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Juizados Especiais Cíveis. Por Que o Nosso Judiciário Abandonou as Pequenas Causas?

Introdução

A práxis, ao escrever para esta nossa coluna, é usar a impessoalidade como padrão, uma vez que, aproximar a maneira de expor os argumentos ao formalismo científico empresta ao texto maior imparcialidade, além de permitir uma catalogação mais precisa e – até – uma elegância de estilo muito recomendada quando se tenta deixar notória, acima de tudo, o respeito que se empenha ao veículo acadêmico.

A regra, todavia, rendesse-a ao conteúdo e às circunstâncias.

Conteúdo, pois os Juizados Especiais (LEI Nº 9.099, DE 26 DE SETEMBRO DE 1995), adotaram como princípio basilar o da Simplicidade, daí a não existência de grandes doutrinadores preocupados com uma farta divulgação, tampouco uma discussão aprofundada acerca do tema o que – parece – não compensar um esforço de concentração ou imersão naquilo que pode denotar um tema de “menor” importância.

Circunstâncias, também, considerando que não se pode permitir, em uma ciência tão pragmática e de alcance social extremo quanto as Jurídicas, um distanciamento eficaz entre sujeito e objeto, mormente quando o sujeito/pesquisador tenha dedicado mais de sessenta por cento da sua existência à prática da advocacia cível, como é o caso.

Conteúdo e circunstâncias, somados me municiam para pedir a grande vênia de escrever na primeira pessoa e fazer referência á “nossa banca” ao significar os casos práticos que enfrentei ao lado de colegas de ofício.

Nessas vênias, já como escusas pelo detalhamento excessivo das exposições de motivos especiais, devo advertir que aqui o fito não é impor o que se pode atribuir às minhas opiniões, ou a uma tentativa incisiva de expor a absoluta verdade, muito menos atacar a verdade alheia. Se é para nomear um fito nomeara-lhe-amos[1] o de provocar a discussão e refletir acerca dos rumos do Poder Judiciário Brasileiro, especialmente no nosso estado.

Passo, assim, a descrever o que poderia chamar, carregando nas tintas da linguagem figurativa, o nascimento, a gloria e o ocaso dos Juizados Especiais Cíveis Comuns (vez que não serão questionados os Juizados Especiais penais, tampouco os Federais) como um veículo de extrema importância para a prestação do serviço jurisdicional ao cidadão brasileiro que foi visivelmente prejudicado nos últimos anos com a negligência ao procedimento especial cível.

Não identifico precisamente as causas [da negligência], deixo-as ao debate, e porque – mesmo, também – não as conheço plenamente. Fazendo nesse ponto em particular, minhas as palavras do sublime João Guimarães Rosa… “saber mesmo não sei quase nada, mas desconfio de tanta coisa!”

  1. Um Novo Conceito Normativo

Os anos de 1990 foram, olhando-os daqui, fabulosos e pródigos em transformações. A queda do muro de Berlim, a dissolução da União Soviética e o aparente fim da Guerra Fria, trouxeram aos dirigentes, políticos e pensadores de maneira geral, uma nova necessidade de repensar os sistemas civilizacionais desassociados da polarizada esquerda e direita, comunismo e capitalismo. O mundo percebeu que a derrocada do modelo soviético de produção, mostrou claramente que o padrão não era eficiente, todavia, tal reconhecimento não implicava na automática aprovação do antagonismo do modelo capitalista que, indiferentemente, continuou a ser extremamente injusto e fomentador da desigualdade social e econômica. Rejeitar a dinâmica soviética, dessa maneira, não implicou em um salvo-conduto da produção econômica das repúblicas capitalistas, um novo modelo urgia em ser pensado.

Em que pese não se ter logrado um sucesso incontestável em finalmente forjar um sistema justo e humanizado, a distribuição das riquezas das nações foram analisadas e discutidas sem o romantismo da mão invisível de Adam Smith e nem ao quebra-mar das praias da utopia social. O Neoliberalismo, a social-democracia e tantos outros modelos, novos ou reformados, grassaram naquelas quadras, o que – de maneira difusa – contribuiu com a evolução do pensamento da civilização.

O Direito não se quedou incólume.

