiente, portanto, para anular o negócio jurídico em sua integralidade” (REsp n. 260.923/SP, relator Ministro Fernando Gonçalves, Quarta Turma, julgado em 7/10/2003, DJ de 20/10/2003, p. 277).[6]
Um outro silêncio do Código Civil brasileiro deu-se em relação ao pacto de revenda. O Código Civil e Comercial Argentino atual prevê expressamente tal acordo: “Artículo 1164. Pacto de reventa. Pacto de reventa es aquel por cual el comprador se reserva el derecho de devolver la cosa comprada. Ejercido el derecho, el vendedor debe restituir el precio, con el exceso o diminuición convenidos”. Tal pacto é chamado de pacto de retrocompra por Pontes de Miranda, e também parece-nos inexistir qualquer proibição de pactuação nestes termos em nosso sistema, posto que o legislador “não cerceou a autonomia da vontade; apenas edictou normas sôbre o pacto que reputou mais frequente”.[7]
Ora, mas se fomos resgatados ou recomprados por Cristo, isto significa que por ele fomos vendidos como escravos ao demônio? Os exegetas, contudo, defendem que o homem reduziu-se a condição de escravo do demônio voluntariamente, em razão de uma artimanha do antigo inimigo de Deus. Assim como Esaú vendeu o seu direito de primogenitura a Jacó por um prato de comida (Gênesis 25, 29-34), o homem desprezou a dádiva de sua alma em troca de um preço vil pago pelo demônio. Foi o homem que se vendeu como escravo ao demônio, portanto.
A possibilidade de alguém reduzir-se a condição de escravo voluntariamente era admitida durante toda a antiguidade e ainda debatida na modernidade. Fernão Pérez (1530-1595), discípulo de São João de Ávila e que foi professor de Teologia em Évora e depois Reitor da mesma Universidade, trata da questão no seu tratado De restitutione. Defendendo a licitude da escravidão com base no direito das Gentes e à luz da sagrada Escritura, discorre sobre os títulos jurídicos da servidão lícita. Um destes títulos reconhecidos por Fernão Pérez é o direito de venda, realizado de plena vontade ou consentida.[8] Exemplo disto se encontra no Livro do Levítico 25, 47-48: “Se se tornar rico o estrangeiro, estabelecido no meio de ti, e teu irmão, seu vizinho, se tornar pobre e se vender a esse estrangeiro que vive no meio de ti, haverá para aquele que se vende um direito de resgate: um de seus irmãos poderá resgatá-los” (si invaluerit apud vos manus advenæ atque peregrini et adtenuatus frater tuus vendiderit se ei aut cuiquam de stirpe ejus post venditionem potest redimi qui voluerit ex fratribus suis redimet eum)”.
Outro exemplo seria o de São Paulino e demais heróis cristãos que voluntariamente se ofertaram a escravidão em troca da libertação de irmãos na fé. Mas, apesar da escravidão voluntária já haver caído em desuso em Portugal e nas outras nações cristãs, Fernão Pérez reputa-a lícita entre os infiéis naquelas localidades em que inexiste disposição de direito positivo ou costumeiro em sentido contrário: “Assim, a troco de conservar a vida ou em caso de extrema ou gravíssima necessidade, por não haver outra forma de socorro, poderia qualquer vender-se sem pecado”.[9]
Ora, havendo o homem se reduzido a condição de escravo do demônio porque alienou sua alma a ele, coube a Jesus Cristo resgatá-lo dando a sua vida por ele, conforme preceitua o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos 10, 45: “Porque o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em redenção por muitos” (nam et Filius hominis non venit ut ministraretur ei sed ut ministraret et daret animam suam redemptionem pro multis)”.
Trata-se, pois – como a alma havia sido concedida por Deus ao homem que, por sua vez, a alienou ao demônio -, de exercício do direito de retrovenda em face de terceiro, conforme preceitua o art. 507 do Código Civil brasileiro: “O direito de retrato, que é cessível e transmissível a herdeiros e legatários, poderá ser exercido contra o terceiro adquirente”. Jesus Cristo, o homem-Deus, em sua infinita bondade, deu-se voluntariamente a fim de resgatar os seus do cativeiro imposto por uma artimanha demoníaca, portanto.
Para Pontes de Miranda, o pacto de retrovenda que tenha por objeto a alienação de bens móveis não é oponível a terceiro que veio a adquirir o bem.[10] Contudo, admite tal eficácia a retrovenda de bens móveis caso tenha havido registro do pacto, “se admissível na espécie”.[11] Em relação a bens imóveis, entende-se que a oponibilidade a terceiros não decorre da mera estipulação da cláusula de retrovenda, mas sim do registro do pacto de retrovenda no Cartório de Registro de Imóveis.[12]
Ademais, é interessante notar que, no antigo direito hebreu, o direito de resgatar qualquer judeu reduzido voluntariamente a escravidão pode ser exercido por qualquer membro da mesma nação, conforme já vimos no Livro do Levítico 25, 47-48. O Código Civil brasileiro também alude a ideia de resgate para se referir a retrovenda no seu artigo 505, referindo-se a um “período de resgate”. Mas, diversamente de nossa tradição romanística (que prevê apenas um caráter negocial a retrovenda), o direito de resgate no levirato era imposto por lei e de amplitude maior do que a nossa.
