Ainda sobre projeto de lei anti-arbitragem
Considerações iniciais
O desenvolvimento da arbitragem no Brasil que custou, diga-se de passagem, muitos anos e denso amadurecimento acadêmico e jurisprudencial, atualmente, encontra no Projeto de Lei 3293/2021 um dos seus maiores desafios. Trata-se de proposição que até agora não encontrou apoio relevante na comunidade arbitral e sinaliza para o mercado internacional um preocupante cenário de incerteza.
Um das primeiras observações que foram feitas quanto ao mencionado projeto de lei, que teve uma acelerada marcha de tramitação sem ouvir especialistas e práticos da arbitragem, foi a do professor José Rogério Cruz e Tucci, que, ao fim de suas ponderações, conclamava as entidades e órgãos especializados em arbitragem a se manifestarem diante da absoluta inconsistência das alterações propostas[1].
Antes de analisar alguns pontos da proposta é válido sinalizar que a arbitragem não é um tema meramente jurídico-processual, ao contrário, permeia a órbita econômico-contratual. A Arbitragem se destina a solucionar disputas complexas envolvendo entes público e privados, mas também aquelas relacionadas ao comércio internacional. Essa proposta de alteração na Lei Brasileira de Arbitragem terá efeitos econômicos notadamente negativos.
Ora, as inconstâncias políticas geram incertezas e oscilações do mercado, a ausência de estabilidade legislativa aumenta o risco das transações e o mercado é essencialmente avesso ao risco. Uma legislação sobre arbitragem que seja constantemente alterada ou com alterações estranhas à boa prática internacional faz com que aquele país não seja considerado uma sede recomendada para realização de arbitragens. Mais ainda: inibe a prática do instituto e afasta players importantes do cenário internacional.
Pouco menos de 20 anos depois da publicação, a Lei de Arbitragem brasileira foi reformada uma única vez. Por meio da Lei nº 13.129/15, foram corrigidas inconsistências pontuais e incluídas questões já amadurecidas e consolidadas no âmbito doutrinário e jurisprudencial. Essa estabilidade legislativo-normativa mostra-se essencial não apenas para o amadurecimento e o aperfeiçoamento do instituto internamente, mas também sob aspecto externo.
Dito isto, teceremos algumas considerações sobre o projeto de lei, para nós, acertadamente apelidado de “PL anti-arbitragem”.
Quanto aos árbitros
O projeto propõe limitar a dez arbitragens o número de procedimentos que cada árbitro poderá atuar e também pretende vedar “identidade absoluta ou parcial dos membros de dois tribunais arbitrais em funcionamento, independentemente da função por eles desempenhada”.
Nas justificativa argumenta-se que tem-se “notado na prática a presença de um mesmo árbitro em algumas dezenas de casos simultaneamente, bem assim o aumento no tempo de tramitação das arbitragens. Muitas vezes, essas constatações guardam relação direta de causa e efeito, abrindo brecha para o ajuizamento de uma maior quantidade de ações anulatórias”.
A argumentação, porém, não apresenta qualquer dado, pesquisa ou mesmo análise quantitativa/qualitativa acerca do tema. Não aponta como será feita eventual fiscalização ou as possíveis consequências em caso de descumprimento.
O tempo de tramitação das arbitragens está intimamente relacionada a sua complexidade, além disso, diferentemente do que se observa no Judiciário todos os atos do procedimentos são previamente pactuados e calendarizados. Eventuais percalços na marcha processual muitas vezes são causados por medidas judiciais manejadas pelas partes com o objetivo precípuo de postergar a conclusão do procedimento, prática conhecida no meio arbitral como anti-suit injuncions e não pelo volume de trabalho dos árbitros.
Não há qualquer relação entre o volume de trabalho que alguns árbitros possuem com o tempo de duração dos procedimentos. Da mesma forma não está claro como se chegou ao numerário de “dez arbitragens” para que se tivesse certeza ou base jurídica segura que, com tal medida, se alcançasse uma maior brevidade dos procedimentos arbitrais.
Não apenas isso, há aqui uma evidente e indesejável limitação a autonomia da vontade das partes que, nos termos acima lançados, não poderão optar por um árbitro experiente e conhecido no cenário nacional que muitas vezes dedica-se a diversas arbitragens ao mesmo tempo. Será que as ações judiciais seriam mais céleres se limitássemos em dez a quantidade que cada magistrado pudesse atuar? Estaria aí a solução para o problema da morosidade? Certamente que não.
