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TJSP – Considerações acerca do bloqueio de conta em marketplace

Com o advento e avanço do mundo digital fica cada vez mais difícil manter um modelo de negócios que não se ampare em estratégias de vendas virtuais. Uma dessas maneiras de se concretizar as vendas por meio de plataformas digitais é a venda no estilo marketplace. Resumo para você, leitor: uma empresa A que vende um determinado produto, mas que não possui renome ou alcance o bastante para fazê-lo de forma direta ao consumidor final ingressa como parceira de um site de porte de uma empresa grande B (Amazon, Submarino, Americanas, Ponto Frio etc) a fim de anunciar seus produtos nesses sites. Assim, a empresa A se beneficia, pois aumenta seu alcance e confiabilidade, aproveitando-se do espaço de compra (daí falar-se em marketplace) da empresa B; ao passo que a empresa B se beneficia com o aumento do leque de produtos oferecidos ao seu cliente, bem como pelo fato de apenas intermediar a venda, não tendo que gerir estoque, processo de entrega etc.

Feito esse breve introito, passemos ao cerne do acórdão que iremos interpretar nessa semana.

O caso em tela era entre uma gigante do comércio (para todos os efeitos Amazônia Ltda.) e uma empresa menor (para todos os efeitos a YYZ Ltda. – nome fictício inspirado em música da banda Rush) que utilizava os serviços de marketplace daquela. Ocorre que a Amazônia Ltda., após reiteradas reclamações de seus clientes, optou por reter os pagamentos devidos à YYZ Ltda. Não fosse o bastante, a Amazônia decidiu também bloquear a YYZ de seu site, impedindo-a de gerar novas vendas, e de, portanto, subsistir.

A YYZ ajuizou ação então buscando o desbloqueio no marketplace e a liberação dos valores, somando-se a isso uma quantia por dano moral, pelo fato de ter sido o ato originário causador de abalo à honra objetiva da YYZ. A sentença, assim como o acórdão, foram unânimes em entender pela procedência dos pedidos, determinando a liberação dos valores, o desbloqueio da conta e a indenização por danos morais no patamar de R$5.000,00.

Afora os meus comentários usuais acerca dos baixos valores dos danos morais concedidos judicialmente no Brasil, que realmente é um caso muito peculiar, acredito que o julgamento tenha sido acertado, principalmente pelos fundamentos evocados. Vamos a eles, ou, pelo menos, a um resumo deles.

A ré Amazônia não conseguiu provar nos autos que de fato a maior parte das vendas de YYZ eram problemáticas, sendo certo que o relator do recurso entendeu que houve, no caso, uma “anemia probatória”, caracterizada pela baixa existência de provas juntadas aos autos, seja quantitativamente ou qualitativamente, no sentido sustentado pela parte. Ou seja, a Amazônia não se desincumbiu de seu ônus de provar a legalidade do bloqueio.

Além disso, o fato de a Amazônia fazer “justiça com as próprias mãos”, retendo diretamente o pagamento devido à YYZ, também foi um abuso pontuado pelo acórdão. Com efeito, no sistema brasileiro é vedada a autotutela, e, nesse sentido, não pode uma empresa sair retendo pagamentos a torto e a direito. O que causou mais espécie no desembargador foi o fato de que as retenções eram por prazo indeterminado, ou seja, não havia data para a Amazônia liberar tais valores, configurando uma ofensa ainda maior ao ordenamento pátrio.

Por fim, pontuo que uma coisa é certa, se de um lado a mantenedora do marketplace não pode bloquear vendedores parceiros sem justo motivo, bem como não pode reter o pagamento destes, de outro é necessário que haja certa margem de manobra a fim de que essa estratégia negocial não seja uma relação “eterna”, e, pior, “abusiva” – uma vez que o nome da empresa de marketplace vai pelo ralo junto com aquele do vendedor ruim que lá anuncia e vende os produtos. É nesse sentido que evoco a todos a pensarem nas situações de forma ponderada, pois só assim conseguiremos chegar mais perto de uma compreensão holística dos casos.

 

Dados do processo interpretado já formatados para citação:

 

(TJSP; Apelação Cível 1090476-29.2021.8.26.0100; Relator (a): Ferreira da Cruz; Órgão Julgador: 28ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 32ª Vara Cível; Data do Julgamento: 20/09/2022; Data de Registro: 20/09/2022)

 

Ementa do processo interpretado:

 

INDENIZAÇÃO. COMÉRCIO ELETRÔNICO. Bloqueio da conta de usuário realizado de forma unilateral e arbitrária. Descumprimento contratual não identificado na espécie. Autor que atendeu a todas as determinações da Amazon, mas ainda assim sua conta permaneceu bloqueada. Notas fiscais emitidas antes da medida restritiva. Devolução do montante retido e desbloqueio da conta que são de rigor. Dano moral configurado. Liquidação em R$ 5.000,00 que, por não representar quantum irrisório nem exorbitante, merece ser mantida. Juros de mora x responsabilidade contratual. Matéria de ordem pública. Termo inicial alterado. Recurso desprovido, com observação.

 

 

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Paulo Schwartzman
Mestrando em Estudos Brasileiros no IEB/USP. Pós-graduado em Direito Civil pela LFG (Anhanguera/UNIDERP), em Direito Constitucional com ênfase em Direitos Fundamentais e em Direitos Humanos pela Faculdade CERS, em Direito, Tecnologia e Inovação com ênfase em Direito Processual, Negociação e Arbitragem pelo Instituto New Law (Grupo Uniftec). Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo. Assessor de magistrado no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo desde 2016. . Colunista semanal no Jornal Jurid e articulista no Migalhas. . Adepto da interdisciplinaridade, possui como cerne de sua pesquisa uma abordagem holística de temas atuais envolvendo o Brasil, o sistema jurídico e o ensino.

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