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Os Embargos de Divergência e a caracterização do dissídio jurisprudencial

Quando a lei é interpretada / aplicada diversamente por órgãos fracionários de um mesmo tribunal ou por diferentes tribunais, a despeito de contextos fáticos assemelhados entre os casos confrontados, configurar-se-á um dissídio ou divergência jurisprudencial.[1] De antemão, anote-se que a configuração do dissídio não se confunde à técnica necessária à sua demonstração, é dizer, o cotejo ou confronto analítico (identificação dos trechos dos acórdãos em que um determinado preceito foi compreendido diversamente).

O dissídio foi erigido por lei como requisito de admissibilidade tanto do Recurso Especial (sempre que fundado no art. 105, III, “c”, CF/1988) quanto dos Embargos de Divergência (art. 1.043, CPC). Em ambos os casos há o desiderato de padronizar o entendimento pretoriano, mas os diferentes perfis desses recursos repercutem na própria configuração de dissídio ou dissenso, tornando possível falar em graus ou âmbitos de divergência (externa e interna).

O Recurso Especial tem espectro substancialmente mais amplo que o dos Embargos de Divergência. Abstraindo as alíneas “a” e “b” do permissivo constitucional, se qualquer dos Tribunais de Justiça ou Tribunais Regionais Federais “der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal”, o acórdão desafiará o REsp. No particular, a ordem jurídica confere notável abertura à configuração do dissídio jurisprudencial, admitindo que o acórdão paradigma ou padrão decisório tomado em consideração, possa ser oriundo de qualquer dos tribunais mencionados acima, inclusive, e com mais razão, do próprio Superior Tribunal de Justiça. No ensejo, a partir do texto constitucional, parcela da doutrina defende que o aresto paradigma poderia ser originário de tribunais não submetidos à jurisdição do STJ,[2] o que não parece apropriado.

Já os Embargos de Divergência têm por objetivo pacificar o entendimento do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça acerca de um determinado tema;[3] é um recurso exclusivo desses tribunais, cabível sempre que houver dissenso entre acórdãos de Recursos Extraordinários ou Especiais com decisão anterior de outro órgão fracionário do respectivo tribunal. Em certa medida, os Embargos de Divergência constituem um desdobramento recursal dos chamados recursos excepcionais; um remédio adicional para superar a divergência, desta feita, interna ou intestina.[4] Sobre ser cabível apenas em RE ou REsp, também é admitido contra acórdão em Agravo ou Agravo Interno, desde que essa extensão recursal aconteça em extraordinário ou especial.[5] Quanto ao padrão de confronto, ecoando o entendimento doutrinário, o art. 1.043, § 1º, CPC – reproduzido no art. 266, § 1º, RISTJ,[6] após a emenda de 2016 – permite que seja proveniente de qualquer outro recurso (ex. recurso ordinário) ou ação originária (ex. mandado de segurança).

Por ser um recurso destinado a padronizar a jurisprudência intra muros, é intuitivo que a caracterização do dissídio nos Embargos de Divergência está restrita à contrariedade com decisões de outros órgãos fracionários do mesmo tribunal, sendo irrelevante se as decisões foram tomadas por maioria ou à unanimidade. No ensejo, muito embora os Embargos de Divergência sejam da competência exclusiva do Pleno no âmbito do STF, no STJ eles poderão ser julgados por uma das Seções ou pela Corte Especial. Será da Seção quando houver discrepância entre acórdãos de turmas vinculadas à mesma Seção (ex. 1ª e 2ª, competência da 1ª Seção; 3ª e 4ª, competência da 2ª Seção) ou quando a decisão da Turma desafiar o entendimento da Seção à qual ela é vinculada (ex. 1ª ou 2ª Turma prolata acórdão em contraste ao entendimento da 1ª Seção), o que está previsto no Regimento Interno do tribunal (art. 12, parágrafo único, I, RISTJ). A competência será da Corte Especial quando o dissenso ocorrer entre turmas vinculadas a Seções diversas (ex. 1ª e 3ª; 2ª e 4ª), quando a decisão da turma divergir de acórdão de Seção à qual ela não esteja vinculada (ex. 1ª Turma e 2ª Seção; 3ª Turma e 1ª Seção), quando houver contrariedade entre as Seções ou quando qualquer dos órgãos fracionários dissentir da Corte Especial (art. 11, XIII, RISTJ).

À vista do objetivo de uniformização, não se admitem Embargos de Divergência quando o acórdão que se pretende impugnar estiver alinhado com a jurisprudência do tribunal (ex. acórdão da 1ª Turma replicando o entendimento da Corte Especial).[7] Rigorosamente, não há um dissenso nesse caso, o que nos remete à nota da atualidade indispensável ao cabimento dos Embargos de Divergência (art. 266, RISTJ).[8] 

Para fins de cabimento dos embargos, sustenta-se que o requisito da divergência tem que ser dotado de atualidade, sob pena de indeferimento liminar (art. 266-C, RISTJ). Nesse sentido, não é porque houve substancial alteração na composição do órgão prolator da decisão que se pretende embargar (maioria dos integrantes), que será possível utilizar aresto anterior do mesmo colegiado para fins de configuração do dissídio. Posto que essa “divergência orgânica” seja admitida por boa parte da doutrina à interposição dos Embargos de Divergência,[9] entendemos que a visão contrasta com a nota de atualidade.[10] Na contramão do nosso entendimento, o § 3º do art. 1.043, CPC, sobrevivo à Lei nº 13.256/2015, resolveu qualquer celeuma, admitindo o recurso nessa situação.

