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Aula 23 – A Tutela Provisória no CPC – 17ª. Parte: aspectos específicos na tutela de urgência – 2ª. parte: a questão da dualidade procedimental – final

Após termos conseguido finalizar – numa intercalação de aulas – o problema dos aspectos gerais da tutela provisória (aulas de n. 19), podemos retornar já aos aspectos específicos da tutela de urgência. No caso, dos procedimentos que lhe servem.

E este retorno dar-se-á de onde paramos: a análise da questão da dualidade procedimental existente em tal âmbito. Falávamos – meio que adiantando certo tema – do problema da (não) formação da coisa julgada no âmbito das decisões em tutela provisória: em tutela cautelar, no contexto em que estamos a abordar.

Dissemos, ao final:

“Chama-se de coisa julgada, na verdade, os efeitos da coisa julgada ou, mais propriamente, um efeito específico desta última. E é esse efeito que está definido no CPC, em seu art. 502. Aqui, está definido, não a coisa julgada mesma, mas sim a eficácia que possibilita a indiscutibilidade/imutabilidade daquilo que foi decidido”.

Retornemos a partir disto.

Nesse sentido, muito embora tenhamos importantes trabalhos nos últimos anos sobre o tema da coisa julgada (e eu destaco o já citado trabalho do professor Antônio do Passo Cabral, além dos trabalhos de Marcos Cavalcanti e rodrigo nery, dentre outros, claro), a cultura processual em geral ressente-se de uma clarificação dessas noções: imutabilidade e indiscutibilidade.

Seriam duas coisas distintas? Nelas, haveria uma ordem? O que, propriamente, seria uma e o que seria outra?

Enfim, vamos tentar analisar essa problemática.

Bem, levando o termo de forma literal, imutável é aquilo que não pode sofrer modificação, não pode sofrer mudança (modificação, aliás, é apenas uma espécie de mudança).

Nesse sentido, a decisão judicial é de todo imutável? Em que sentido essa imutabilidade relaciona-se com a coisa julgada? É correto colocar a imutabilidade como primaz na coisa julgada?

Demos um exemplo: uma decisão na qual alguém é condenado a pagar determinada quantia a outrem. Caso cumpra a decisão, a condenação permanece? Claro que não. A condenação esvai-se, deixa de existir. Termina. Do contrário, o sujeito ficaria eternamente condenado. O que seria um absurdo, até porque não há possibilidade de condenação perpétua.

Mas, esvaindo-se tal condenação, há ofensa a coisa julgada? Claro que não. É ridículo, ademais, dizer o contrário.

Noutro exemplo: sabe-se que uma decisão descumprida pode ser levada a cumprimento. À execução, mais propriamente. Todavia, em geral, há prescrição da possibilidade de levar a decisão a cabo. Prescrição, em rigor, da pretensão a executar a decisão, consolidada, de há muito, na Súmula n. 150 do STF. Ocorrida tal prescrição, resta tolhida a eficácia executiva da decisão, que não pode mais ser levada à execução. Há, aí, uma mudança na decisão, que em nada ofende, claro, a coisa julgada.

Portanto, o que de primeiro se deve falar quando se aborda o problema da eficácia da coisa julgada – e é disso que trata o art. 502, CPC – que a imutabilidade aí dita não é primaz, é meramente consequencial. Em si, não compõe a coisa julgada, sendo desta apenas uma possibilidade.

Ora, a coisa julgada gera um efeito que somente pode ter a ver com a essência daquilo que a gerou. A coisa julgada é como que um cume. Se assim o é, é um cume de algo. Este tem por essência a discutibilidade. A essência do processo é discutibilidade. Processo é ambiente de discussão. Algo, em seu âmbito, é levado à discussão. E, em nome do princípio do contraditório, à ampla discussão.

Nesse sentido, o que a coisa julgada faz?

Ela coloca um óbice nessa discussão: aquilo que foi discutido não pode mais sê-lo. Do contrário, não haveria de coisa julgada se falar. Seria se referir a algo que está em aberto, que está livre: livre para discussão. O julgado, no fundo, é um fechado, o julgamento é um tipo de fechamento, de encerramento: encerramento da discussão.

Então, em rigor, dizer que algo tem força de coisa julgada é dizer que ele não é mais discutível e que, por isso, não se pode fazer algo contra o beneficiário da coisa julgada, pelo simples fato de não se pode discutir aquilo que o beneficiou.

Nesse sentido, há uma imutabilidade. Não se pode impor a esse beneficiário uma mudança de rota que somente poderia ser obtida por uma rediscussão. Não se pode, por exemplo, dizer àquele que foi declarado proprietário não ser possível que venha a reaver a coisa, fixando, para tanto, não ser ele, de fato, proprietário. Observem: pode até acontecer de ele não poder reaver a coisa, pois, por exemplo, reste prescrita sua pretensão reivindicatória; não se pode, porém, impedi-lo de reivindicar dizendo-lhe não proprietário, por quê? Porque isso daí seria rediscutir o indiscutível (a declaração de propriedade, no caso).