Por fim, não se pode reduzir o gesto salvífico de Cristo a mera compra material ou ato de conteúdo patrimonial. Não se pode ignorar a linguagem simbólica ou metafórica tanto do Antigo como também do Novo Testamento. Destarte, pode-se afirmar que o cristão “foi adquirido pelo Pai da mesma maneira como o Povo de Israel foi adquirido por Jahvé: através duma Aliança selada com sangue, para fazê-lo sua propriedade e possessão querida, e entrar em comunhão de amor com ele. (…) a ‘libertação’ é essencialmente uma ‘aquisição’, isto é, a re-união do homem com Deus por iniciativa deste”.[13]
Notas e Referências:
[1] VAZ, Armindo dos Santos. O vocabulário bíblico da redenção. Didaskalia – Revista da Faculdade de Teologia de Lisboa, v. 14, n. 1-2 (1984). Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, p. 60.
[2] ALVES, José Carlos Moreira. A Retrovenda. 2 ed. São Paulo: RT, 1987, p. 25.
[3]LEMME, Matheus. Festas religiosas. Enquanto os cristãos comemoram com ovos de Páscoa nestes feriados, os judeus celebram o Pessach. As duas comemorações coincidem neste ano de 2009. Deutsche Welle, edição de 11 de abril de 2009. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/celebra%C3%A7%C3%B5es-de-p%C3%A1scoa-e-pessach-coincidem-em-2009/a-4169331 Acesso em: 08 de abril de 2023.
[4] A Eliminação do Chametz. Morashá, ano XXII, n. 87 (março de 2015). Disponível em: http://www.morasha.com.br/pessach/a-eliminacao-do-chametz.html Acesso em: 09 de abril de 2023.
[5] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado – Parte Especial: Tomo XXXIX. Direito das Obrigações. Compra e Venda. Atualizado por Cláudia Lima Marques. São Paulo: RT, 2012, p. 239.
[6] Também existem precedentes do STJ admitindo a pactuação de cláusula de retrovenda em contratos de compra e venda de ações. Cf.: “COMPRA E VENDA DE AÇÕES, COM PACTO DE RETROVENDA. NEGOCIO JURIDICO INDIRETO. DIREITO DE RESGATE ABRANGENTE DAS AÇÕES ACRESCIDAS EM RAZÃO DE BONIFICAÇÕES E DO DIREITO DE SUBSCRIÇÃO. DESISTENCIA DE RECURSO NÃO DEVIDAMENTE FORMALIZADO. – QUALIFICADA A AVENÇA COMO NEGOCIO JURIDICO INDIRETO, NÃO CONTRARIA O ART. 1.140 E PAR. UNICO DO CC A DECISÃO QUE CONSIDERA COMO COMPREENDIDO NO DIREITO DE RESGATE TUDO QUANTO SE ACRESCENTOU AS AÇÕES VENDIDAS, QUER POR FORÇA DE BONIFICAÇÕES, QUER EM RAZÃO DO DIREITO DE SUBSCRIÇÃO. – NÃO VEDA A LEI TENHA A RETROVENDA POR OBJETO BENS MOVEIS”.(REsp n. 28.598/BA, relator Ministro Barros Monteiro, Quarta Turma, julgado em 5/11/1996, DJ de 10/3/1997, p. 5972.)
[7] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado – Parte Especial: Tomo XXXIX. Direito das Obrigações. Compra e Venda. Atualizado por Cláudia Lima Marques. São Paulo: RT, 2012, p. 240.
[8] MAURÍCIO, Domingos. A Universidade de Évora e a escravatura. Didaskalia – Revista da Faculdade de Teologia de Lisboa, v. 7, n. 1 (1977). Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, p. 165-167.
[9] MAURÍCIO, Domingos. A Universidade de Évora e a escravatura. Didaskalia – Revista da Faculdade de Teologia de Lisboa, v. 7, n. 1 (1977). Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, p. 168.
[10]PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado – Parte Especial: Tomo XXXIX. Direito das Obrigações. Compra e Venda. Atualizado por Cláudia Lima Marques. São Paulo: RT, 2012, p. 240.
[11]PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado – Parte Especial: Tomo XXXIX. Direito das Obrigações. Compra e Venda. Atualizado por Cláudia Lima Marques. São Paulo: RT, 2012, p. 267.
[12] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado – Parte Especial: Tomo XXXIX. Direito das Obrigações. Compra e Venda. Atualizado por Cláudia Lima Marques. São Paulo: RT, 2012, p. 266.
[13] VAZ, Armindo dos Santos. O vocabulário bíblico da redenção. Didaskalia – Revista da Faculdade de Teologia de Lisboa, v. 14, n. 1-2 (1984). Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, p. 67.