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A TESE DE SÉCULO EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA E SUA REPERCUSSÃO PARA AS EMPRESAS QUE UTILIZAM APLICATIVOS DE DELIVERY

Direito Tributário é um ramo do nosso ordenamento jurídico que gera inúmeras discussões, seja no âmbito de processos judiciais, seja no dia a dia das pessoas [físicas e jurídicas]; e apesar de muitos afirmarem ser algo complexo e, por vezes, “incompreensível”, não podemos negar que os tributos permeiam toda a nossa existência em sociedade. Basta se dar conta de que, na mínima transação realizada no seu cotidiano, estamos pagando algum tipo de tributo (principalmente na realidade brasileira, que tem uma das mais pesadas tributações sobre o consumo).

Nos últimos anos estivemos diante de um debate que ficou denominado como “Tese do Século”, pelo potencial de sua repercussão, em relação aos contribuintes e ao Fisco, onde se discutia no Judiciário a (in)constitucionalidade da inclusão dos valores de ICMS na base de cálculo das contribuições sociais PIS e COFINS.

Para uma melhor compreensão do leitor, farei um parêntese para uma breve explanação sobre os institutos citados acima. O ICMS é um tributo já bem discutido aqui nesta coluna, onde verificamos se tratar de um imposto de competência dos Estados, responsável por grande parte da arrecadação tributária destes entes federados, e que tem como fato gerador para sua cobrança: a circulação de mercadorias, a prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e a prestação de serviço de comunicação; previsto no art. 155 da Constituição Federal e regulado pela Lei Complementar nº 87/96 (Lei Kandir).

PIS e COFINS são contribuições sociais, caracterizando-se como tributos de competência da União Federal. O fato gerador desses tributos é um pouco mais complexo para se delimitar, mas de uma forma bem simples e didática, diante da previsão constitucional e legal, podemos afirmar que um dos fatos geradores desses tributos é a receita ou o faturamento de uma empresa[1].

Considerando que o ICMS é um tributo indireto (ou seja, o comerciante, ao circular uma mercadoria, repassa para o consumidor o valor do tributo, no preço da mercadoria), a grande discussão na “Tese do Século” girava em torno de saber se o valor que entrava na empresa, referente ao ICMS, que poderia ser repassado ao consumidor, por exemplo, devia ser considerado para o cálculo do PIS e da COFINS.

Em 2016 essa discussão chegou ao Superior Tribunal de Justiça, momento em que este tribunal superior afirmou ser correto cálculo da Receita Federal, no julgamento do Recurso Especial nº 1.144.469/RS, onde, no rito dos recursos repetitivos, o STJ considerou o ICMS como parte da base de cálculo das contribuições sociais em referência.

Mas a discussão não parou por aí.

No seio do Recurso Extraordinário nº 574.706/PR[2], o Supremo Tribunal Federal, em 15 de março de 2017, concluiu pela inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da COFINS, fixando a seguinte tese: “o ICMS não compõe a base de cálculo para fins de incidência do PIS e da Cofins”. De acordo com a Suprema Corte brasileira, o ICMS representa uma receita transitória nos cofres das empresas que, ao final, repassam ao Estado competente para a cobrança deste imposto; de modo que não pode ser considerado como faturamento ou receita bruta da pessoa jurídica.

Este julgamento só foi finalizado em definitivo em 13 de maio de 2021, momento em que se julgou os embargos de declaração, modulando os efeitos da decisão proferida em sede de controle difuso de constitucionalidade, para aplicação ex nunc, a partir da data de 15 de março de 2017 (data do julgamento da tese) – ressalvadas as ações judiciais que já estavam em curso antes-; e determinando que o ICMS a ser excluído da base de cálculo do PIS e da COFINS é todo aquele destacado na nota fiscal da operação da venda, e não apenas o que foi efetivamente recolhido.

À primeira vista pode-se pensar que se trata de uma tese bastante simples e sem maiores repercussões jurídicas (haja vista que a maior repercussão imediata é a financeira).

