Princípio não é norma (24ª Parte)
Por Eduardo José da Fonseca Costa*
À Revista Brasileira de Direito Processual
I
Nem sempre exerci a docência formal; no entanto, desde 2002 tenho me conectado muito a alunos de graduação, especialização, mestrado, doutorado e pós-doutorado, o que me permitiu ser um observador privilegiado do modo gradual como a teoria normativista dos princípios capturou a mente estudantil de geração em geração até tornar-se a doutrina mainstream. O exercício da judicatura desde 2007 me tornou outrossim um observador privilegiado da forma peculiar como todas essas gerações – uma vez lançadas no mercado de trabalho como advogados, juízes, promotores, professores universitários, servidores públicos etc. – passaram a operacionalizar o direito no quotidiano forense. Mais: testemunhei as velhas gerações se adaptarem – por um imperativo pragmático-profissional e, por conseguinte, sem qualquer crivo teórico-racional – à ideia de princípio como norma; afinal, «quem não se adapta às modificações, condena-se ao fracasso». Eu mesmo me adaptei a essa degenerescência no afã imaturo de me alinhar à «avant-garde doutrinário-jurisprudencial». Como se não bastasse, testemunhei no curso de todos esses anos a teoria normativista dos princípios vingar na intelligentsia acadêmico-universitária brasileira quase sem resistência, sem debate, sem reflexão. Em suma, pude assistir de camarote à mudança estrutural da razão jurídico-teórica (que migrou de uma teoria formalista centrada em regras para uma teoria materialista centrada em princípios) e à consequente mudança funcional da razão jurídico-prática (que substituiu raciocínios concepto-subsuntivos por escolhas casuístico-discricionárias).
A contar dessa constatação observacional, pretendo neste pequeníssimo ensaio descrever, em linhas genéricas, as etapas de funcionamento da consciência individual que só sabe manobrar o direito com princípios. Em resumo, pretendo desenvolver uma microfenomenologia ad hoc da mente principiologista. É bem verdade que se trata de um tipo puro ou ideal, que não corresponde perfeitamente à realidade, posto que ajude demais na sua compreensão. Hoje, na vida real, de ordinário, o operador do foro se alterna, ainda que de modo desarticulado, entre o manejo das regras e o manejo dos princípios, entre um pensamento formalista e um pensamento substancialista, entre uma postura técnica e uma postura política. Nada obstante, a deseducação teórica e a inabilidade prática para a aplicação de regras são visivelmente crescentes. Destarte, as mentes principiologistas constituem cada vez mais um grupo humano homogêneo e, consequentemente, uma categoria empírico-sociológica. Pior: tribunais inteiros já se compõem quase totalmente delas, donde se verifica que a noção de mente principiologista caminha a passos largos de um tipo ideal para um conceito geral. Ela se torna aos poucos uma representação fiel do real.
II
A primeira etapa de funcionamento da mente principiologista é a sua reação bastante singular ao caso prático (real ou hipotético). É preciso registrar que esse tipo psicológico é caracterizado por uma personalidade reativa, que fica invariavelmente à mercê das circunstâncias. Em não raras vezes, os elementos fáticos do caso prático já se encontram perfeitamente descritos na primeira parte de uma regra legal expressa, ou seja, da sua hipótese de incidência [al.: Tatbestand, it.: fattispecie, esp.: supuesto de hecho]; sendo assim, a solução que se espera para o caso já é trazida pela segunda parte da regra, ou seja, pela consequência jurídica [al.: Rechtsfolge, it.: statuzione, esp.: consecuencia jurídica]. Apesar disso, a vigência dessa regra legal expressa é fidalgamente desprezada. É como se a lei não importasse, como se ela fosse um dado não tematizável, como se habitasse a borda exterior da juridicidade. Não é para menos: o senso unilateral de pseudojustiça da personalidade reativa é incapaz de tolerar que a lei prescreva uma solução omnilateral divergente.
