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Direito – verdade – epistemologia. Origem – Parte 1

Por André Luiz Maluf de Araujo[1]

 

1.INTRODUÇÃO

Nesta primeira parte de um estudo mais completo, tentaremos recordar as lições de há muito esquecidas (nos dias atuais) sobre o que é direito, verdade. Também, uma ligação entre a verdade e a epistemologia.

Partimos da premissa, do que se chamou de filosofia social, das diferentes concepções de epistemologia que impactaram as formas jurídicas da verdade hoje no Brasil e as conexões que teve com a forma de organização política denominada Estado, bem assim com suas diferentes mutações desde a época do Estado absoluto ou policial. Precisamente, uma das questões mais discutidas hoje sobre o direito a prova, assim, os campos da epistemologia e do poder político ou económico, e se são opostos ou incompatíveis; Por isso, questiona-se se a verdade dos fatos se opõe às regras que têm caráter axiológico ou político. Nesse sentido, muitos partem da ideia de que é possível falar da verdade nos processos judiciais, embora não discutam as condições ideais para isso. Baseia-se também na idéia de que os campos da política e da epistemologia são irredutíveis entre si, portanto, há uma separação entre eles, porém, é possível encontrar explicações epistemológicas para as formas de Estado, pois também existem explicações políticas e a economia das formas jurídicas da verdade. Por isso, estão interligadas explicações jurídicas e sociopolíticas das regras de obtenção e justificação da verdade.

Quando se faz referência à epistemologia como eixo a partir do qual a verdade é estudada nas provas judiciais, tratamos da justificação intersubjetiva dos fatos com base nas provas; da epistemologia jurídica, o objetivo final da determinação jurídica dos fatos é chegar a um conjunto de proposições factuais que se justifiquem por serem, pelo menos, indicativas da verdade.

No campo probatório judicial, a epistemologia trata com as condições sob as quais uma decisão sobre os fatos é racionalmente aceitável. Por esta razão, é essencial analisar as normas jurídicas que regulam a conversão de fontes em meios de comunicação, o que faremos em artigos futuros, tais como presunções legais, concepções contraditórias e dispositivas de processos judiciais, exclusões e negócios processuais. Essas regras afetam a qualidade da determinação da verdade, dos fatos nos processos judiciais. Nota-se, contudo, que o consensualismo tende a ser a negação da própria epistemologia.

 

2.DIREITO

Para acentuarmos a complexidade da palavra direito, basta atentarmos nas aventuras etimológicas e na evolução semântica da mesma e dos respectivos antecedentes. Comecemos por ius, o nome romano equivalente, que, segundo o nosso saudoso mestre Sebastião Cruz[2] poderia ter vindo de iussum (ordem); do sânscrito yu, que significava liame ou ligação; do sânscrito ious, também entendido como algo procedente da divindade ou até de Iouves, a forma antiquíssima de Júpiter. Já o nosso direito (direito no Brasil, derecho em Castelhano, droit em francês, diritto em italiano) procede do termo directum e este de de+rectum, significando, no tradicional símbolo da balança, que o fiel da mesma está ao meio, totalmente aprumado, com os dois pratos ao mesmo nível. Este rectum também deu origem ao right inglês e ao Recht alemão.

 

  1. DIREITO E ESTADO

Aqui, temos em mente que existem duas formas de abordar as instituições do Estado ou do direito: a partir dos ideais a alcançar ou dos efeitos que produzem nas pessoas e nas práticas dessas instituições. Segundo Cusset & Haber[3], esta perspectiva diferente corresponde à diferença que existe entre a filosofia prescritiva e o que tem sido chamado de filosofia social crítica (2007, pp. 12-13). A perspectiva preferida neste trabalho é a da filosofia social crítica para analisar os discursos judiciais sobre conceitos universais como o Estado, a verdade, os direitos fundamentais ou a soberania, elaborados pela doutrina filosófico-jurídica, tendo em conta os seus efeitos sobre a prática social de controle ou vigilância ou segurança ou economia política. Portanto, evitar-se-á estudar a prova judicial ou a verdade processual ou a epistemologia jurídica apenas em seus campos teóricos ou universais, dando-se preferência à forma como atuam no Brasil e nas práticas judiciais discursivas.

