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Administração Pública Dialógica, Eficiência e Formalismo Moderado: Em Busca Da Efetivação Da Supremacia do Interesse Público Sobre O Privado Por Meio Da Consensualidade

A atuação da Administração Pública brasileira está alicerçada no Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Privado, que justifica a prática dos atos administrativos e tem gerado, sobretudo nas últimas três décadas, acirrada discussão entre os doutrinadores juspublicistas.

De um lado, um grupo composto por estudiosos como Binenbojm (2005, p. 21) [1], Sarmento (2005, p. 16) [2] e Moreira Neto (2016, p. 152) [3] vislumbra no Princípio em uma raiz autoritária, que legitima o uso e abuso do pretenso “interesse público” como fundamento meramente retórico para a tomada de decisões, e consequentemente, a prática de atos que não garantem os interesses da coletividade. Inclusive, tal Princípio afastaria o diálogo com a sociedade. Esse grupo pugna pela desconstrução do Princípio, que representaria os interesses do Estado, e não da sociedade, com o intuito de expurgar o pretenso autoritarismo que o lastreia.

Por sua vez, especialistas capitaneados por Di Pietro (2010, pp. 5-9) [4], Gabardo e Hachem (2010, p. 14) [5], e Carvalho Filho (2010, p. 68) [6] refutam, em parte, a visão apresentada anteriormente, que consideram apenas uma “nova retórica”, com a pretensão de “transparecer originalidade”. Alegam que os “novos paradigmas” não passam, muitas vezes, de manobras com o intuito de fugir do regime próprio de Direito Público, que reconhece prerrogativas à Administração Pública (e impõe sujeições) imprescindíveis à consecução dos interesses sociais.

Partimos do pressuposto de que o Direito Administrativo contemporâneo exige a releitura de alguns de seus institutos, o que reclama a transformação de determinados conceitos e modos de atuação da Administração Pública. Acredita-se, também, que as duas correntes apresentadas anteriormente não são, necessariamente, antagônicas, pois almejam transformar certos postulados para adequá-los à realidade, aos anseios sociais, o que não significa, como afirma Muñoz (2006, p. 14) [7], que estejamos assistindo ao enterro das instituições clássicas do Direito Administrativo. Trata-se de manter as conquistas do passado e de avançar, trazendo os destinatários dos atos administrativos para integrar essas mudanças, inclusive tendo uma participação ativa.

Nesse cenário, tem adquirido relevância a chamada atuação administrativa consensual, que passou a ser delineada com o advento da Constituição Federal de 1988 e ganhou contornos mais concretos com o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, que tinha como cerne o incremento da governança estatal, ou seja, da efetiva implementação de políticas públicas norteadas pelo Princípio da Eficiência (BARREIROS, 2017, pp. 36-37) [8], o que somente se tornará possível diante da adoção de uma postura mais flexível do Poder Público, com o redimensionamento das prerrogativas administrativas, adotando mecanismos de atuação consensual, ampliando as possibilidades de negociações entre Administração Pública e o destinatário do ato administrativo. Referida atuação cooperativa centra-se na democracia participativa (BORGES, 2002, p. 157) [9].

De um modelo em que prevalece o monólogo, estrelado pela Administração Pública, avessa à comunicação com a sociedade, e muitas vezes, com os seus servidores, busca-se arquitetar uma gestão dialógica, paritária, superando, sempre que possível, o perfil impositivo (OLIVEIRA, 2008, pp. 276-277) [10].

Observada a relação existente entre uma gestão pública dialógica, que adota práticas consensuais, e o anseio de se efetivar o Princípio da Eficiência, podemos concentrar o olhar em um instituto específico: o processo administrativo federal, disciplinado pela Lei nº 9.784/1999.

Processo administrativo poder ser conceituado como um conjunto de atos concatenados, destinados à preparação e consecução de um ato final, que é a decisão administrativa (GRINOVER, PERLINGEIRO, MEDAUAR, 2013, p. 178) [11]. Assim, ao anular um ato, revogar uma decisão, impor uma sanção, dentre tantos outros exemplos possíveis, vislumbra-se o processo administrativo.

Questão de fundamental relevância é que, para que o processo administrativo seja legítimo, faz-se necessária a participação do destinatário dessa decisão administrativa em muitos momentos, inclusive, questionando a validade do processo. É o que se pode chamar de direito-garantia fundamental, pois, por seu intermédio, o indivíduo poderá provocar o Poder Público para controlar um ato praticado unilateralmente, participar da sua elaboração, afastando a atuação estatal imperativa, em que a discussão sobre uma possível violação à legalidade ocorerria, somente, após a prática do ato (MOREIRA, 2014, p. 63) [12]. O processo administrativo evidencia as interações entre a Administração Pública e o particular, bem como, com o servidor publico, quando se trata de um processo disciplinar, por exemplo.

A efetivação do Princípio da Eficiência também norteia os processos administrativos (FRANCO, 2008, pp. 246-249) [13]. Além da menção específica à eficiência, constante do caput do art. 37 da Carta Magna de 1988 e do caput do art. 2° da Lei nº 9.784/1999, tem-se o Princípio do Formalismo Moderado, regedor dos processos administrativos, que pugna pela adoção de formas simples, desde que seja garantido o respeito ao contraditório, à ampla defesa e à segurança jurídica. A forma deve ser interpretada de modo flexível e razoável, pois tem função instrumental (MEDAUAR, 2015, p. 209) [14].

