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“DO LAR”, EXAUSTA!

O filme “a filha perdida”, adaptação da obra de Elena Ferrante para o cinema, estrelado pela incrível Olívia Colman, é um grande soco no estômago. O filme e o livro narram as férias de uma professora, que se isola numa praia, mas é arrebatada pelas suas próprias observações a respeito de uma família tipicamente napolitana.

Leda então passa a observar Nina, uma jovem mãe, com sua pequena Elena e começa a projetar sua trajetória como mãe, a partir de suas observações. A verdade é que Leda optou por trilhar um caminho que a grande maioria das mulheres se vê completamente impedida de fazer. Investir em uma trajetória profissional normalmente passa a ser um elemento coadjuvante quando combinado com a maternidade.

Dados recentes da FGV apontam que cerca de 50% das mulheres perdem seus empregos no Brasil após a maternidade. E esta função, que consiste numa atividade doméstica laborativa não remunerada, muitas vezes esbarra num grande problema de ordem social: a exaustão feminina e as dificuldades de acesso ao mercado de trabalho.

O problema é estrutural, social. O Brasil vive dentro de uma estrutura social democrática, que determina a inclusão social e a igualdade de oportunidades a todas e todos, mas na prática existe uma enorme barreira cultural na igualdade de oportunidades.

Atualmente as mulheres estão presenciando um movimento do mercado de demonstrar a paridade nas escolhas para cargos de liderança. As empresas que não se adequarem a este tipo de conduta, certamente passarão a ser cobradas neste sentido.

Contudo, o grande problema ainda é a mais completa ausência de políticas públicas para a construção de meios para viabilizar que as mulheres também possam dividir as atividades domésticas. Porque incluir mulheres no cenário mercadológico e não as desonerar da atividade laborativa doméstica, implica, necessariamente, em excluí-las do mercado.

Quando Leda resolve deixar as filhas aos cuidados do pai, ela toma uma decisão que vai impactar em sua vida social, porque passará a ser cobrada a todo tempo do seu “abandono”.

Para além disto, o Brasil ainda enfrenta um cenário mais preocupante, que é o não enfrentamento do trabalho doméstico como uma atividade sem qualquer fiscalização. Quando sancionada a “PEC das domésticas”, pela primeira vez o Estado lançou luz sobre as mulheres que trabalham no segmento. Pela primeira vez a sociedade passou a discutir os direitos relativos a esta categoria, e foi terrível constatar que a sociedade brasileira ainda objetifica pessoas. A revolta da classe média por ter que passar a remunerar e franquear garantias trabalhistas às domésticas, foi uma demonstração de que ainda não nos libertamos do sentimento escravocrata.

Em “Que horas ela volta”, Regina Casé protagoniza o papel de uma mãe que “deixa” sua filha no Nordeste e vai trabalhar como empregada doméstica no Sudeste. Quantas mulheres deste país não são obrigadas a viver nos seus trabalhos para buscar condições de sustento às suas famílias? Possibilitar que suas Jéssicas tenham acesso ao ensino superior?

Isto lhes retira o lazer, a convivência familiar, o direito à educação e cultura, a dignidade.

Exercer uma atividade laborativa remunerada parece ser um caminho que impõe a muitas mulheres, especialmente as de renda inferior, a escolha entre profissão e maternidade. Exercer a maternidade por meio da atividade doméstica laborativa não remunerada parece ser uma função tipicamente feminina, não incorporada pela ideia de acesso a direitos e deveres iguais entre homens e mulheres.

E quando esta mulher se vê diante da pressão social e “opta” por exercer a maternidade, deixando de lado, portanto, sua carreira profissional, fica completamente refém de uma dependência econômica. Esta dependência implica, muitas vezes, em violência física, psíquica, sexual e patrimonial. A mulher deixa de ser sujeito e passa a ser objeto, como nos tempos do patriarcado, um elemento da família.

É certo que esta mulher vai enfrentar, portanto, a exaustão física e mental de administrar a casa e a condução da rotina familiar, sendo ainda obrigada a ouvir que não trabalha, é “do lar”.

Nesta hipótese não terá sequer direito a uma contribuição previdenciária, nenhuma garantia fundiária – é uma atividade sem qualquer valor. O contexto social, quando coloca em xeque a escolha, entre homens e mulheres, sobre quem deixará o mercado de trabalho para se dedicar às “prendas domésticas”, também é cruel. A remuneração feminina é inferior, o que impulsiona o homem a manter-se no mercado e a mulher a assumir o lar.

A música “Ai, que saudades de Amélia”, cuja letra é de Mário Lago, retrata uma mulher que, dedicada ao lar, pouco exigia de seu amante. Amélia, considerada “a mulher de verdade”, passou a ser expressão utilizada para retratar a “mulher do lar”, aquela dedicada à casa, sem voz, submissa a uma relação. Chico Buarque declarou recentemente a autocensura à música “Com açúcar com afeto”, que narra a história da mulher que vê o marido sair diariamente de casa, sem lhe dar qualquer valor e retornar, depois de um dia repleto de descaminhos, para ser perdoado por esta mulher sem voz.

Quando nos deparamos com a força de Leda, personagem que, corajosamente, enfrenta o sistema patriarcal para se dedicar a um sonho profissional, ou ainda, para se permitir ter prazer, amantes, viajar e deixar as filhas aos cuidados do pai, sabendo que estarão seguras e serão educadas no exercício da paternidade, imaginamos uma mulher sem culpas, pela altivez com que se apresenta. A altivez da voz de Elza Soares, que empoderada pela Lei Maria da Penha, não permite mais ser alvo de violência doméstica, buscando em seu celular discar 180, em “Maria de Vila Matilde”.

Contudo, o fato é que Leda carrega as culpas do mundo, o peso dos julgamentos sociais. Vê escorrer em seu corpo o sangue, que parece sintetizar o fio da sociedade apunhalando a mulher livre.

Porque, ao que parece, precisamos estar sempre exaustas, para que validem nosso esforço de ter vez e voz.

 

Colunista

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Luciana Brasileiro
Luciana Brasileiro, advogada, mestre e doutora em direito privado pela UFPE, vice presidente da comissão de direito e arte do IBDFAM, conselheira científica do IBDFAM/PE, pesquisadora do Grupo Constitucionalização das Relações Privadas da UFPE

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