Para tanto, são abordadas as relações entre direito e política, contra as quais, na filosofia do direito, podem-se distinguir dois tipos de posicionamentos: de um lado, o normativismo, e de outro, o Decisionismo. Os normativos defendem uma filosofia fundamentalmente prescritiva, e os decisórios preferem estudos práticos e apresentam-se principalmente como realistas.

Por outro lado, com o termo práticas judiciais, segundo Foucault[4], faz-se referência […] à forma como os danos e as responsabilidades são arbitrados entre os homens; a forma como, na história do Ocidente, foi concebida e definida a forma como os homens poderiam ser julgados com base nos erros que cometeram […] todas essas práticas […] são algumas das formas utilizadas pela nossa sociedade para definir tipos de subjetividade, modos de conhecer […] (2003, p. 16).

Atualmente, no Brasil pode-se dizer que as práticas judiciais são uma modalidade de resolução de conflitos que se baseia predominantemente na ideia de um sujeito denominado juiz em que a verdade emerge das provas e da interpretação das normas, expressão da vontade do Estado; Ao mesmo tempo, na construção dessa verdade intervêm atos de conformidade ou vontade das partes, que se realizam através de diversos mecanismos que oscilam entre a liberdade, a necessidade e o interesse.

Na verdade, surgem questões a partir das transformações históricas pelas quais passou o direito processual , especialmente a mudança da concepção tradicional da verdade como correspondência para o que na contemporaneidade tem sido chamado de consensualismo. Aqui, não abordamos os métodos alternativos de resolução de conflitos que foram implementados desde o final da década de 1980 no século passado, mas criaram múltiplas presunções de verdade a partir do comportamento processual da parte;

 

  1. A VERDADE JURÍDICA E O PODER DA SOBERANIA

A verdade jurídica, tal como funciona atualmente, no direito processual Brasileiro, principalmente, e em geral, na tradição jurídica europeia, que está intimamente ligada ao exercício do poder soberano desde a época do Estado Absoluto. Será possível perceber como o nosso direito à prova preserva algumas das características do chamado Estado absoluto ou Estado policial das monarquias europeias dos séculos XVI a XVIII; mas também tem outros componentes que mais tarde se sobrepõem à era do Iluminismo. Também é possível traçar as diferentes concepções epistemológicas do nosso direito processual atual e suas conexões com as práticas governamentais no exercício do poder soberano com suas mutações históricas. Precisamente, sobre as conexões entre verdade e poder político, diz Foucault4 :

[…] o poder obriga-nos a produzir a verdade, pois a exige e precisa dela para funcionar; temos que falar a verdade, somos obrigados, condenados a confessar a verdade ou a encontrá-la […] Afinal, somos julgados, condenados, classificados, obrigados a cumprir tarefas, atribuídos a um determinado modo de viver ou uma certa forma de morrer, dependendo de discursos verdadeiros.

Segundo esta ideia, a verdade está interligada com o poder político e econômico de uma sociedade. No entanto, nota-se que, pelo fato de a verdade ter ligações com o poder político-econômico, isso não significa que a verdade seja inexistente, ou que se confunda com a própria política, ou que esteja condicionada causalmente à economia ou à poder político; nem se pode dizer que a verdade como tal seja boa ou má, conveniente ou inconveniente. As formas jurídicas da verdade na resolução de conflitos dentro de uma sociedade têm explicações na esfera política ou económica. Observa-se que as práticas judiciais legitimam as sentenças ou punições de pessoas com concordância de verdades diversas. Essas práticas têm a seguinte estrutura básica: a supressão ou limitação por órgão judicial de um direito de uma pessoa, com base no estabelecimento de verdade jurídica ou factual. Portanto, a sanção ou sentença é um jogo de limitações às liberdades, legitimadas a partir de um repertório de verdades. A condenação ou sanção é, basicamente, um poder que se exerce sobre o corpo e a alma das pessoas e que se justifica a partir de uma articulação de saberes. Nas penas, nessas práticas, convergem saberes legitimadores intra-sistemáticos e extra-sistemáticos à lei; portanto, são legais, mas estão ligados a discursos como filosofia, epistemologia, medicina ou psicologia.