É salutar que a condução do processo seja pautada pelo alcance efetivo da solução administrativa, ou seja, as formas processuais administrativas podem e devem ser negociadas, desde que não haja prejuízo a terceiros e não reste comprometido o interesse público (FERREIRA, 2004, p. 33) [15]. Faz-se necessário conceder à Administração os espaços de conformação, para que se obtenha a tão almejada racionalidade procedimental (PINTO NETTO, 2009, pp. 154-166) [16].

A gestão dialogada de um processo administrativo tem estreita relação com a simplificação procedimental e a eficiência dos resultados obtidos. Diante de tantas vantagens, por que ainda há considerável resistência por parte de órgãos e entidades públicas em adotar esse caminho? Desconhecimento das possíveis vantagens? Receio de ferir a legalidade e vir a ser responsabilizado? Acomodação aos caminhos longos e burocráticos já estabelecidos (mudar rotinas é muito trabalhoso)? Todas as alternativas anteriores?

O Princípio da Supremacia do interesse público sobre o privado exige avanços para a sua efetiva concretização. Temos o respaldo legal, falta criar uma nova cultura de trabalho na Administração Pública e em relação aos destinatários dos atos administrativos, que também devem ser mais participativos, mudando o nosso perfil secular de cidadãos pouco atuantes/exigentes. A força que verdadeiramente impulsionará as mudanças necessárias nos comportamentos administrativos, que promovam a supremacia do interesse público, está nas mãos da sociedade, no uso dos instrumentos de participação e controle, na exigência de práticas democráticas e eficientes.

Como um possível caminho para a efetivação da consensualidade, na próxima Coluna, serão analisados os contornos dos acordos celebrados pela Administração Pública a partir da edição do art. 26 da Lei 18.655/2018, a Nova Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e os arts. 10 e 11 do Decreto 9.830/2019, que regulamentam o tema, com o intuito de avaliar as possibilidades e os limites impostos pelo marco normativo.

A discussão está apenas começando. Até a próxima coluna.

 

Referências:

[1] BINEMBOJM, Gustavo. Da supremacia do interesse público ao dever de proporcionalidade: um novo paradigma para o direito administrativo. In: SARMENTO, Daniel (org.) Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. pp. 19-37.

[2] SARMENTO, Daniel (org.) Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

[3] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Novas Mutações Juspolíticas. Belo Horizonte: Fórum, 2016.

[4] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Existe um novo Direito Administrativo? In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves (coords). Supremacia do Interesse Público e outros temas relevantes do Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2010. pp. 01-09.

[5] GABARDO, Emerson, HACHEM, Daniel Wunder. O suposto caráter autoritário da supremacia do interesse público e das origens do Direito Administrativo: uma crítica da crítica. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves (coords). Supremacia do Interesse Público e outros temas relevantes do Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2010. pp. 11-66.

[6] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Interesse Público: verdades e sofismas. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves (coords). Supremacia do Interesse Público e outros temas relevantes do Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2010. pp. 67-84.

[7] MUÑOZ, Jaime Rodríguez- Arana. El concepto del derecho administrativo y el projecto de constituición europea. In: Revista de Direito Administrativo e Constitucional. Belo Horizonte: Fórum, pp. 13-14. Jan-fev-mar./2006.

[8] BARREIROS, Lorena Miranda Santos. Convenções Processuais e Poder Público. Salvador: Juspodivm, 2017.

[9] BORGES, Alice González. Globalização e Administração Consensual. In: LEÃO, Adroaldo; PAMPLONA FILHO, Rodolfo (coord.). Globalização e Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

[10] OLIVEIRA, Gustavo Henrique Justino de; SCHWANKA, Cristiane. A administração consensual como a nova face da Administração Pública no Séc. XXI: fundamentos dogmáticos, formas de expressão e instrumentos de ação. In: Revista de Direito do Estado. Rio de Janeiro, n. 10, pp. 271-288, abr.-jun./2008.

[11] GRINOVER, Ada Pellegrini; PERLINGEIRO, Ricardo; MEDAUAR, Odete. Código Modelo de Processos Administrativos – Judicial e Extrajudicial – para Ibero-América. In: Revista de Processo, São Paulo, v. 38, n. 221, p. 177-183, 2013.

[12] MOREIRA, Egon Bockman. As várias dimensões do processo administrativo brasileiro (um direito-garantia fundamental do cidadão). In: Revista de Processo. São Paulo, ano 39, n. 228, pp. 37-48, fev./2014.

[13] FRANCO, Elaine Alves. A relevância dos princípios no processo administrativo municipal. In: CASTRO, João Antônio Lima. Direito processual: aspectos contemporâneos do direito processual. Belo Horizonte: PUC Minas, Instituto de Educação Continuada, 2008.

[14] MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 19 ed. São Paulo: RT, 2015.

[15] FERREIRA, Luiz Tarcísio Teixeira. Princípios do processo administrativo e a importância do processo administrativo no Estado de Direito (arts. 1.º e 2.º). In: FIGUEIREDO, Lúcia Valle (coord.). Comentários à Lei Federal de Processo Administrativo (Lei n. 9.784/99). Belo Horizonte: Fórum, 2004.

[16] PINTO NETTO, Luísa Cristina. Participação Administrativa Procedimental: natureza jurídica, garantias, riscos e disciplina adequada. Belo Horizonte: Fórum, 2009.

 

 

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Roberta Cruz da Silva
Doutora em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Mestre e Bacharela em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professora da Universidade Católica de Pernambuco (graduação e especialização); e da pós-graduação do Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS). Autora e coautora de diversos artigos científicos e livros jurídicos. Pesquisadora do Grupo GEDA/UNICAP/CNPQ. Advogada.

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