Ora, normalmente, oferecido o caso prático à apreciação, a mente principiologista lhe dirige de imediato uma resposta instintiva. Com base em um sentimento descompensado, passional, bruto e amorfo (que se pode apoiar, de quando em quando, em ódio, mágoa ou ressentimento), a mente principiologista minuta sumariamente uma regra paralegislativa como solução inconfessa para o problema. Trata-se de uma norma artesanal produzida liminarmente, de uma só vez, de um único jato, de forma abrupta, enviesada, ligeira, repentina, súbita. Trata-se, enfim, de uma norma rústica, esboçada incontidamente, que reúne as seguintes particularidades: esforço baixo, consciência cognitiva baixa, controle consciente baixo, velocidade rápida, valência emocional alta, automaticidade alta e confiabilidade baixa. Nesse sentido, expele-se um juízo afoito de sub-equidade, que não obedece a um processo elaborado, lento, meditado, pensativo, reflexivo, sensato, suficiente, controlado passo dopo passo, por intermédio do qual se possa concluir ou deduzir a regra neutral do caso examinado desde um corpo abstrato de postulados éticos transcendentes, ou a partir de uma ordem concreta de valores morais sociais. A rigor, aqui não é possível falar-se sequer em «juízo»: a regra casuística não resulta do exercício sereno das faculdades intelectuais de entender, avaliar, comparar e inferir. Com efeito, ela se funda em um pré-juízo, uma atitude pré-racional, um açodamento, uma afobação, um aforçuramento, uma ansiedade, uma impaciência, um ímpeto, um improviso, uma irritação, uma precipitação, uma pressa. É formada sem conhecimento de causa, sem análise prévia e cuidadosa, sem preparação. Por esse ângulo, a regra jurídica que a mente principiologista produz in casu é meramente um rompante deontológico, um arroubo normativo, um impulso regulativo.
III
Nota-se que o decreto sumário de uma norma inconfessa para o caso é marcado pelo signo da intransparência. Essa norma é criada dentro de uma zona de indeterminação, que não permite ao público conhecer as condições em que essa criação acontece. Por isso, a mente principiologista pode ser dividida em duas grandes categorias. 1) De um lado, está a mente subconsciente, que é moralmente reativa e não tem qualquer domínio objetivo-racional sobre a sua própria criação normativa. Em geral, esse tipo mental caracteriza grupos jurídico-ocupacionais subalternos, que são divididos, desarticulados e desorganizados, compondo-se de neófitos (graduandos, recém-graduados, concurseiros etc.), pequenos advogados, professores de instituições de ensino menos renomadas, escritores que replicam doutrina alheia, juízes de primeira instância, servidores públicos de baixo escalão; etc. 2) De outro lado, está a mente consciente, que se aproveita da opacidade da criação para esquematizar deliberadamente a regra casuística segundo pautas preestabelecidas, não raro de caráter político-ideológico. Em geral, esse tipo mental se apresenta em grupos jurídico-ocupacionais dirigentes, que são homogêneos e solidários entre si e que se compõem de advogados renomados, professores das instituições de ensino mais prestigiadas do País, doutrinadores afamados, ministros de tribunais superiores, membros de conselhos nacionais (ex.: CNJ, CNMP, CJF, CSJT, CFOAB), etc.
É nesse segundo grupo que o juspoliticismo pode disfarçar-se de jusmoralismo e os princípios podem ser manuseados para consagrar no âmbito judiciário projetos políticos já desprezados nos âmbitos legislativo e executivo. Contudo, o segundo grupo tem o poder instrumental de enviesar os integrantes do primeiro e, mediante processos subliminares de doutrinação, incutir-lhes no subconsciente uma certa ideologia político-social. Pudera: os grupos dirigentes detêm os meios de produção jurídico-cultural e, por isso, impõem a corrente principal, os enunciados de súmula, os precedentes judiciais vinculantes, o conteúdo jurídico exigido nos editais de concursos públicos, os planos plurianuais de atuação judiciária, as recomendações funcionais e os critérios de promoção para a classe da magistratura etc. Garante-se, desse modo, que a reação emocional dos grupos subalternos coincida com a reação ideológica esperada. Enfim, garante-se que a multidão do primeiro grupo se amolde ao projeto político tutelado pela elite do segundo. Sob essa perspectiva, os subalternos se tornam fantoches, que precisam internalizar e reproduzir os dogmas estabelecidos pela classe jurídica dirigente para lograrem a satisfação de suas pretensões (sucesso escolar, aprovação no exame da OAB, aprovação em concurso público, admissão em programas de mestrado e doutorado, procedência de suas demandas, admissão e provimento de seus recursos, reconhecimento e promoção funcionais etc.).