Pensando nessas relações entre verdade e política, Foucault menciona que podem ser produzidos dois tipos de histórias de verdade: verdade interna e verdade externa; uma ocorre dentro das mesmas ciências; a outra refere-se à forma como a sociedade define certas regras das quais nascem certas subjetividades, ou tipos de discurso, ou domínios de objetos. O que é interno às ciências é a epistemologia e os seus padrões de validade, e destes pode resultar que determinado conhecimento seja falso ou infundado. O externo é constituído pelas práticas socioeconômicas ou culturais ou governamentais de uma sociedade. As ciências, especialmente as sociais, podem ser influenciadas por preconceitos culturais em relação a fenómenos como a sexualidade ou a loucura, como aconteceu com a psiquiatria ao definir a normalidade.

Nas práticas judiciais pode acontecer que um sistema normativo funcione adequadamente numa cultura, mas noutra tenha resultados totalmente diferentes. Finalmente, esta distinção permite a Foucault criticar a ideia da Escola de Frankfurt sobre o carácter intrinsecamente opressivo da razão; Este autor alerta que no desarrazoado também há abusos e opressões. O fato de o poder político ou económico estar enraizado na verdade jurídica não significa que seja, por si só, opressivo ou abusivo; os abusos não são da verdade em si, mas do exercício do poder. Aqui tenho ressalvas, mas deixo para outro artigo.

Precisamente no campo das práticas judiciais com as diversas ligações que mantêm com o poder político ou económico ou com a cultura, forma-se o que Foucault chama de regimes de verdade, que historicamente se sobrepõem ou sofrem mutações de acordo com as modalidades de justiça, práticas governamentais (exercício do poder político em uma sociedade). Essas práticas são basicamente duas: o Estado absoluto e o Estado de Direito. As práticas judiciais são caracterizadas de acordo com as práticas governamentais em que atuam, e as diferentes modalidades podem ser classificadas segundo a maioria em três dispositivos: inquérito, confissão e segurança.

As formas jurídicas da verdade na forma como funcionam atualmente têm algumas relações com a epistemologia moderna. Com efeito, a ideia cartesiana do sujeito universal, totalizante e neutro desenvolve-se na esfera política com o poder da soberania e estabelece-se sob a égide do pacto ou contrato de sujeitos ideais, neutros e universais que se apoiam na razão ou na divindade para estruturar o poder. Esta ideia é amplamente desenvolvida por filósofos políticos contratualistas como Hobbes, Rousseau e Rawls. O filósofo Morey[5]  menciona que, no pensamento foucaultiano , há um estudo sobre a concepção de sujeito de Descartes, explicando que esse tipo de sujeito trata de um “eu, como sujeito único, mas universal e não histórico”; O eu de Descartes é o mundo inteiro, não importa onde e em que momento (p. 22-23). Foucault menciona que Descartes defende a ideia do sujeito universal, o núcleo central do conhecimento em que a liberdade e a liberdade são reveladas, nas quais a verdade eclode ; Esta ideia baseia-se na antiga explicação da verdade encontrada na figura do Anacoreta de Sócrates, consistindo no fato de que o conhecimento aparece idealmente no sujeito que se isola do poder ou das raízes ou das posses. Nesse sentido, Hobbes funda a soberania monárquica no contratualismo, através do qual há um ato de vontade de alguns sujeitos que se colocam em condições ideais de conhecimento que concordam com a criação do soberano, e portanto, eles encontraram o Estado.