Quanto ao dever de revelação
Pretende ainda o PL alterar o §1º do art. 14 da Lei de Arbitragem conforme o quadro abaixo:
Versão atual | Proposta de alteração |
§ 1º As pessoas indicadas para funcionar como árbitro têm o dever de revelar, antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência. | §1º A pessoa indicada para funcionar como árbitro tem o dever de revelar, antes da aceitação da função e durante todo o processo a quantidade de arbitragens em que atua, seja como árbitro único, co-árbitro ou presidente do tribunal, e qualquer fato que denote dúvida mínima quanto à sua imparcialidade e independência. |
Como se percebe o texto em pouco (ou nada) acrescentará a prática já conhecida na arbitragem relacionada ao dever de revelação (duty of disclosure). Inobstante a previsão já existente quanto às hipóteses de impedimento e suspensão aplicáveis aos magistrados (Lei 9.307/96, art. 14, caput) a dinâmica arbitral exige um pouco mais dos árbitros: a eles cabe prestar esclarecimentos quanto a forma de escolha e se existe alguma situação ou vínculo que possa afetar seu futuro julgamento.
O legislador originário, seguindo as melhores práticas, procurou afastar da arbitragem situações peculiares que, muito embora não se enquadrem no escopo do impedimento ou suspeição existentes no processo judicial, podem afetar a higidez do procedimento arbitral. Muitas dessas situações não estão abrangidas pela legislação ordinária (hard-law) mas é bem trabalhada por diretrizes e recomendações (soft-law) em âmbito internacional que são utilizada pelos práticos da arbitragem nacional. Cite-se, por exemplo, as Diretrizes da IBA sobre Conflitos de Interesses em Arbitragem ou Digesto dos procedimentos de impugnação de árbitros em arbitragens administradas pela Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial – Brasil (CAMARB) que oferecem balizas interessantes para sanar problemas relacionados ao tema.
Além disso, alteração do dispositivo, ao que tudo indica (por falta de informação, talvez), faz parecer que a atual norma não abrange o co-árbitro ou presidente do tribunal arbitral. A vigente lei de arbitragem não faz distinção que o projeto pretende corrigir.
O PL também buscar sanar um problema inexistente, passando uma mensagem que atualmente o dever de revelação se aplica durante o procedimento arbitral o que é notadamente equivocado. As posições ocupadas pelos árbitros na arbitragem (co-árbitro, arbitro presidente de tribunal, enfim) não inibem ou mesmo isentam o árbitro de exercer o dever de revelação no antes ou durante o procedimento arbitral.
Os estatutos de arbitragem nacionais mais desenvolvidos, não trazem detalhes sobre o procedimento internos de uma arbitragem. Isso se confirma ao observar que a lei brasileira fixa princípios e orientações de caráter geral e diretrizes obrigatórias ficando a cargo das partes, árbitros e instituições arbitrais o ônus de estabelecer tais regras. Quanto ao tema em específico, regulamento de arbitragem da UNCITRAL é enfático ao estabelecer que a partir do momento da sua designação e durante todo o processo arbitral um árbitro deve revelar, sem demora, circunstâncias que possa suscitar fundadas dúvidas sobre a sua imparcialidade ou independência às partes e aos outros árbitros (art. 11).
Outro problema é a utilizar a expressão “dúvida mínima” ao invés de “dúvida justificada”. Um dos desdobramentos da segurança jurídica (que supostamente se busca ampliar por meio do PL anti-arbitragem), diz respeito à própria compreensão do direito, isto é, as regras jurídicas se destinam a orientar o destinatário por este conseguir compreendê-la; e isso só se torna possível por meio da clareza dos termos utilizados e de suas fontes normativas[2].
O PL não apresenta qualquer justificativa para tal alteração e, se se manter como está, permitirá impugnações absolutamente, ai sim, injustificadas, de árbitros e árbitras fazendo com que se inviabilize o início do trabalhos no procedimento arbitral. Afinal: o que significa “dúvida mínima”?
Remate
Não se tem notícia de audiências públicas ou diálogo com a comunidade arbitral na elaboração ou discussão do projeto de lei, ao contrário com o que aconteceu com o PL 7.108/2014 (transformado na Lei n. 13129/2015).
Não se sabe a quem ou de que forma as alterações apresentadas podem trazer alguma melhoria ou segurança jurídica para a prática de arbitragem. Para nós, o melhor caminho não é outro senão o sepultamento da proposição legislativa, como já ocorreu em outras devaneios legislativos que não prosperaram.
Aguardemos os próximos capítulos e lembremo-nos do pedido do professor Cruz e Tucci: “conclamando as entidades e órgãos especializados em arbitragem a se manifestarem imediatamente, tenho firme convicção de que o texto legal projetado, diante da absoluta inconsistência das alterações propostas, deve ser imediatamente arquivado ou, quando não, rejeitado por esmagadora maioria!”
Notas e Referências:
[1] https://www.conjur.com.br/2021-out-05/paradoxo-corte-inoportuno-indevido-perigoso-ataque-arbitragem
[2] Cf.ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 334 e seguintes