Então, a coisa julgada produz um tipo de imutabilidade, pois não se pode ir de encontro ao interesse do beneficiário com o argumento de que ele não está como foi estabelecido na decisão. Do contrário, seria rediscutir. Eis o que se encontra previsto no art. 502, CPC. É direito positivo puro. Não se trata de ideia de nossa cabeça: o que estamos a fazer aqui é um rearranjo analítico desse dispositivo legal. Do jeito que ele está há uma atecnia.

Mas, observem, o atécnico não é aquilo que não observou a melhor opção política, o que fosse mais conveniente, que causasse menos abalo social. Não: atécnico é tão-somente aquilo que não observou a técnica estrutura legislativa. E esta, como é textual, deve observar os rigores lógicos. No fundo, o atécnico é um tipo de ilógico. Uma decorrência deste, mais precisamente.

Ora, e por que a decisão concessiva de tutela cautelar (seria também a de negação do pedido? Veremos isto em outra oportunidade) não faz coisa julgada? Por que a cautelar é incompatível com a coisa julgada? Não, como já demonstramos. Não há pelo simples motivo de o sistema normativo brasileiro pré-excluir a formação da coisa julgada. Isto, especificamente, por força do art. 296, CPC.

Esse artigo – como se sabe – dispõe que a decisão de tutela provisória (incluindo, claro, a tutela cautelar) é revogável (e modificável) a qualquer tempo. E isso se faz como? Não há outro modo senão rediscutindo a matéria decidida, revisitando-a. Até porque, como também sabemos, o juiz precisa justificar (motivar) a decisão revocatória. Ou seja, ter-se-á de rediscutir. E, se se pode rediscutir, não há coisa julgada.

Algum incauto poderia dizer: “se assim o for, esse art. 296, CPC, ofende a coisa julgada”. Um arrematado absurdo. Por um motivo muito simples: a CRFB não garante a coisa julgada. Isso parece um equívoco, mas o que se garante é que a lei que entra em vigor não pode atingir coisa julgada formada. A CRFB não estabelece que a decisão faz coisa julgada, não diz, ao menos, que toda decisão o faz.

Em verdade, quanto à coisa julgada, a CRFB estabelece duas coisas: i) garante que a lei (em sentido amplo), ao entrar em vigor, não pode atingir a coisa julgada; ii) estabelece que a forma de desfazimento da coisa julgada é: ii.1) no cível, a ação rescisória; ii.2) no penal, a revisão criminal.

O que ela diz, em suma, é que, diante de uma coisa julgada formada são esses os dois (únicos) modos de desfazê-la. Todavia, se tal ou qual decisão gerará coisa julgada, ou não; se tal ou qual decisão poderá ser rescindida, ou não, é algo que cabe à lei estabelecer. Mais que isso, cabe à lei estabelecer a causa, o alcance e a intensidade da coisa julgada. Tudo isso é matéria de lei.

Leiam o texto constitucional e vejam se não é o que está previsto.

Alguém poderia dizer: “mas, professor, no livro do autor fulano de tal se diz que não é assim, que a coisa julgada é garantida pela CRFB”. Sim, pode até haver mesmo, mas é algo da cabeça desse autor. Ele pode até ter a melhor das intenções, mas isso não é o direito positivado. Esse autor está fazendo qualquer outra coisa menos dogmática jurídica.

Então, a coisa julgada, cujo alcance e intensidade estão previstos no art. 502, CPC, é ressalvada pelo art. 296, CPC, que permite a revogação da decisão a qualquer tempo. Como seria possível revogar a decisão sem rediscutir o decidido? Não é possível.

Vejamos um exemplo: o juiz defere arresto de bens do réu. A decisão transita em julgado. O arresto permanece? Sim. Mas, daí, o réu decide, pelo meio próprio, discutir a dívida garantida. Ele pode fazê-lo? Sim, e isso gerará a rediscussão da matéria. Isso pode levar a revogação da decisão concessiva do arresto? Sim. Observem: entendeu-se que o arresto era necessário, mas, em verdade, ele não o é, porquanto a dívida alegada, em rigor, não existe, algo que é constatável na ação de discussão da dívida (de rediscussão da causa do arresto, portanto). A dívida, antes discutida para fins de arresto, será, agora, rediscutida. Poderia ser diferente? Sim, mas apenas de lege ferenda.

Enfim, a decisão (concessiva) de tutela cautelar não faz coisa julgada. Mas isso quer dizer que não possa se estabilizar? Não faz coisa julgada (o mais), mas será que não pode o menos, isto é: estabilizar-se?

Eis o que veremos quando tratarmos de estabilização, numa análise do art. 304, CPC.

Voltemos na próxima aula com o (início) do estudo do procedimento antecedente da tutela antecipada, previsto no art. 303, CPC.

Até lá.

 

Colunista

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Roberto Campos
Doutor e Mestre em Direito Processual pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Professor de Direito Civil e de Direito Processual Civil da Unicap. Ex-Presidente da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). Advogado e Consultor Jurídico.

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