Certamente, o sistema jurídico atual ainda tem como matriz a ideia epistemológica do cogito universal, que fundamenta a própria fundação do Estado. Na verdade, a concepção racionalista de um sujeito ideal é a ferramenta para estruturar uma forma de governo dos homens que é o poder da soberania. O poder soberano de hoje, no domínio jurídico, com algumas mutações, é basicamente o mesmo que era nos séculos XVII e XVIII na Europa, época em que se criou e funcionou o modelo de Estado absoluto. Desde então, em termos de direito, este poder continua a revelar-se com a concentração de armas, a centralização da ordem jurídica e do aparelho de justiça que o aplica (Jurisdição no sentido puro e impuro). Assim, o poder soberano que corporiza o Estado é o aquele que define ou arbitra em todos os momentos as liberdades ou direitos das pessoas. Esta ideia básica de poder soberano na era atual sofreu diversas mutações: por um lado, o aparecimento do Estado de direito entre finais do século XVIII e inícios do século XIX; de outro, o surgimento do Estado social de direito e também do direito internacional; é claro que a soberania deixou de ser monárquica e a soberania democrática tornou-se geral. Foucault observa que a construção de tal sujeito ideal, fundador do Estado e do seu aparelho de justiça, nasceu sob a ficção da ruptura com o conflito, por isso cumpre a função de encobrir a guerra ou o conflito permanente na sociedade.

Entre as características da era do Estado absoluto que preserva em certa medida a justiça judicial atual, verifica-se que a justiça é exercida por um órgão denominado jurisdição que a centraliza no Estado e a exerce exclusivamente. Portanto, a figura do juiz corresponde a esta concepção de sujeito ideal que administra justiça aos súditos (na monarquia) ou aos cidadãos (nos sistemas democráticos). Além disso, tanto o juiz como a polícia fazem parte da estrutura do Estado, embora com a divisão de poderes da Modernidade.

Por outro lado, segundo Foucault, o Estado de direito é definido pela oposição ao despotismo e ao estado policial. O despotismo reduz tudo à vontade do soberano, e o estado policial estabelece um continuum entre todas as formas possíveis de ordens do poder público. Sob o Estado de Direito, os atos do poder público não podem ser válidos se não forem enquadrados por leis que os limitem antecipadamente. Ainda em meados do século XIX, o Estado de Direito aprofundou-se ainda mais com o aparecimento dos tribunais administrativos, através dos quais cada cidadão dispõe de possibilidades institucionalizadas e efetivas de recurso contra o poder público;

A partir de então, o Estado de Direito é entendido como leis e instâncias judiciais que arbitram as relações entre os indivíduos, e entre estes e o poder público. Por fim, o Estado constitucional é entendido como a supremacia dos direitos fundamentais, portanto tanto o legislador como os governados estão sujeitos a eles, mas é o juiz quem em última instância decide sobre eles. Deve-se especificar que não é possível dizer que o Estado constitucional substituiu o Estado de direito, mas sim que este se sobrepôs a aquele, uma vez que mantém características deste último, bem como do próprio Estado absoluto.

No regime do Estado absoluto (séculos XVI, XVII e grande parte do século XVIII), a relação entre verdade e poder político é explicada por Foucault, mencionando que o corpo humano do arguido é instrumentalizado para obter a verdade para a realização da justiça do soberano;

É um regime em que se combinam a investigação que vinha se desenvolvendo por trás e a confissão sob tortura que funcionava no modo medieval da provação. Com o termo investigação, Foucault refere-se a uma técnica que permite saber quem fez o quê, em que condições e em que momento; esta técnica reaparece na Idade Média como forma de investigação da verdade no âmbito de algumas práticas governamentais administrativas (técnica de controlo pelo soberano do território conquistado e de cobrança de impostos) e no campo judicial. Ou seja, a investigação é a mesma investigação no campo da ciência, mas realizada por órgão ou funcionário do Estado ou do governo ou da justiça para verificar condutas ou fatos de interesse oficial. Foucault menciona que as técnicas de investigação do Estado absoluto foram tomadas por Bacon para fazer sua proposta do método científico que seria desenvolvido na Modernidade. A lei probatória tal como funciona atualmente é semelhante à ideia básica da investigação do Estado absoluto.

