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A redação do art. 226, § 1º, do ECA (Pós alteração trazida pela Lei 14.344/22) e o Princípio da Irretroatividade Penal

No dia 24/05/2022 entrou em vigor na legislação brasileira a Lei nº 14.344/2022, que, conforme disposto no próprio instrumento jurídico, possui o intuito de criar mecanismos de prevenção e enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a criança e adolescente. O seu conteúdo instituiu diversas alterações a normas legislativas que se encontravam até então vigentes, como ao Código Penal, de Processo Penal, Lei de Crimes Hediondos e Estatuto da Criança e do Adolescente.

 

Adentrando às modificações, alterou-se o texto constante no parágrafo primeiro do art. 226 do Estatuto da criança e do adolescente para dispor que aos “crimes cometidos contra a criança e o adolescente, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995”.

 

A partir dessa alteração, surgiram dúvidas no âmbito jurídico, especialmente processual penal, acerca da competência para análise e julgamento de alguns feitos relacionados à temática. Diante disso, em virtude de tal divergência que, in casu, versava acerca do delito de maus-tratos, previsto no art. 136 do Código Penal, decidiu a Colenda 8ª Câmara Criminal:

EMENTA: CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO – MAUS-TRATOS – ART. 226, §1º, DO ECA – REDAÇÃO DADA PELA LEI N.º 14.344/2022 -LEI HENRY BOREL – APLICAÇÃO INVIÁVEL – FATOS ANTERIORES À VIGÊNCIA DA LEI – NORMA HÍBRIDA – IRRETROATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS GRAVOSA AO AGENTE – APLICAÇÃO RESTRITA AOS CRIMES PREVISTOS NO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE – ANÁLISE TOPOGRÁFICA DO DISPOSITIVO – COMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL. Uma vez que o suposto delito em análise teve início antes da entrada em vigor da Lei n.º 14.344/2022, impossível a aplicação retroativa do dispositivo legal, por se tratar de novagio legis in pejus. Norma híbrida. Além do que, realizada a interpretação sistemática da análise topográfica das alterações promovidas na Lei nº 8.069/90 (ECA) pela Lei nº 14.344/2022 (“Lei Henry Borel”), conclui-se pela inaplicabilidade da Lei nº 9.099/95 somente aos crimes cometidos contra crianças e adolescentes que estejam previstos no próprio Estatuto da Criança e do Adolescente. Tratando-se de crime previsto no Código Penal, ainda que a vítima seja adolescente, compete ao Juizado Especial Criminal o processamento e julgamento do feito.  (TJMG – Conflito de Jurisdição  1.0000.23.141132-3/000, Relator(a): Des.(a) Anacleto Rodrigues , 8ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 28/09/2023, publicação da súmula em 29/09/2023).

 

Da análise da mencionada alteração trazida pela Lei nº 14.344/22, verifica-se que esta possui natureza híbrida – penal e processual penal –, submetendo-se, portanto, ao princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa, expresso no art. 5º, XL, da Constituição Federal de 1988, sendo aplicável retroativamente apenas quando for mais benéfico ao acusado.

 

No caso analisado pela 8ª Câmara Criminal, considerando que os fatos em apuração ocorreram antes da entrada em vigor do novel legislativo, é patente a não aplicação do disposto no art. 226, §1º, do ECA, pois mais prejudicial ao acusado, configurando novatio legis in pejus.

 

Sobre o tema, assevera a doutrina:

Impõe-se discutir se a nova lei processual penal é mais gravosa ou não ao réu, como um todo. Se prejudicial, porque suprime ou relativiza garantias (…) limitar-se-á a reger os processos relativos às infrações penais consumadas após sua entrada em vigor.

Afinal, também aqui advertem os autores – é dizer, ‘não apenas na incriminação de condutas, mas também na forma e na organização do processo – a lei deve cumprir sua função de garantia, de sorte que, por norma processual menos benéfica, se há de entender toda disposição normativa que importe diminuição de garantias, e, por mais benéfica, a que implique o contrário: aumento de garantias processuais’.

Então, a lei processual penal mais gravosa não incide naquele processo, mas somente naqueles cujos crimes tenham sido praticados após a vigência da lei. (LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p. 125 e 126).

 

Com efeito, como bem arguido pelo culto Relator, a regra prevista no art. 226, §1º, do ECA após a alteração se aplica exclusivamente a delitos tipificados no próprio ECA, não se estendendo a qualquer crime cometido em face de crianças e adolescentes.

 

A respeito de controvérsia, menciona-se no referido acórdão analisado apontamentos de Paulo Roberto Santos Romero, que dispõe, in verbis:

 

Impende reconhecer: é mesmo controvertido o alcance da proibição de aplicabilidade da Lei nº 9.099/1995 em relação às infrações penais praticadas contra crianças e adolescentes. Isso em razão do novo artigo 226 do ECA, alterado pela Lei 14.344, de 24 de maio de 2022 (Lei Henry Borel). (…) A referida controvérsia, portanto, cinge-se sobre a aplicabilidade das disposições da Lei nº 9.099/1995 no que se refere a delitos praticados contra crianças e adolescentes não tipificados no ECA, conforme se dá com os maus-tratos. Uma primeira corrente advoga a parcial impossibilidade de aplicação da Lei nº 9.099/1995 em relação aos crimes praticados contra crianças e adolescentes. Segundo esse respeitável entendimento, o § 1º complementa o caput do artigo 226 do ECA e a referida proibição apenas atingiria os crimes previstos “nesta lei”, qual seja o próprio ECA. A corrente contraposta defende a completa impossibilidade da aplicação da Lei nº 9.099/1995 em relação aos citados crimes, independentemente de estarem ou não previstos no ECA. De acordo com ela, o § 1º do artigo 226 do ECA excepciona o caput desse mesmo dispositivo, proibindo, no âmbito do citado Estatuto, a incidência das disposições da Lei do JECrim, sem embargo de autorizar, como o faz no caput do mesmo artigo 226, a aplicação, no ECA, das normas havidas na Parte Geral do Código Penal e do Código de Processo Penal. Esta exegese sistemática confere coesão e coerência à totalidade do dispositivo 226″. (ROMERO, Paulo Roberto Santos. “Os maus-tratos, a Lei Henry Borel e os juizados especiais criminais”. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-set-05/paulo-romero-crime-maus-tratos-lei-henry-borel-jecrim. Acesso em: 05 out. 2023).

 

Pelo exposto, verifica-se que o acórdão analisado julgou acertadamente pela competência do Juizado Especial Criminal da Comarca para análise e julgamento do caso em questão, considerando que os fatos se deram antes da entrada em vigência da Lei nº 14.344/22 e, também, por versar o delito de maus tratos, previsto no Código Penal.

 

 

Decisão: TJMG –  Conflito de Jurisdição  1.0000.23.141132-3/000, Relator(a): Des.(a) Anacleto Rodrigues , 8ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 28/09/2023, publicação da súmula em 29/09/2023.

 

Link de acesso: https://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisaPalavrasEspelhoAcordao.do?&numeroRegistro=2&totalLinhas=26&paginaNumero=2&linhasPorPagina=1&palavras=lei%20henry%20borel&pesquisarPor=ementa&orderByData=2&listaClasse=17&listaClasse=18&referenciaLegislativa=Clique%20na%20lupa%20para%20pesquisar%20as%20refer%EAncias%20cadastradas…&pesquisaPalavras=Pesquisar&

 

 

 

 

 

 

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Brenda Nascimento
Mestranda em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Ciências Criminais. Graduada em Direito pela Universidade José do Rosário Vellano. Assistente Judiciário no Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG).

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