Aulas de Civil e de Processo Civil

Aula 22 – A Tutela Provisória no CPC – 15ª. Parte: aspectos específicos na tutela de urgência – 1ª. parte: a questão da dualidade procedimental – 1ª. parte

Após o adendo feito a partir da inserção da aula 19.1, referente ao problema da competência, e deixando em suspenso a aula – por ser numerada em 19.2 – sobre o problema da responsabilidade civil (art. 302, CPC), passemos à análise dos aspectos específicos no âmbito da tutela de urgência, isto é, basicamente, o estudo dos procedimentos que se lhe referem.

Comecemos, hoje, com uma análise crítica da ocorrência de estarem previstos dois procedimentos. Eis a mencionada dualidade procedimental do título.

Pois bem.

De uma simples mirada no CPC, percebe-se que, em rigor, há uma dualidade de procedimentos quanto ao ponto: um relativo à tutela antecipada (arts. 303-304); outro, à tutela cautelar (arts. 305 e segs.).

Dualidade tal existente, claro, em se tratando da concessão antecedente da tutela de urgência, em qualquer de seus tipos.

De logo, apresenta-se-nos a pergunta: qual é o porquê dessa dualidade procedimental, especialmente tendo em vista que é possível cumular esses pedidos de tutela numa única petição, seja isto se pelo modo concomitante ou pelo modo incidental?

Por que, nesse sentido, para a concessão antecedente há essa dualidade, e não apenas previsão de procedimento único para ambas?

E tudo isso quando é de conhecimento que essa dualidade procedimental pode dar ensejo a problemas, sobretudo quando diante de uma medida para a qual não se tem um concesso sobre sua natureza, como ocorre com a chamada sustação de protesto, sobre a qual há sólida doutrina tanto dizendo-a tutela cautelar (José Carlos Barbosa Moreira) quanto, tutela antecipada (Ovídio Baptista da Silva), por quê?

A justificativa dada para tanto – embora se saiba que os motivos são muitos – é a de que é impossível a existência de procedimento único para as duas formas de tutela. Isto porque, como foi positivada a chamada estabilização da antecipação dos efeitos da tutela (art. 304, CPC), não poderia a tutela cautelar ser deferível por procedimento no qual exista, em possibilidade, essa estabilização, caso do procedimento previsto no art. 303, CPC, referente à tutela antecipada.

“A tutela cautelar não é estabilizável, logo não cabe em procedimento que possibilite estabilização” Eis, em síntese, o que se costuma dizer sobre este ponto.

“Desse modo, há de se ter dois procedimentos: um para a tutela antecipada, outro, para a cautelar. O primeiro contendo a possibilidade de estabilização; o segundo, não”. Eis, noutras palavras, o que se diz em conclusão à premissa acima.

E, por tudo isso, é que me proponho a analisar os procedimentos antecedentes em tutela provisória previstos no sistema a partir de um questionamento às conclusões descritas acima, colocando-as em xeque.

E, curiosamente, a análise já começa diante de um (possível) paradoxo: os mesmos (se não todos, ao menos na parcela mais qualitativamente significativa) que dizem não ser possível uma estabilização da tutela cautelar defendem a ocorrência de uma coisa julgada cautelar.

E por que isso pode revelar uma contradição?

Porque a coisa julgada é, como já visto aqui nas aulas, o nível mais acentuado de estabilidade. Em verdade, temos tipos – em níveis distintos, em graus distintos, em intensidades destintas – de estabilidade. A maior delas é proveniente da coisa julgada.

Eis uma hipótese já muito bem confirmada, principalmente por um trabalho que, publicado há um bom tempo, teve reedição recente.

Trata-se de obra de autoria do professor Antonio do Passo Cabral, da UERJ, denominada de “Coisa Julgada e Preclusões Dinâmicas”. Trabalho este que, como já dito aqui nas aulas, indicamos a todos, e com total isenção, até porque tendemos a discordar de muitas das conclusões extraídas pelo autor. No trabalho, são estabelecidos esses níveis diferenciados de estabilização, tendo, ao máximo, a coisa julgada. Aliás, o fio do trabalho é exatamente essa questão dos níveis de estabilidade.

Bem, se assim o é, essa estabilização do art. 304, CPC (que iremos, em momento próprio, tratar em profundidade), é um grau mais baixo, um nível mais baixo, é menos intensa que a coisa julgada. E, realmente, o é, como veremos: se não há, em termos de estabilidade processual, nada mais intenso (e a melhor palavra para designar o ponto ora em análise é essa: intensidade) que a coisa julgada, essa referida estabilidade está, então, num nível de intensidade menor, menor que o da coisa julgada.

Basicamente, essa estabilidade do citado art. 304 é uma estabilidade intraprocessual, é algo como que a velha coisa julgada formal. Ela gera um término da litispendência, da discutibilidade dentro do processo, portanto, mas sem ter a força de impedir a rediscussão da matéria, algo que se dá na coisa julgada. Logo, é menos intensa que a coisa julgada.

Por tudo isso, não se necessita de maiores justificativas para dizer que a defesa da possibilidade de uma coisa julgada cautelar negando, porém, a possibilidade de uma estabilização cautelar é algo absurdo. O argumento a fortiori – talvez o mais conhecido dos argumentos retóricos – tem, no fundo, um viés analítico e, desse modo, apodítico. Ao menos de um ponto de vista lógico, se se pode o mais, pode-se o menos: se se tem 20 anos, tem-se 19 anos; se se tem 50kg, tem-se 49kg.