Foucault explica que na Idade Média, sob influência do direito alemão, a liquidação judicial aparece como uma forma de luta entre contendores. A lei era uma forma única e regulamentada de conduzir a guerra entre indivíduos e encadear atos de vingança. O mais característico deste sistema é que a prova  judicial era uma forma de ritualizar a guerra; Ele era um operador do direito, um trocador da força pelo direito, uma espécie de shifter (shifter é um termo empregado na literatura paranormal americana para referir à personagem que se transforma em animal. que permite a passagem da força para o direito). A possível explicação para esta forma jurídica de resolução de conflitos é encontrada no fato de que na Idade Média havia uma fronteira difusa entre o direito e a guerra; a lei foi concebida como uma forma de continuar a guerra. Assim, a resolução dos conflitos ocorreu entre indivíduos; o líder político ou religioso ou o juiz intervieram apenas como árbitro para verificar a regularidade do procedimento; isso favoreceu aqueles que tinham mais poder militar e econômico para vencer as disputas (Foucault).

Nos séculos XII e XIII, a investigação do poder político começou a ser utilizada como forma de obter a verdade, mas foi um processo acompanhado pela consolidação do poder bélico nos monarcas europeus que se prolongou até à Inquisição. O crime passa a ser uma infração ao soberano e não simplesmente algo entre particulares, mas ao mesmo tempo adquire também um caráter religioso, razão pela qual se formou uma conjunção entre crime e pecado. Isto permitiu que as grandes monarquias fossem construídas com base no confisco de propriedades de infratores ou inimigos do soberano e da religião; O monarca produz grandes retornos políticos e económicos a partir da concentração da justiça no seu poder. Através da investigação, as provas desaparecem como um jogo ou desafio entre os indivíduos, uma vez que nem o procurador nem o rei arriscariam suas vidas nessas práticas de fazer justiça, razão pela qual são criadas novas formas jurídicas de apuração dos fatos (Foucault).

 

  1. O LIBERALISMO E A VERDADE

Neste capítulo, escreveremos bem an passant como as práticas governamentais do poder soberano democrático têm relações muito estreitas com as práticas judiciais. O liberalismo gera um idealismo em termos políticos e epistemológicos; mas ao mesmo tempo existem práticas sociais e económicas que têm a segurança como componente básico. O normativismo liberal constitui um sistema político ideal para a prática de uma epistemologia objetivista crítica e de regras jurídicas favoráveis à obtenção da verdade. No entanto, a componente de segurança e o adversário extremo interagem com o poder político e económico que pode transformar a procura da verdade numa arena tendenciosa e até opressiva.

Faremos aqui, uma análise de tendência normativa e a segunda decisória. Normativismo significa a filosofia que tem como objeto os ideais políticos ou morais prescritos pela natureza ou por Deus aos quais uma sociedade deve tender. Portanto, é feita uma distinção entre o que deveria ser e o que deveria ser; entre direito e política. Por sua vez, os decisores são realistas e acreditam que as análises devem centrar-se nas práticas governamentais ou na política; as decisões são sempre devidas a necessidades políticas ou naturais e não estão sujeitas a ideais.

Dado que nesta seção queremos caracterizar a verdade judicial dentro do liberalismo, a compreensão como “verdade comum” desde Foucault pode ajudar a compreender melhor, por contraste, a concepção de verdade que prevalece hoje. Nota-se que a verdade comum em Foucault é um conceito tendencialmente decisório no sentido de que é realista e é extraído das práticas judiciais do Iluminismo; portanto, não é a verdade ideal, nem aquela que está isolada do poder político ou econômico, mas a verdade judicial aproxima-se dos métodos comuns quanto às formas de obtê-la, tal como se manifestaram desde o final do século XIX. século XVIII, com a proibição das práticas judiciais inquisitivas. “Forma comum de verdade” significa no contexto da economia de punição do Iluminismo que “a verificação do crime devia obedecer aos critérios gerais de toda verdade” ( em filósofos, cientistas, economistas ou nas formas sociais de conhecimento). Isto explica, portanto, no processo judicial o reaparecimento da distinção entre as funções de acusação e julgamento, a proibição da tortura para obter confissão e a livre apreciação de provas.

Este último consiste em um sistema complexo que utiliza o bom senso, a ciência e uma série de discursos infinitamente relacionados para moldar a convicção do juiz.