O Brasil, sentido os novos ventos transformadores, no retomar do exercício democrático do cidadão pela Carta de 1988, e a abertura da economia ao mundo, adota uma postura legislativa moderna que o equiparará ao regramento do novo mundo globalizado. A primeira manifestação de tal atualização vem pelo Código de Defesa do Consumidor em 1990, com institutos moderníssimos como a Desconsideração da Personalidade Jurídica; Inversão do Ônus da Prova; e, a Responsabilidade Civil Objetiva, entre outros.

Cinco anos depois vem a Lei dos Juizados Especiais (1995), sempre – como toda legislação do fim do Século XX e início do Século XXI – adotando como uma constante, os seguintes paradigmas:

  1. A Simplicidade;
  2. A Celeridade;
  3. A Obrigatoriedade da tentativa de conciliação;
  4. A Instrumentalidade das Formas;
  5. A Razoabilidade ou Proporcionalidade.

A Lei 9099/95 vem para corroborar (viabilizar) a aplicação do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990), no que toca ao atendimento do cidadão na condição hipossuficiente de titular do consumo (todos nós em alguma ocasião).

A Lei dos Juizados Especiais trouxe, entretanto, alguns estigmas e uma certa carga de preconceitos.

 

  1. O Estigma das Pequenas Causas

O que dizer de uma Justiça, próxima ao cidadão, no bairro dele, ou na faculdade dele, gratuita, simples, quase sem papel, sem burocracia, sem sucumbência, rápida e eficiente na maioria das demandas que não alcançam valores acima de 40 salários-mínimos? Qual cidadão, que já precisou da prestação jurisdicional, poderia coerentemente ser contra a tal maneira de fazer justiça?

Pois. É o que não se sabe, não obstante revolta – de inconcebível forma – perceber que muito se trabalhou contra tudo isso.

A imprensa na época e o próprio judiciário, pelo valor de alçada, que não poderia (pode) passar dos 40 salários-mínimos, publicamente divulgou, e o projeto de lei também assim denominava de “tribunal de pequenas causa” o palco da 9099. O termo – de tão eficientemente significativo é até hoje fartamente usado pela população.

Pequeno era o valor monetário da causa, jamais a prestação e a consecução da justiça.

Alguns operadores do Direito, todavia, não entenderam desta maneira.

O termo “juizados especiais” seria, e passou a ser incisivamente cobrados, por mais “elegante” e não conferiria – principalmente aos magistrados togados – uma vulgar designação de juízes de pequenas causas. “Vanitá” ao largo, ali já nascera um preconceito entre magistrados e advogados que – de certa forma – resistiam ao termo “pequeno” como se justiça pudesse ser mensurada, ignorando a definição Socrática que antes da era cristã já definira o justo como um conceito acima de todas as definições humanas e divinas, absoluto que não se pode mensurar, ou deixar de ser aceito, pois, em essência, é maior do que o próprio Ser.

 

  1. A Relação de Consumo nos Juizados Especiais

O Código de 1990, praticamente inaugurou o Direito do Consumidor no Brasil. Antes dele apenas existiam pleitos demandados como ações Edilícias com a alegação do antiquado vício redibitório quase impossível de ser provado pelo alegante consumidor. Quem advogou antes e depois de 1990 sabe bem do que estou falando. A simbiose do CDC com os Juizados Especiais fez a efetiva diferença. A nossa banca, trabalhando na maioria das vezes para as empresas, resolveu entre 1995 e 2005 uma boa centena de casos, de maneira célere e econômica com resultados satisfatório para todos envolvidos.

Recife, não se pode deixar de lembrar, foi a primeira cidade a ter um Juizado Privativo da Relação de Consumo do Brasil (instalado no bairro Benfica). Com altos índices de resolução de conflitos, serviu de modelo para todo país.

A quem interessou que esse juizado fosse amontoado a umas dezenas de outras tantas salas em um só espaço como mais uma simples vara sem qualquer definição específica aceitando todo tipo de demanda?

A quem atendeu a não especialização de um marco da Justiça nas relações de consumo?