IV
A segunda etapa de funcionamento da mente principiologista é a seleção a posteriori de um princípio do qual seja possível derivar a regra definida a priori, deixando-se de lado princípios que porventura contradigam essa derivação e que não interessem. Elege-se um princípio do qual a regra seja uma das suas tantas possibilidades deontológicas. Vai-se à caça estratégica de um princípio que referende juridicamente o sentimento bruto, passional, descompensado e amorfo de justiça. Em outras palavras, faz-se uma «garimpagem». Dessa maneira, o princípio não é envolvido nas especificidades da situação prática até que ao final, após o transcurso de alguma trajetória com pretensão metodológica, esteja ele concretizado em uma regra casuística. Faz-se deveras o contrário: a regra predeterminada é rarescida até vislumbrar-se ampliativamente no horizonte algum princípio capaz de corroborá-la. Daí por que se trata de uma execução mental retrospectiva e instrumental, utilizada como meio de dominação e orientada pela máxima «decido primeiro e fundamento depois».
O princípio alicerçal pode estar positivado em algum dispositivo da Constituição ou da lei [= princípio explícito], ou subentendido em um bloco finito de regras [= princípio implícito]. Todavia, se a mente principiologista não encontrar uma coisa nem outra, ela não se dará por vencida: transformará alquimicamente em princípio de direito um valor da moral social vigente que jamais haja sido positivado pelo legislador; se mesmo assim o valor moral social vigente não amparar a regra jurídica, a mente principiologista transmudará em princípio de direito um valor moral pessoal, ditando in fore externo a moralidade a que se obriga in fore interno. Trocando em miúdos, à míngua de princípios preexistentes, a mente principiologista inventará a qualquer preço um que lhe sirva, como um mágico que tira um coelho da cartola. Isso explica por que o mercado das ideias jurídicas passou a se abarrotar de princípios inusitados, com nomes excêntricos, fabricados ex nihilo, que não se encontram positivados nem subentendidos no sistema (ex.: «princípio da afetividade familiar», «princípio da proibição do retrocesso social»). Sem embargo, uma mente principiologista menos inventiva poderá lançar mão dos «princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e da dignidade da pessoa humana», embora sem saber exatamente o que cada um deles significa. Aliás, o uso artificial, desfigurado, desmedido, retórico e versátil da proporcionalidade, da razoabilidade e da dignidade da pessoa humana tem servido para embasar a formulação manipuladora de toda e qualquer regra paralegislativa, como se fossem o arquétipo triádico fundamental da juridicidade mesma. Tornaram-se a carta curinga na baralhada hipertrófica dos princípios. Entretanto, o mais irônico de tudo isso é que a proporcionalidade – o mais invocado de todos os «princípios» – nem princípio é (v. 19ª parte).
V
A terceira e última etapa de funcionamento da mente principiologista é a configuração de um constructo retórico-argumentativo. Como já dito à exaustão nesta série de artigos, a mente principiologista não aplica diretamente o princípio, senão uma regra de densificação que ela mesma inventa. Portanto, entre o princípio densificado e a regra densificante sempre se interpõe uma concepção paralegislativa, que é político-discricionária. Seja como for, essa concepção necessita de uma justificação racional, que recorre a uma exposição de motivos, ou seja, a uma junção articulada das razões confessáveis – pseudo– e extra-jurídicas (políticas, morais, religiosas, econômicas, científicas, educacionais, artísticas, militares etc.) – que levaram a mente principiologista a esquematizar a regra tal como o fez. Assim, apenas é viável realizar um princípio por meio de uma atividade retórico-argumentativa. Não sem motivo, a uma teoria dos princípios se acopla quase sempre uma teoria (retórica) da argumentação (quase porque, no Brasil, via de regra, nem isso se faz). Logo, ao menos sob o ponto de vista estrutural, existe uma forte homologia entre o discurso «aplicativo» de princípios a situações práticas e o discurso parlamentar legislativo. Embora os próceres da teoria dos princípios tentem convencer de que a regra casuística brota naturalmente da intimidade do próprio desenvolvimento argumentativo, na verdade a regra já foi inventada antes mesmo da argumentação. Pior: foi inventada por quem não tem legitimidade democrática para tanto.