O professor Ferrajoli [6], numa perspectiva normativa, parte da dicotomia conhecimento-poder, razão pela qual o processo judicial é concebido como uma combinação de conhecimento (veritas) e decisão (auctoritas), em que há uma relação negativa entre uma categoria e outra, pois quanto maior o poder, menor o conhecimento, e vice-versa. Essa dicotomia desenvolve outra: cognitivismo-decisionismo; cognitivismo -Significa que a justiça deve estar com a verdade, pois sem a verdade a justiça seria arbitrariedade, embora se reconheça que a justiça totalmente com a verdade é uma utopia. Para Ferrajoli, o sistema jurídico esclarecido é o ideal, portanto sua proposta filosófica de direito punitivo é estruturada a partir da filosofia política e dos princípios jurídicos (Bentham, Voltaire, Beccaria e outros) que surgem desse sistema. Ferrajoli diz que o sistema de garantias foi produto de reflexões filosófico-políticas criadas antes do nascimento do Estado de direito moderno, para as quais existe uma linha de continuidade rumo à perfeição entre os direitos naturais de a Idade Média e o Iluminismo, os direitos humanos e os direitos fundamentais na vida contemporânea. Poderíamos concordar que todos eles se referem a uma ideia de liberdade ou igualdade, mas têm significados históricos e condições socioeconômicas e políticas diferentes. Na verdade, a liberdade que os liberais do século XVIII exigiam é muito diferente daquela que os nobres exigiam contra o monarca medieval; por sua vez, a ideia de liberdade e igualdade no liberalismo atual é diferente daquela dos esclarecidos; além disso, a liberdade dos liberais não é apenas o sonho da razão, mas sim uma forma de governo, quando analisada a partir das práticas governamentais, sobretudo, a partir do dispositivo de segurança.

O Iluminismo, ponto histórico em que Ferrajoli percebe o ideal filosófico-político criado pela razão para a realização da justiça, é visto por Foucault em termos muito diferentes. O que Foucault percebe é a conexão histórica entre o homo legalis e o homo oeconomicus . Tal idealismo é criado ao passar a compreensão dos fenômenos sociais sob o esquema da inteligibilidade da economia. O sistema é criado com cálculos econômicos nos quais é medida a relação custo-benefício das instituições punitivas. Foucault também percebe o panoptismo social no Iluminismo; pois o tempo e o que ele chama de poder disciplinar estende-se à sociedade, não só com vigilância e controle policial da população, mas também através de fábricas, oficinas, escolas e hospitais, locais onde o comportamento dos indivíduos é permanentemente monitorizado, controlado e sancionado; São micropoderes com seus respectivos sistemas sancionatórios. Portanto, enquanto a ideologia liberal proclamava liberdades, as práticas sociais, económicas e governamentais estabelecem regimes disciplinares em todas as esferas da sociedade, incluindo o papel da polícia.

As práticas socioeconómicas e governamentais da Modernidade relacionadas com as formas de obtenção da verdade jurídica estão ligadas ao desenvolvimento do liberalismo desde meados do século XVIII europeu. O liberalismo se desenvolve sob a égide do sujeito de direitos-sujeito de interesses em que a liberdade é concebida como direito e como condição de governabilidade. Como direito, refere-se ao limite dos abusos dos governantes e, como forma de governo, leva o poder político a implementar as condições de segurança nas quais essa liberdade pode ser desenvolvida.

A liberdade e a segurança são arbitradas em torno da noção de risco ou perigo no liberalismo. Esta forma de governar a liberdade no liberalismo é algo imanente a ele. A intervenção na governabilidade liberal é o acontecimento arriscado ou perigoso que ativa a segurança para garantir a liberdade, mesmo que seja o sacrifício da liberdade de alguns para garantir a liberdade de outros.

Foucault, ao contrário dos discursos dos filósofos normativos, não pensa o poder em termos morais ou de legitimidade. Para Foucault, a lei desde a Idade Média teve a função de dissolver ou mascarar a existência da dominação, uma vez que a lei tem se preocupado em legitimar o poder da soberania e servir de instrumento desse poder para fundar a obrigação de obediência. Portanto, para Foucault é necessário que a lei esteja separada do poder da soberania, que não continue a justificá-la nem continue a fundamentar a sua obediência.