Raciocínio similar é aplicável quando o acórdão paradigma for originário de órgão fracionário que perdeu a competência para apreciar uma determinada matéria, caso em que decisões anteriores do mesmo órgão não se prestarão à caracterização do dissídio (Enunciado 158/STJ), uma vez que tampouco haveria atualidade da divergência. O entendimento foi reiterado em recente decisão da Corte Especial do STJ ao enfrentar o AgInt nos EAREsp 1788698/SC, Rel. Ministro JORGE MUSSI (j. em 21/09/2021, DJe 28/09/2021). No caso, o recorrente negligenciou que uma emenda regimental de 2011 havia alterado a competência da 5ª e 6ª Turmas da Corte, quanto então passaram a conhecer e julgar apenas matéria penal e processual penal. Logo, a despeito da importância histórica, acórdãos pretéritos desses colegiados não são admitidos à caracterização do dissídio (AgInt nos EAREsp 1788698/SC, Rel. Ministro JORGE MUSSI, CORTE ESPECIAL, julgado em 21/09/2021, DJe 28/09/2021).[11] 

 

Referências Bibliográficas:

[1] ASSIS, Araken de. Manual dos Recursos. 2. ed. São Paulo: RT, 2008, p. 791.

[2] Bernardo Pimentel Souza aduz que seria possível utilizar acórdãos do extinto Tribunal Federal de Recursos, assim como, porque o texto constitucional fala em “outro tribunal” (art. 105, III, “c”, CF/1988), também seria admissível decisões colegiadas de tribunais da justiça especializada (trabalhistas, militares e eleitorais). Introdução aos Recursos Cíveis e à Ação Rescisória. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 831-832. Conquanto admitamos no primeiro caso (Tribunal Federal de Recursos) e, pela mesma lógica, do próprio Supremo Tribunal Federal (quando detinha competência para apreciar matéria infraconstitucional), não vislumbramos utilidade na permissividade a acórdãos de tribunais não submetidos à jurisdição do STJ.

[3] MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 638.

[4] Atentando à necessidade de demonstração de que os contextos fáticos sejam assemelhados. Nesse sentido, passagem do voto do Ministro Raul Araújo nos Embargos de Divergência em Ag de nº 1195905: “O objetivo dos Embargos de Divergência é a uniformização da jurisprudência interna no Superior Tribunal de Justiça, eliminando dissídio entre acórdão de turma e precedente de outro órgão colegiado do mesmo tribunal. É mister a identidade fática entre as hipóteses subjacentes aos acórdãos em confronto e adoção de soluções jurídicas diversas.” O voto foi vencido, mas em questão completamente diversa. (EAg 1195905/RS, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, Rel. p/ Acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 26/10/2011, DJe 21/08/2012).

[5] Os Enunciados 315 e 316 do STJ reforçam o entendimento: “Não cabem embargos de divergência no âmbito do agravo de instrumento que não admite recurso especial.” e “Cabem embargos de divergência contra acórdão que, em agravo regimental, decide recurso especial.”, respectivamente. No primeiro caso, a contrario sensu, cabível da decisão que analisou o mérito do especial no AREsp.

[6] “§ 1º Poderão ser confrontadas teses jurídicas contidas em julgamentos de recursos e de ações de competência originária.”.

[7] Raciocínio similar levou à edição do Enunciado 83/STJ: “Não se conhece do recurso especial pela divergência, quando a orientação do Tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida.”

[8] “Art. 266. Cabem embargos de divergência contra acórdão de Órgão Fracionário que, em recurso especial, divergir do julgamento atual de qualquer outro Órgão Jurisdicional deste Tribunal, sendo:”

[9] Por todos: MOREIRA, José Carlos Barbosa, op. cit., p. 639.

[10] Entendendo que o recurso não seria cabível porque ausente a nota da atualidade: CARNEIRO, Athos Gusmão. Recurso Especial, Agravos e Agravo Interno. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 119.

[11] Como bem pontuado por Araken de Assis: “Os embargos de divergência evitam o dissídio entre órgãos fracionários com idêntica e atual competência ratione materiae.” Op. cit., p. 840.

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Mateus Pereira
Doutor e Mestre em Direito Processual. Professor de Direito Processual Civil na Graduação, no Programa de Pós-Graduação em Direito e Coordenador da Especialização em Processo Civil da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Advogado (sócio do Da Fonte, Advogados). . Autor do Podcast e do canal de Telegram "Processo & Prosa"(https://t.me/processoeprosa).

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