No entanto, os fundamentos utilizados pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE nº 574.706/PR acabam impulsionando outras teses, partindo da ratio decidendi do STF que afirmou que faturamento e receita da empresa não compreendem todas as entradas nos cofres dos contribuintes, mas apenas aquelas parcelas que se incorporam definitivamente ao patrimônio da empresa. Verbas transitórias, que ingressam temporariamente no patrimônio da pessoa jurídica, mas devem ser destinadas a outros beneficiados, não podem ser considerados como base de cálculo para o cálculo do PIS e da COFINS.

Uma decisão bastante atual (proferida em 04 de julho de 2022), que pode nos levar a refletir sobre a aplicação da tese em referência, é a proferida pela 4ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Distrito Federal, nos autos do processo judicial nº 1048374-15.2021.4.01.3400, onde foi deferido o creditamento do PIS e COFINS quanto às despesas contratuais e taxas pagas nas operações de delivery, pela empresa impetrante.

Em outros termos, a pessoa jurídica que impetrou o mandado de segurança referido, defendia o direito de descontar os valores pagos às plataformas digitais de delivery como iFood e Uber Eats, alegando que tais valores sequer ingressavam nos cofres da empresa, de modo que não poderiam ser considerados como receita ou faturamento da Demandante.

Na sentença o juiz federal concedeu a segurança, utilizando como razão de decidir, a caracterização da utilização das plataformas digitais como essencial (haja vista que ficou comprovado nos autos que a empresa realizava cerca de 70% de suas vendas pelas plataformas referendadas), enquadrando os custos com estas como insumo, dando direito ao creditamento destes valores no cálculo do PIS e COFINS na modalidade não-cumulativa.

Mesmo a sentença tendo utilizado como fundamentação para a “exclusão” dos valores gastos com as plataformas digitais de delivery, o enquadramento destes como insumos; a demanda judicial (ao analisar os fundamentos trazidos pela parte Impetrante) poderia ter sido julgada procedente também pelo acatamento judicial da aplicação da “Tese do Século” ao caso concreto. Isto é, se o Judiciário não tivesse considerado a utilização dos aplicativos como insumos (acaso verificasse que sua utilização não fosse inafastável à realização da atividade-fim da empresa[3]), poderia determinar a exclusão de tais valores, pelo fato de não integrarem o conceito de faturamento ou receita, nos moldes do que ficou decidido pelo Supremo Tribunal Federal nos autos do RE nº 574.706/PR.

Desta forma, estar-se-ia garantindo um direito do contribuinte a não ser tributado de forma ilegítima, excluindo a incidência de contribuições sociais sobre parcelas que não correspondem a ativos da empresa, e minimizando um pouco o peso de uma carga tributária já extremamente pesada no cenário de um sistema tributário regressivo[4], que tributa muito o consumo e pouco o capital.

 

Notas e Referências:

[1] As contribuições sociais têm mais de um fato gerador, conforme pode se observar no art. 195 do CF/88, bem como na legislação específica do PIS (LC nº 07/1970; LC nº 08/1970) e da COFINS (LC nº 70/1991).

[2]Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=2585258&numeroProcesso=574706&classeProcesso=RE&numeroTema=69. Acesso em 29 jul. 2022.

[3] O enquadramento de insumo nestes termos é feito com base na decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça no REsp 1221170/PR, julgado em 22/02/2018.

[4] Para melhor compreensão da regressividade do sistema tributário brasileiro, vide texto: “Sistema Tributário Regressivo E Desigualdade Social”. Disponível em:   https://juridicamente.info/sistema-tributario-regressivo-e-desigualdade-social/. Acesso em 29 jul. 2022.

Colunista

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Larissa Pinheiro
Mestra em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Especialista em Direito Tributário pelo IBET. Graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Professora na Faculdade do Sertão do Pajeú (AEDAI-FASP), lecionando as disciplinas de Direito Tributário e Direito Processual Civil. Participante do grupo de estudo Moinho Jurídico / UFPE. Membra da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). Advogada no Escritório Larissa Pinheiro Advocacia, onde atua nas áreas de Tributação, Sucessão e Regularização Imobiliária.

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