Mas a lei também deve se opor às instâncias normalizadoras da sociedade, através das quais os indivíduos acabam sendo instrumentalizados com base em determinados interesses.

Do exposto, pode-se concluir que Foucault prefere a linha da ação política ao exercício do direito. Foucault, ao contrário de normativistas como Ferrajoli ou Alexi, pensa que o poder político não pode estar sujeito à lei. Isto não quer dizer que em Foucault haja uma rejeição cega do normativismo, nem do direito, muito menos dos ideais filosóficos das liberdades individuais; o que Foucault rejeita é que se justifique que o poder da soberania ou as instâncias normalizadoras da sociedade se tornem condutores da verdade ou dos ideais. Com efeito, o poder da soberania exige instituições e órgãos que realizem um ideal filosófico, e tais instituições acabam por tecer relações de poder nas quais alguns homens acabarão por ser sacrificados em nome de tal ideal.

O liberalismo descreve muitas das características da atual lei probatória no país, incluindo a liberdade de prova; as proibições de tratamento cruel, degradante e desumano; características que se explicam a partir da epistemologia do tema de interesse, pois implica permitir que os sujeitos se desenvolvam livremente, naturalmente, na sociedade, para o que, não apenas a iniciativa do processo, a reivindicação e a Evidência são questões que ficam a cargo a liberdade das partes, mas também o juiz fica dispensado dos honorários probatórios para que possa decidir com base no bom senso; as regras do processo como uma extensão das regras naturais da economia. Aspectos esses, que abordaremos depois, que estão relacionados ao contraditório ou dispostivismo processual, uma vez que as práticas sociais e econômicas exigem que o processo judicial seja desenvolvido à maneira de uma espécie de “darwinismo ”.

A epistemologia iluminista continua com o fundacionalismo nas suas manifestações metafísicas (contrato social), bem como nas suas manifestações empíricas; Neste último componente, levanta-se a concepção de verdade por correspondência, conforme é analisado na seção seguinte, já que em grande medida a prova judicial se aproxima das formas comuns de ciência para o conhecimento dos fatos. Porém, o liberalismo exige segurança, por isso a ideia de controle populacional pela polícia que se estende por toda a sociedade é retirada do Estado absoluto; já que os sujeitos exigem regras mínimas de convivência que dêm segurança às transações econômicas.

Finalmente, como o liberalismo implica que o poder da soberania ceda parte do seu poder aos sujeitos económicos da sociedade, que constituem micropoderes que funcionam como instâncias normalizadoras da sociedade, nas quais os indivíduos não são apenas transformados mas também excluídos; portanto, o indivíduo não será dominado apenas pelo poder da soberania, mas também por vários poderes que aparecem espontaneamente na sociedade. Este exercício de normalização social tem uma componente essencial na confissão (a chamada sociedade confessional), que nas últimas décadas, como falaremos em artigos posteriores (parte dois e seguintes, afeta as práticas judiciais.

 

Notas e Referências:

[1] Advogado e Professor. Mestrado em Proc. Civil pela USP, especialista em Dir. Civil, Administrativo e Constitucional. Membro da ABDPRO e do IPDC.

[2] Cruz. Sebastião Costa. Direito Romano: Lições.  Imprenta: Coimbra, Almedina, 1969.

[3] Cusset, Y. e Haber S. (2007). Introdução: as coordenadas do debate entre Foucault e Habermas. Em Y. Cusset, Habermas/Foucault, trajetórias cruzadas, confrontos críticos. Buenos Aires: Nova visão

[4] Foucault, M. (2003). Verdade e formas jurídicas (2ª ed.). Barcelona: Gedisa.

[5] Morey, M. (1990). Introdução: a questão do método. Em Foucault, Tecnologias de si e outros textos relacionados. Barcelona: Paidos.

[6] Ferrajoli, L. (1995). Direito e Razão, Teoria das garantias penais. Madri: Trotta

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