Ora, a regra que densifica um princípio não é inferida por meio de um raciocínio lógico desde premissas como uma solução única e unívoca; decididamente, ela é uma opção política entre várias possibilidades deontológicas, à margem de qualquer lógica formal ou informal, a partir de critérios indevassáveis de conveniência, oportunidade e praticabilidade. Sob esse ponto de vista, o constructo retórico-argumentativo arquitetado pela mente principiologista serve de «cortina de fumaça» para esconder nas entrelinhas da fundamentação a regra inventada. Noutros termos, serve de «retórica negra» (Michel Meyer), de recurso de dissimulação, de técnica de desorientação, gerando a ilusão de que se «aplica» o próprio princípio ao caso. Desse modo, mantém-se o foco do auditório na argumentação em si, desviando-se a atenção da regra predeterminada (que é o «truque de mestre» a ser ocultado). Nisso reside, por sinal, a essência da teoria dos princípios. Daí por que, na praxe principiológica, a argumentação adquire uma natureza revestimental: ela enverniza uma atividade político-discricionária para causar a impressão de que se trata de uma atividade técnico-burocrática; desse jeito, varre para debaixo do tapete a criptorregra (sobre a noção de criptonormatividade, v. 3ª Parte).
VI
Como se viu, o funcionamento da mente principiologista é basicamente trifásico. Compreende: 1) a tomada de uma decisão [= a criação reativo-emocional ou político-ideológica de uma regra para o caso]; 2) a busca de um fundamento para essa decisão [= a descoberta de um princípio preexistente ou a invenção de um princípio até então inexistente dos quais se possa derivar a regra]; 3) o desenvolvimento argumentativo do trajeto que leva do fundamento escolhido até a decisão tomada [= a construção de uma argumentação retórica, que persuada falsamente o público de que se aplicou in casu o princípio, não uma regra dele derivada]. É fácil perceber que não se está diante de uma laboração mental raciocinada, em que a etapa posterior decorre necessariamente da etapa anterior. Em verdade, a mente principiologista funciona com o auxílio de uma justaposição temporal de três atos decisionistas, que partem da primazia absoluta da vontade sobre o entendimento.
Nesse sentido, a mente principiologista é o nec plus ultra psicológico do voluntarismo jurídico. Ela quer aplicar uma regra específica, ainda que lhe falte amparo legal. Ela quer fundar-se em princípios, ainda que não tenham normatividade. Ela quer atender à lógica, conquanto consiga somente ser retórica. Daí por que ela é antilegalista, antinormativista e antilógica. Em síntese: ela é revolucionária. Nas suas mãos, os princípios são artefatos de guerrilha que lhe permitem infligir mudanças profundas ao ordenamento jurídico, revisando de ponta e ponta, de A a Z, do alfa ao omega, todas as regras vigentes sem que um único dispositivo constitucional ou legal seja legislativamente alterado ou revogado. À medida que os casos práticos lhe são apresentados, a mente principiologista usa a sua carteira particular de princípios para constituir o seu próprio sistema de regras. Fá-lo à margem da Constituição e da lei, mesmo que aqui e ali haja correspondências entre as regras do ordenamento jurídico originário e as regras do ordenamento jurídico revolucionário. De um lado, encontra-se o sistema originário, que se organiza das regras constitucionais e infraconstitucionais. De outro lado, encontra-se sistema revolucionário, que se organiza: a) das regras constitucionais e infraconstitucionais referendadas pela mente principiologista; b) das rationes decidindi dos precedentes obrigatórios que a mente principiologista editou para suplantar as regras totalmente indesejadas, modificar as regras parcialmente indesejadas e engendrar as regras desejadas não previstas na Constituição nem na lei. Ante esse estado degenerado de coisas, para se restituir ao direito a dignidade perdida, urge um processo contrarrevolucionário, que seja deflagrado pelas mentes regristas. Do resultado dessa luta entre principiologistas e regristas – que, no fundo, representam os dois polos de uma guerra cultural muito mais profunda – depende, em boa medida, a sorte do direito.
*Juiz Federal em Ribeirão Preto/SP. Especialista, Mestre e Doutor pela PUC/SP. Professor de Mestrado e Doutorado da UNAERP. Ex-Presidente da ABDPro (triênio 2016-2018). Diretor da RBDPro