 

  1. O Desrespeito da Concentração Geográfica

Falando de memória, posso citar a atuação da nossa banca em juizados, na capital pernambucana: Juizado de Casa Amarela (zona norte); Juizado do Consumidor Benfica (zona oeste); Juizado do Cordeiro (Caxangá -oeste); Juizado de Afogados (sul); Juizado de Boa Viagem (sul); Juizado do Rosarinho (norte); Juizado Universitário da FIR (Abdias de Carvalho – oeste); Juizados Especiais do Fórum Thomas de Aquino (centro); Juizado Universitário da Faculdade Marista (centro); Juizado Universitário da Faculdade Maurício de Nassau (Madalena – oeste); e, Juizado Universitário da UNICAP (Santo Amaro – centro). Para citar apenas os em que a banca efetivamente trabalhou, podendo faltar alguns outros e sem considerar a Região Metropolitana do Recife e o interior do estado de Pernambuco.

Por essa pequena amostra denunciamos o quanto a proximidade ao cidadão foi eficientemente diversificada. O viés progressista do novo século tratou da Justiça Social levando a pessoa comum (que inclusive poderia prescindir de advogado e petição escrita – nas causas de alçada de até 20 SM).

A quem interessou a condensação de todas essas varas em um prédio improvisado no bairro da Imbiribeira, completamente deslocado das maiores concentrações populacionais da capital? Em um local, diga-se ainda, no qual uma precipitação pluviométrica de média intensidade contumaz o tira de operação por alagamentos e bloqueios de vias.

Ao advogar nessa época apenas ouvi reclamos acerca da desconcentração por parte de alguns advogados incomodados com os deslocamentos e uns poucos juízes no mesmo sentido atingidos na comodidade própria, todavia, o demandante, o cidadão lesado, esse encontrava o melhor, mais próximo e mais cómodo juizado que lhe atendesse.

Considerações Finais

Os Juizados Especiais Comuns (da 9099) são hoje, ao menos no nosso estado, uma pálida sombra do que foi no início dos anos 2000; a Celeridade foi esquecida; a Simplicidade foi revertida em insegurança. Por não haver um direito processual próprio, os procedimentos são ajustados em pactos de congresso de juízes; ou, o que é pior, da decisão própria de cada Magistrado, assim vemos varas que não antecipam tutelas, não executam as sentenças sem reiteradas provocações ou, ainda, promovem outra tentativa de conciliação na execução relativizando e desrespeitando o ato jurídico perfeito e o trânsito em julgado, que aliás, anula o fundamental duplo grau de jurisdição remetendo os processos a um colégio improvisado de igual hierarquia que nada modifica da decisão original dos colegas.

Nos prazos, abandonando a celeridade, equipara-se hoje, a qualquer vara da justiça comum estadual. A concentração de processos é uma frágil justificativa, pois – mais um fator – o judiciário deixou que as empresas de telefonia móvel sobrecarregassem as varas com sentença de indenização flácidas, tabelando os danos morais (SIC) e permitindo que a demanda judicial valesse a pena para os demandados que superfaturam nos lucros de milhões de lesados que não reclamam.

As razões para tais inferências não entenda, dileto leitor operador do Direito, como saudosismo ou tradicionalismo arcaico, pois o mundo e as coisas de fato mudam, mas a única justificativa para a inovação é a evolução. Os Juizados Especiais mudaram para pior, involuíram, deixando o cidadão privado, ou ao menos com severas dificuldades, da prestação de um justiça célere, eficiente e gratuita.

Os motivos, não os tenho, embora – como já dito – desconfie-os. Por isso, deixo-os à reflexão. Quem sabe se essa provocação não seja o melhor papel da Academia no melhoramento da nossa vida brasileira.

 

Referências:

BRASIL, Código de Defesa do Consumidor. LEI Nº 8.078, DE 11 DE SETEMBRO DE 1990. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8078compilado.htm

Acesso: 15/09/2022

BRASIL, LEI Nº 9.099, DE 26 DE SETEMBRO DE 1995.Juiuzados Especiais Cíveis e Criminais, disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9099.htm

Acesso: 15/09/2022.

 

Colunista

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Joaquim Rafael
Mestrando em Filosofia pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Especialista em Direito Processual pela Universidade Potiguar - RN. Professor da Faculdade Imaculada Conceição do Recife (Ficr). Articulista de vários periódicos científicos e literários. Advogado Militante.

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