Então, o argumento acima descrito resta ruído. Ele não tem sentido.

E não o tem dentro de uma perspectiva estritamente logica, por quê? Porque esses autores que negam a viabilidade de a tutela cautelar estabilizar-se são – ao menos em grande medida – os mesmos que defendem a ocorrência de coisa julgada cautelar.

Portanto, logicamente, o argumento é insustentável.

Não podemos, contudo, ficar na perspectiva tão-somente lógica.

Devemos ir para a realidade mesma da coisa. E, nesta, vamos observar o seguinte: a tutela cautelar não é apta a dar ensejo a coisa julgada, não no sistema jurídico brasileiro. Atentem para isso.

Diante da necessidade de esgotarmos essa questão, a fim de bem compreender a (falsa) ideia de uma suposta necessidade de dualidade procedimental para as formas de tutela provisória, iremos adiantar esse ponto, que é próprio da tutela cautelar.

Assim, pergunta-se: por que a tutela cautelar não é – ao menos no direito brasileiro – apta a dar ensejo à coisa julgada?

Deixando a pergunta-problema mais corretamente formulada, podemos dizer: por que, no direito brasileiro, a decisão concessiva de tutela cautelar (e também a decisão que lhe nega) não é apta formar coisa julgada?

Relembremos, antes de tudo, o que é coisa julgada.

Nesse sentido, precisamos entender a coisa julgada, não a partir de uma ideia sobre ela, mas sim como o direito positivo a estabelece.

Em rigor, o termo coisa julgada é comumente empregado em dois sentidos:

  1. i) o primeiro de modo mais literal;
  2. ii) o segundo, mais metonímico.

Literalmente, coisa julgada é o que? Coisa julgada é a matéria julgada, é o caso julgado. Por isso o termo português é muito mais adequado. Os portugueses chamam caso julgado. Eles dizem o “caso foi julgado”. Isto é: a causa foi julgada, a matéria foi julgada.

Então, coisa julgada é um atributo da decisão, digamos que a própria. É decisão sobre determinada matéria, pois decisão é relação: é decisão sobre algo.

Mas só é possível considerar que algo foi, de fato, julgado diante de um término, mesmo que estritamente processual. O interinal ainda não foi – não propriamente – julgado. Se há uma decisão que precisa ser confirmada por outra – que é, exatamente, o interinal, a decisão interinal-, ainda há propriamente um julgado.

O julgado mesmo vem com o término, o trânsito em julgado. Daí se dizer: “a decisão que transitou em julgado”. É o trânsito em julgado, portanto, que torna, realmente, a decisão (precária) em decisão propriamente: neste sentido, definitiva ou, pelo menos, processualmente definitiva.

Logo, é possível dizer que coisa julgada é a decisão mesma. Os antigos que, com força na nossa tradição lusitana[1], falam muito na vera sententia. E O que é esta? Exatamente, a decisão com coisa julgada, a decisão com o passar em julgado.

Eis o sentido próprio da coisa julgada.

O sentido metonímico, porém, é o que mais se usa.

E por que (uso) metonímico? Porque há uma substituição: de algo por outro com ele relacionado.

Chama-se de coisa julgada, na verdade, os efeitos da coisa julgada ou, mais propriamente, um efeito específico desta última. E é esse efeito que está definido no CPC, em seu art. 502. Aqui, está definido, não a coisa julgada mesma, mas sim a eficácia que possibilita a indiscutibilidade/imutabilidade daquilo que foi decidido.

Continuemos a análise numa próxima aula.

Até lá.

 

Notas:

[1] 1 Quando falo acima em tradição lusitana refiro-me à chamada prática processual lusitana, os chamados praxistas. Ali, mais ou menos no início do período das ordenações do Reino, por volta do Século XV, embora possa se achar exemplares anteriores. Esses autores, aliás, escreveram, no início, em latim. O latim deixou de ser a língua da ciência (quando falo, aqui, de ciência, refiro-me ao saber em geral, incluindo as ciências práticas, como o direito) por volta do Século XVIII, até mesmo do Século XIX. Até então a língua da ciência era o latim, por exemplo, a famosa obra Principia, de Isaac Newton. O latim começou a perder força na linguagem poética, sendo a obra de Dante Alighieri (A Divina Comédia), talvez, o marco inicial disto. E, no nosso caso, escritores como Manuel Mendes de Castro e Sylvestre Gomes de Moraes, os mais importantes praxistas da primeira fase, escreveram em latim; depois, já no Século XVIII, passou-se a escrever em língua vernácula, sendo Manuel de Almeida e Sousa, de Lobão (o lugar onde ele nasceu), o mais relevante autor, fundamental, ademais, no âmbito da tutela provisória pois que escreveu o famoso Tratado das Ações Sumárias, obra que muito influenciou autores nacionais como, sobretudo, Ovídio Baptista da Silva.

 

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Roberto Campos
Doutor e Mestre em Direito Processual pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Professor de Direito Civil e de Direito Processual Civil da Unicap. Ex-Presidente da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). Advogado e Consultor Jurídico.

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